Questionário enviado para mais de 6 mil estudantes de pós-graduação, professores e pós-docs revela que apenas 10% das pós-graduandas estão conseguindo realizar suas pesquisas
A química Lívia Soman, de 37 anos, mal havia saído da licença-maternidade e começava a engrenar novamente em suas pesquisas com fungos da biodiversidade brasileiro em busca de compostos potencial para uso humano quando São Paulo adotou medidas de isolamento social para conter o avanço do coronavírus. A cientista da Unifesp de Diadema se viu, então, diante da necessidade de retornar toda sua atenção para a filha de 1 ano e dois meses, que já não tinha mais como ir para a escolinha, e os cuidados com a casa.
Pesquisadoras mulheres, especialmente as com filhos, têm visto sua produção científica despencar com as restrições impostas pela pandemia de covid-19. Se o isolamento trouxe dificuldades como um todo para a ciência, que teve de se afastar dos laboratórios e das possibilidades de ir a campo, paras as mães, até mesmo escrever artigos, algo teoricamente simples no modelo de home office, se tornou quase impossível.
Isso tem sido observado em todo o mundo e também no Brasil. Publicações científicas têm feito alertas de que a submissão de artigos por mulheres caiu ou se manteve estável enquanto as de homens cresceram nesse período de pandemia.
Em abril, Elizabeth Hannon, editora adjunta do British Journal for Philosophy of Science, se manifestou alarmada no twitter sobre a queda drástica do número de submissões de artigos que recebia de mulheres. “Número insignificante de envios para a revista de mulheres no último mês. Nunca vi algo como isso”, escreveu.
Várias mulheres de diversas partes do mundo reagiram ao post, contando estarem frustradas por mal conseguir lidar com os cuidados infantis, os afazeres domésticos (muitas que tinham ajuda em casa deixaram de ter) e com o trabalho em meio ao isolamento e lockdown.
O portal americano Inside Higher Education, especializado em educação superior, ouviu editores de outros periódicos científicos e ampliou o cenário. David Samuels, co-editor de Estudos Políticos Comparados, afirmou para o portal que as submissões de artigos à sua revista haviam crescido 25% até o fim de abril, mas o aumento havia sido impulsionado inteiramente por homens.
Cenário brasileiro
Um grupo no Brasil voltando para discutir maternidade e paternidade no universo científico, o Parent in Science, resolveu checar se o problema também estava acontecendo aqui e se deparou com um quadro parecido. O estudo foi passado com exclusividade ao Estadão.
Mais de 6 mil pesquisadores (entre pós-graduandos – a maioria –, docentes e pós-docs) responderam a um questionário sobre como a pandemia e o isolamento estão afetando seu trabalho.
Se de um modo geral o trabalho remoto afetou pesquisadores de pós-graduação (apenas 1/3 está conseguindo trabalhar de maneira remota), entre as mulheres, apenas 10% estão conseguindo realizar suas pesquisas. Entre os pós-docs, o cenário parece ainda mais grave: apenas 5% das mães conseguem manter sua produtividade durante a quarentena.
Entre os docentes, 20% dos homens sem filhos disseram não terem conseguido finalizar artigos para submissão durante a pandemia, entre mulheres com filhos, foram 51,38%.
Com base nos resultados, o grupo enviou uma carta à revista Science comentando a preocupação com as mães cientistas. O texto foi publicado na edição da semana passada.
“A desigualdade de gênero na ciência é uma questão urgente e a maternidade desempenha um papel importante nela. Os últimos anos testemunharam o surgimento de muitas iniciativas que desencadearam mudanças para solucionar esse problema. Não podemos permitir que essa pandemia reverta avanços e aprofunde ainda mais a lacuna de gênero na ciência”, escreveram as cientistas lideradas pela bióloga Fernanda Staniscuaski, da UFRGS, que coordenou o estudo.
“Nossa preocupação inicial era com as alunas de pós-graduação, que não teriam como continuar trabalhando nas suas pesquisas com filho para cuidar em casa, ainda mais se tivessem um corte nas bolsas e se tivessem de cumprir o prazo original. A Capes prolongou as bolsas e o tempo, mas vimos que só 10% delas estão conseguindo trabalhar nas suas teses. Então docentes começaram a nos procurar para falar que não eram só os alunos que estavam tendo problema”, afirma Fernanda.
A diferença de gênero é clara. Homens sem filhos são os que mais estão conseguindo trabalhar: 36% dos entrevistados. Mas o que têm filhos também tiveram queda na produção. Só 18% dos alunos de pós disseram estar trabalhando sem dificuldades. Essa redução da atividade também leva em conta fatores práticos, como laboratórios fechados.
Fernanda afirma que o levantamento também pode ter um viés na comparação porque mulheres foram a maioria a responder o questionário, mas pondera que a situação real não deve ser muito diferente. Talvez se os homens estivessem sofrendo mais com essa situação também teriam tido interesse em participar da pesquisa.
Leia na íntegra: Estadão