Por Luiz Antônio Cunha
Tratar da universidade é focalizar uma instituição quase milenar na Europa, recente no Brasil – nossa mais antiga, a UFRJ, vai completar o centenário em 2020. A universidade assume diferentes formas e identidades, conforme a época e o país. Na origem, ela foi uma comunidade simples de mestres e discípulos, sem prédios próprios e praticamente desprovida de orçamento. Tornou-se uma instituição complexa, multi-funcional, com território de configuração própria e orçamento que, por vezes, chega a ser superior à da prefeitura da cidade onde se localiza. De uma instituição que se dedicava à medicina e aos estudos especulativos, veio a ser uma importante geradora de forças produtivas (humanas e materiais).
Em uns países, a universidade se confunde com o ensino superior de graduação, enquanto, em outros, ela converge com instituições especializadas (como o Instituto Osvaldo Cruz) no desenvolvimento do saber legítimo e na outorga de diplomas de mestrado e doutorado. No entanto, há um elemento comum à instituição universitária, presente em todos os tempos e em todos os lugares: a luta pela difusão e o desenvolvimento do saber, sem constrangimentos externos, vale dizer, a luta pela autonomia.
Essa luta começou contra a Igreja, de onde a universidade nasceu. Depois contra o Estado, que criou as suas para se valer dos seus serviços, mas sob controle direto. Em seguida, contra o Partido, naqueles países em que ele era ou é único. Finalmente contra o Mercado, que almeja reduzir a universidade a um mero mecanismo de acumulação de capital físico ou financeiro.
Vou focalizar, resumidamente, os principais protagonistas de constrangimentos à autonomia universitária no Brasil.
A primeira legislação sobre as universidades não foi uma lei, mas um decreto do Governo Provisório, em 1931, no qual o controle estatal sobre elas não era sequer dissimulado. A exposição de motivos do Ministro da Educação, o fascista estrito senso Francisco Campos, pretendia tutelar o espírito universitário, que, com o tempo, viria a adquirir a experiência e o critério indispensáveis para a autonomia plena, fosse no terreno administrativo, fosse no didático.
Desde então, de tempos em tempos irrompem projetos coercitivos da autonomia universitária, que procuram impor mais e mais controles e restrições orçamentárias, além do que pretendem estabelecer o que as universidades públicas devem ensinar, como e a quem.
Parece que há uma resistência atávica do Estado brasileiro em reconhecer a autonomia universitária, mesmo quando a lei manda, mesmo estando inscrita na Constituição. Busca enquadrá-la mediante diversos formatos organizacionais. Primeiro como autarquia, isto é, gerida pelas próprias normas, mas logo a submeteram a uma pletora de leis, decretos e portarias que amarraram de tal maneira a administração universitária, que o termo autarquia assumiu o significado do seu oposto. Depois, inventou-se a modalidade fundacional para as universidades mais recentes, o que não adiantou muito, porque também para elas a sanha controlista governamental dirigiu mais e mais normas e regulamentos. Assim foi que autarquias e fundações tiveram de criar instituições peri-universtátias, de direito público e de direito privado, para contornar tal sanha controlista.
Agora, o Mercado. Desde meados do século XX, a busca de recursos provenientes da venda de bens e serviços passou a ser considerada um mecanismo de compensação das dotações financeiras congeladas ou minguantes. O ensino, a pesquisa, a assistência e a extensão passaram a ser definidos como mercadoria vendável – ou não. Claro está que a autonomia universitária perde com isso, pois os interesses empresariais são bem distintos dos acadêmicos, como se pode ver no caso do imediatismo na aplicação, da propriedade dos resultados e das cláusulas de segredo.
O atual governo federal requentou ideia da segunda metade da década de 1990 e propôs projeto de lei que resultará, se aprovado, numa profunda reforma das universidades federais. Na concepção do atual ministro, a autonomia administrativa implicaria contrato de gestão com organizações sociais; e a autonomia financeira adviria de fundos de investimento lastreados nos bens imóveis das universidades e em receitas de fontes diversas, como a prestação de serviços e a cobranças dos cursos de pós-graduação lato senso. No entanto, além de submeter ao mercado as finanças e a gestão das universidades federais, o projeto mantém e até amplia o controle ministerial. Uma mistura da idealização do modelo norte-americano, tão valorizado na atual conjuntura, com a realidade filo-fascista do Estado Novo.
Depois do Estado, as Igrejas. A Igreja Católica tanto atacou a Universidade do Distrito Federal, criada no Rio de Janeiro por Anísio Teixeira, em 1935, por abrigar o que entendia serem professores subversivos e comunistas (parece até uma linguagem revivida) que, seis meses depois da inauguração, ela sofreu intervenção, com um dirigente católico leigo nomeado reitor e liquidante. Até hoje, a UDF foi a única universidade pública extinta no Brasil. Tomara que seja a última.
Em 2018, alguns dias antes do segundo turno da eleição presidencial, deputados da bancada evangélica da legislatura anterior lançaram alentado Manifesto, quase um programa de governo. No que dizia respeito ao ensino superior, o texto endossou a autonomia universitária prevista na Constituição e propôs um interessante programa de Alfabetização Solidária para as universidades públicas. Lamentavelmente, descambou para um contraditório controlismo que talvez tenha se baseado no documento do Banco Mundial listado na bibliografia. Banco falando de universidade, nunca dá certo, nem com sotaque religioso.
Finalizando esta breve mensagem, gostaria de precisar um ponto essencial. Não é fácil ter uma visão ampla do que seja uma universidade devido à multiplicidade de suas atividades, da Física à História, das Engenharias à Educação, da Medicina à Linguistica, etc. Apenas fazendo um curso de graduação ou pós-graduação não dá para se ter uma visão do que seja a universidade.
Nas brasileiras, mais dificilmente do que nas européias. Isso, por causa da formação de nossas mais antigas universidades, a partir de unidades profissionais isoladas, de modo que os cursos tendem a se realizar todos dentro de uma unidade acadêmica, quase sempre ignorando as outras. Até nas universidades mais recentes observa-se essa tendência inercial, que a reforma universitária de 1968 não foi capaz de superar, apesar dos mecanismos integradores nela previstos. Temos muito a fazer nesse sentido.
As universidades são instituições complexas, que demoram muito a amadurecer, e demoram tão mais quanto maiores e mais frequentes forem as interferências perturbadoras em sua autonomia. Por isso, elas precisam de estabilidade nas relações com o Estado e a Sociedade. As universidades não têm finalidade única e de fácil mensuração, como maximizar lucros, por exemplo. Por isso, especialistas em organização empresarial não as compreendem, mesmo tendo obtido nelas títulos de bacharel, mestre ou doutor.
As finalidades das universidades são múltiplas, que a tríade ensino, pesquisa e extensão está longe de contemplar. Elas podem até ser berçários de empresas, mas isso não passa de um subproduto de sua atividade. E não faz parte do espírito universitário o tal empreendedorismo, expressão polissêmica muito valorizada pelo projeto de lei do atual ministro, expressão que tem servido para qualificar atividades tão distintas como as expedições dos bandeirantes escravizadores de indígenas e as práticas caritativas dos missionários religiosos. Pior do que isso, a ênfase no empreendedorismo desvia a atenção da desindustrialização e do desemprego.
Concluo com os votos para que esta Casa Legislativa reconheça a importância da autonomia das universidades públicas e não deixe de verificar in loco o que elas fazem com esse direito tão longamente reivindicado.
Luiz Antônio Cunha. Professor da UFRJ. Íntegra de palestra na Câmara dos Deputados em 29 de outubro de 2019.