Por Eduardo Meditsch
Só os mais velhos podem lembrar, porque em 2019 já faz 55 anos do feito: um dos maiores estelionatos de nossa história foi lançado pela mídia dominante da época em apoio à recém instituída ditadura militar. Como agora, dizia-se que o país estava quebrado, por culpa das políticas sociais e da corrupção dos governos trabalhistas anteriores. Os poderosos Diários e Emissoras Associados, de Assis Chateaubriand, que reuniam uma cadeia de jornais e rádios por todo o país além da TV Tupi, lançaram a campanha patriótica “Dê ouro para o bem do Brasil!” em apoio ao general Castelo Branco.
Comovidos pela campanha, milhares de pessoas humildes e da classe média que haviam participado das “Marchas pela Família”, convocadas pelo conservadorismo católico, empresários e a CIA, pedindo o golpe militar contra Jango, fizeram filas para doar dinheiro, joias da família e até suas alianças de casamento. Em troca, recebiam alianças de latão gravadas com a frase “Dei ouro para o bem do Brasil”, que portavam com o mesmo orgulho com que hoje vestem camisas da CBF. A revista O Cruzeiro informou, em junho de 1964, num balanço parcial, que já haviam sido arrecadados 400 quilos de ouro e meio bilhão de cruzeiros. Ninguém soube da soma final ou do destino desta riqueza, graças à censura da ditadura. O Brasil continuou quebrado, os militares promoveram um arrocho sem precedentes e a desigualdade social foi gigantesca enquanto ela durou.
Dizem que quando a história se repete, a primeira vez ocorre como tragédia e a segunda como farsa. No Brasil, país criativo, conseguimos inverter essa ordem. A farsa do ouro pelo bem do Brasil se repete agora na tragédia das aposentadorias pelo bem do Brasil. A mídia de Chatô foi substituída pela Globo e o oligopólio que lidera, os católicos conservadores pelos evangélicos conservadores, a FIESP criou o pato amarelo e a CIA agora lava a jato, todos dizendo que o Brasil está quebrado pelas políticas salariais e a corrupção do PT, enquanto o arrocho está de volta desde o impeachment de Dilma e a desigualdade se multiplica sob Paulo Guedes. O espantoso é ver outra vez, como em 1964, muita gente pobre e remediada a fazer fila para doar sua aposentadoria (e a nossa) pelo bem do Brasil.
Foi o que aconteceu. E graças aos votos da maioria absoluta dos sempre bem aposentados senadores e deputados, milhões de trabalhadores e trabalhadoras pobres vão ter uma velhice mais miserável, seja pelo valor diminuído do benefício, seja porque ficarão desempregados, quando não conseguirem mais trabalhar, sem conseguir cumprir os requisitos para se aposentar. Nas bancadas catarinenses, o único voto contra foi do petista Pedro Uczai.
O governo e a mídia dominante (na cobertura mais parcial dos últimos tempos) destacam a economia de oitocentos bilhões de reais que o Estado fará nos próximos dez anos com esta reforma. Uma economia que servirá apenas para pagar mais juros da dívida, uma vez que os gastos com educação, saúde e segurança, por exemplo, estão limitados por teto constitucional e não vão aumentar, só diminuir, como já acontece na universidade e na ciência.
Os bancos mais lucrativos do mundo, que são os brasileiros, e os demais milionários que especulam com esta dívida impagável e nunca auditada, ficarão ainda mais ricos, enquanto o grosso da população afundará mais na miséria, e a classe média perderá segurança e poder aquisitivo. Com isso, encolherá também o mercado interno: indústria, comércio e serviços, tudo o que não vive de exportação, vai encolher junto. Mas a reforma da previdência não faria a economia crescer? Bem, não era bem isso, se apressam a corrigir os comentaristas de sempre, desmentindo o que diziam há seis meses atrás: agora serão necessárias as outras reformas, mais arrocho no povo e nos funcionários públicos, mais dinheiro para os rentistas, ainda menos mercado interno, o pibinho ainda mais inho, até chegarmos à situação do Chile, modelo do ministro Guedes, onde os mais velhos se suicidam e os mais novos colocam fogo nas ruas.
Com a promulgação da reforma pelo Congresso, provavelmente no início de novembro, os contracheques do próximo mês já virão encolhidos pelo aumento das alíquotas de quem entrou no serviço público até 2003 e teria direito à dita “aposentadoria integral”, que já não é bem assim e vai ficar menos ainda. Num salário de professor titular, os descontos (de previdência e imposto de renda) poderão superar os 40%, tanto para ativos quanto para aposentados. Para quem entrou depois disso, pesará mais o alargamento do tempo até a aposentadoria, e quando ela chegar, a surpresa com o seu valor encolhido.
Diferente de 1964, desta vez nem pensaram em cunhar anel ou medalhinha de latão para quem votou em Bolsonaro e apoiou sua reforma da previdência. Mas nem por isso estes devem desanimar. Afinal, vamos todos trabalhar mais tempo e receber bem menos, mas foi pelo bem do Brasil!
Eduardo Meditsch. Professor aposentado.