Por Carlos Alberto Marques
O retorno das atividades de ensino na UFSC, maior universidade catarinense, tem gerado discussões, especialmente internas, que trazem à tona vários traumas e traços de um anacronismo pedagógico no funcionamento acadêmico e institucional.
A adoção do ensino remoto, enquanto perdurarem as restrições epidemiológicas pela Covid-19, parece óbvia para grande parte da sociedade, que por isso tem cobrado das autoridades da UFSC a letargia em resolver a situação. Para além de aspectos administrativos devido às restrições, as dificuldades de retomada no ensino têm outras múltiplas razões, como um certo grau de tecnofobia no meio da comunidade universitária – particularmente sobre a educação a distância (EaD), que sabemos contém diferenças com o ensino remoto –, refletindo antigos problemas de gestão acadêmica e institucional.
Já ofereci, em outra oportunidade e espaço¹ uma reflexão sobre o que hoje chamo de anacronismo pedagógico das universidades federais, incluindo a UFSC. Trago aqui partes daqueles argumentos e sugestões. É inegável o papel e a relevância científica das IFES, no campo da pesquisa e do seu sistema de pós-graduação, mas, de outra parte, é necessário constatar que na esfera do ensino de graduação não se têm notícias de grandes e significativas inovações pedagógicas nas práticas didáticas. Ainda que se considere que a formação profissional nas universidades seja de nível suficiente, ela reflete muito as tímidas ambições de um projeto subalterno de desenvolvimento da nação, diante do resto do mundo que investe fortemente em inovação C&T, a exemplo da indústria 4.0. Portanto, devemos almejar estar em um nível muito mais elevado considerando a produção e a acumulação contemporânea de conhecimento e a necessidade de resolver nossas profundas desigualdades sociais e econômicas.
Para superar esse anacronismo pedagógico será necessária uma reforma acadêmica de natureza mais ampla que a curricular, que forneça um cabedal teórico para dar suporte à superação de métodos de ensino baseados na transmissão (oral) de conteúdos por parte do professor. Enfim, necessitamos construir uma nova cultura pedagógica e que ela faça parte de um Projeto Pedagógico Institucional (PPI). Uma reforma que atualize currículos e modernize métodos, fazendo com que os alunos compreendam e dominem os fundamentos básicos e desenvolvam a capacidade analítica sobre os conteúdos das áreas do conhecimento que lhes dão identidade profissional. É preciso ainda ter o contexto como fonte e objeto de estudo, em uma visão interdisciplinar, cujo eixo dinamizador seja a curiosidade e a prática sistemática da pesquisa, dinamizadas nas redes de mobilidade e interações estudantis com o mundo, via mídias e informação virtual.
Mas, infelizmente, as universidades são organizações pesadas, têm formas e práticas administrativas que as dificultam agir, ainda assim isso não deve impedir o reconhecimento que precisamos mudar. Esses poucos princípios que elenquei são, na minha opinião, a expressão de um modelo moderno de universidade que identifico e defendo, mas que não aprofundo mais por razões de espaço. De modo que as linhas acima servem apenas para sinalizar as dificuldades atuais em se aceitar novos instrumentos de mediação didática digitais (computador, internet, aplicativos etc.) para se praticar um modelo híbrido, do qual faz parte o ensino remoto.
Quanto à tecnofobia (aversão à tecnologia), é necessário distinguir suas origens, formas e consequências, que podem ser muitas. É inegável que o uso das mídias está muito presente em nosso dia a dia, especialmente entre os jovens. Os artefatos tecnológicos produzem soluções, conectam pessoas e oferecem informações boas e ruins. “Educam” e deseducam. Por que então não se faz (mais) uso delas no ensino? Uma razão é o reconhecimento de que o ato de educar não é o mesmo que informar; o primeiro requer diálogo, interação aluno-professor e esses com aquilo que precisa ser conhecido, compreendido, manipulado ou produzido.
