Renda Cidadã substituiria o atual programa; promessa é respeitar teto de gastos, mas especialistas chamam arranjo de “pedalada”
Não caiu bem a nova ofensiva do presidente Jair Bolsonaro de criar um programa social com sua assinatura para substituir o Bolsa Família, uma forte marca das gestões petistas. Rebatizado de Renda Cidadã, o programa que o Governo tentará aprovar no Congresso nos próximos meses servirá como uma espécie de continuação do auxílio emergencial, dirigido aos mais afetados pela pandemia do coronavírus.
De acordo com a proposta anunciada nesta segunda, terá três fontes de recursos: o orçamento do próprio Bolsa Família, parte do dinheiro reservado para o pagamento de precatórios e ainda uma parcela do Fundo de Manutenção de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), o principal mecanismo de financiamento da educação. O desenho foi suficiente para gerar críticas no Congresso e apreensão no mercado financeiro, que vê na ideia de utilização da verba dos precatórios para financiar o programa uma espécie de calote por parte do Governo. Alguns especialistas falam em contabilidade criativa, ressuscitando o termo pedalada, a manobra fiscal que municiou a controversa argumentação legal do impeachment contra Dilma Rousseff.
A proposta surge poucos dias depois de Bolsonaro ter dito que continuaria com o Bolsa Família até 2022 e criticar a equipe econômica. O anúncio derrubou o Ibovespa, principal índice da Bolsa brasileira, que fechou o dia em queda de 2,41%. Se o caminho de angariar a confiança dos investidores na Bolsa não parece tão fácil, tampouco é o caminho político do plano. O projeto será incluído na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) emergencial, em tramitação no Senado, segundo informou o relator, senador Márcio Bittar (MDB-AC) em plena campanha eleitoral das municipais. Ainda não há detalhes sobre o valor do novo programa de transferência de renda, mas ele não deve chegar a 300 reais, atual parcela do auxílio emergencial.
Para o mercado, a controvérsia envolve especialmente o uso dos precatórios, que são dívidas do poder público a pessoas físicas ou jurídicas após sentença definitiva na Justiça. Quando alguém ganha um processo contra um ente público e tem valores a receber, passa a ter um precatório e entra na fila do pagamento. Ou seja, um dinheiro com destino certo. Essas despesas têm crescido ano a ano e são obrigatórias, isto é, não podem ser canceladas pela União. Para 2021, o projeto de lei orçamentária anual (PLOA) previu que elas somarão 55,52 bilhões de reais. Nesta manhã, o senador Bittar, que também é relator do PLOA no Congresso, afirmou que o presidente deu sinal verde limitar do pagamento de precatórios a 2% das receitas correntes líquidas. “O que sobrar vai para o Renda Cidadã”, disse Bitter.
O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI), Felipe Salto, afirmou, em sua conta de Twitter, que “limitar pagamento de precatórios é eufemismo para dizer que se empurrará com a barriga um pedaço relevante dessas despesas”, que são obrigatórias. Para Sergio Valle, economista-chefe da consultoria MB Associados, a solução de colocar precatórios e verbas do Fundeb para financiar o programa não parece a mais adequada. “A utilização de uma parte do valor utilizado para pagar precatórios pode passar a ideia que o Governo está deixando de pagar uma conta judicial. É uma forma de rolar a dívida para os anos seguintes. Vira uma espécie de calote, uma postergação de pagamento. Volta aquela história novamente dos restos a pagar”, explica. Sobre os recursos do Fundeb, o economista avalia que o Governo está tocando numa área que precisa muito dos recursos. “O presidente falou tanto em não tirar dos mais pobres para dar para os paupérrimos, mas tirar do Fundeb não é muito diferente disso.”
Bittar informou que até 5% do novo recurso para o Fundeb será deslocado para que beneficiários do programa mantenham seus filhos na escola, mas não deu detalhes. Essa proposta já tinha, entretanto, sido apresentada pela equipe do ministro da economia, Paulo Guedes, na época de votação do novo fundo, mas foi vetada pelo Congresso.
Para a Rede Brasileira de Renda Básica, instituição da sociedade civil que advoga por um amplo programa de renda básica, é descabido que o Governo aponte para o Fundeb como fonte de recurso para criação de um novo programa social. “Ele é destinado à manutenção e desenvolvimento da educação (…) O uso dessa verba com assistência social é inconstitucional”, afirma o grupo em nota, manifestando-se contrário também à utilização de recursos destinados ao pagamento de precatórios para bancar o programa. Segundo a Rede, o financiamento do Renda Cidadã deve ser por meio da “reorganização da carga tributária, para que se torne mais progressiva”.
O ponto mais importante, na avaliação de Valle, não é, no entanto, a fonte de financiamento do programa, mas como ele caberá dentro da regra do teto ― que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação. “A regra do teto já não estava cabendo dentro do orçamento que foi apresentado para 2021 e ainda não incluía o novo programa. Na hora que você incorpora o Renda Cidadã, que custará entre 30 a 40 bilhões de reais, você irá furar o teto, a não ser que você faça cortes, mas fica difícil ver onde caberiam esses cortes. Ou então você precisa tirar o programa da regra do teto, o que não faz sentido”, diz.
Segundo Bolsonaro, a nova versão do programa tem como premissa respeitar a lei do teto de gastos e “segue a doutrina Paulo Guedes, para voltar à normalidade o mais rápido possível”. O líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), também reforçou que o Renda Cidadã será apresentado respeitando o teto de gastos públicos e tem por objetivo atender aos milhões que, a partir do próximo ano, ficarão sem receber o auxílio emergencial pago durante a pandemia. Guedes, também se juntou à promessa de que o Governo respeitará o teto de gastos na iniciativa, que possibilitará a aterrissagem do auxílio emergencial num novo programa de renda básica a partir de 1º de janeiro.
Leia na íntegra: El País