Nenhuma teoria pedagógica séria coloca em questão a importância do caráter presencial da educação na construção do vínculo professor-aluno ou deixa de salientar que a construção do conhecimento não se restringe à sala de aula. Portanto, é justa a preocupação de que um desses sujeitos, o professor, possa desaparecer ou ser trocado pelo computador, trazendo consequências pedagógicas ao aprendizado e minimizando o seu próprio lugar profissional detentor de vários saberes, de modo a transformar o ensino em algo padronizado, precarizado, acrítico e desumanizado. Enfim, mais de adaptação e acomodação dos sujeitos do que propriamente sujeitos transformadores.
Há ainda razões políticas para a tecnofobia aqui na UFSC. São cicatrizes em sua história, como quando no período dos anos de 2000 foram oferecidos cursos na modalidade de EaD envolvendo o Laboratório de Ensino a Distância (LED) e a Pós-graduação em Engenharia de Produção, que repercutiu negativamente na mídia e, inclusive, com diligências e penalizações por parte do MEC.
A visão e práticas empreendidas foram de uma E-Universidade, funcionando paralelamente às atividades da universidade, com docentes da UFSC contratados como prestadores de serviço, recebendo bolsas, muitas até vultosas. Essa visão e experiência é ainda hoje defendida e representada justamente pelo profissional que ajudou a criar o LED, que por meio de um artigo público de celebração da EaD (“Por que a UFSC nega seu DNA e proíbe a difusão do conhecimento?”) fez críticas à UFSC pela sua suposta ausência e inoperância. Outro exemplo dessas razões políticas, esse mais recente, é a polêmica e desastrosa Operação Ouvidos Moucos, a qual trouxe novamente marcas extremamente negativas para a EaD e toda a UFSC.
De modo que adotar a modalidade a distância, mesmo via ensino remoto, não é uma tarefa simples para a UFSC, temos um histórico que não nos favorece. Isso em absoluto significa deixar de reconhecer que nem tudo o que se faz e se emprega com mídias no ensino é ruim ou esteja contaminado por práticas errôneas. A UFSC faz muita coisa boa com a EaD e atividades pedagógicas mediadas por tecnologia. Desde 2004 a universidade decentralizou a EaD aos Centros e cursos, a formação de professores se deu via a Universidade Aberta do Brasil (UAB) e criou-se uma Secretaria específica para essa modalidade. Contudo, é muito pequeno o uso das mídias e tecnologias no cotidiano das disciplinas e práticas de ensino.
O fato é que esses dois aspectos, tecnofobia e anacronismo pedagógico, se manifestam no modus operandi da gestão acadêmica em todas as esferas da universidade. Agora, na pandemia, isso impacta e dificulta as decisões que alteram o modelo tradicional de ensino, ainda praticado por muitos docentes. É isso que explica muito uma certa letargia ou lentidão nas definições sobre a data e as formas de retorno das atividades de ensino, obviamente respeitando as restrições da Covid-19. Isso tudo é percebido por muitos, interna e externamente, como uma incapacidade de gestão e até mesmo um descompromisso com a sociedade. Algo que também, involuntariamente, reforça as maldosas críticas sobre a validade da ciência, do local onde ela se desenvolve, dos profissionais que com ela trabalham e do financiamento público que as instituições recebem.
A nossa dignidade profissional está sendo vilipendiada e o prestígio de 60 anos da UFSC está sendo corroído porque não retornamos ainda às atividades de ensino. A corrosão se agrava quando a reitoria da instituição não explica à sociedade as razões para tal. Mas aumenta mais ainda se as universidades públicas não se desafiarem à renovação pedagógica e não iniciarem uma discussão sobre uma ampla reforma institucional. Enfim, a universidade é por sua natureza e função social obrigada a inovar sempre.
1 http://www.apufsc.org.br/2015/04/22/a-universidade-e-seus-desafios/
Professor do CED / UFSC
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