Quatro em cada cinco professores trabalham além das 40h
Na UFSC, um terço dos docentes já recebeu diagnóstico de stress
São 4h30 da manhã e o professor Sérgio Murilo Petri, 46 anos, já está a postos para começar mais um dia de trabalho. É de madrugada, no silêncio de casa, que ele encontra tempo para responder alguns dos mais de 100 e-mails que recebe por dia e as mensagens de WhatsApp. Depois, deixa os filhos na escola e segue, às 7h30, para o Departamento de Ciências Contábeis da UFSC (CCN/CSE), onde inicia oficialmente sua rotina de professor universitário. Como docente, ele é responsável por ministrar disciplinas na graduação e na pós – que juntas somam 30 horas semanais –, está envolvido em projetos de pesquisa e extensão e, atualmente, orienta quatro graduandos, dois mestrandos e uma doutoranda, além de 11 estudantes em regime de Educação à Distância (EaD/UFSC) e três estagiários. No último ano, o professor produziu 40 artigos e participou de três eventos nacionais de Ciências Contábeis. Editor chefe da revista do Conselho Regional de Contabilidade, ele também faz parte de comissões que organizam ao menos quatro eventos anuais na área e, todos os anos, capacita as comissões de validação das Ações Afirmativas da UFSC.
O tempo que Sérgio dedica para cumprir todas essas funções passa bem longe de caber dentro das 40 horas semanais para as quais foi contratado, em regime de Dedicação Exclusiva. A pesquisa “Nós, docentes da UFSC”, elaborada pelo Laboratório de Sociologia do Trabalho (Lastro) em parceria com a Apufsc-Sindical, demonstrou que Sérgio não é exceção, mas sim a regra: 4 em cada 5 professores afirmam que trabalham além da jornada prevista em seus contratos. Segundo o relatório, as atividades mais frequentes dentro da tríade ensino-pesquisa-extensão, como dar aulas na graduação e pós, orientar trabalhos nesses dois níveis e coordenar projetos de pesquisa não são as únicas tarefas dos professores. “Uma infinidade de outras responsabilidades se soma a essas atividades principais e cria uma pista recheada de obstáculos a quem gostaria de se dedicar, sobretudo, à pesquisa ou ao desenvolvimento de ciência, tecnologia e arte”, aponta o relatório.
Para Lucídio Bianchetti, 66 anos, professor aposentado da UFSC e referência na pesquisa sobre precarização e intensificação do trabalho docente, a programação semestral de 40 horas é “a coisa mais fantasiosa” que já viu. Isso porque uma série de atividades realizadas pelos professores, como palestras, orientação de alunos e participação em eventos não entra nessa soma, o que faz com que os professores acumulem mais tarefas do que podem dar conta dentro do expediente. A estratégia para cumprir tantas demandas é estender a jornada, levando trabalho para o espaço doméstico. De acordo com a pesquisa, as atividades realizadas com mais frequência pelos docentes da UFSC fora do expediente não são atividades de lazer, mas sim de trabalho. Cerca de 70% afirmam preferir trabalhar em casa por sofrerem menos interrupções, estarem em um ambiente confortável e com mais disponibilidade tecnológica. Um a cada três docentes considera importante a possibilidade de conciliar o trabalho com as atividades domésticas. Estender a jornada noite adentro e nos finais de semana também apareceu entre as respostas, o que reforça os indícios de prolongamento do trabalho para além do formalmente contratado, segundo o relatório.
Autor do livro “Publique, Apareça ou Pereça”, Lucídio, que já integrou a Comissão de Avaliação da Capes e o Comitê da Área de Educação do CNPq, também aponta o produtivismo acadêmico como causa para a sobrecarga do trabalho docente. “Essa lógica da empresa dentro da universidade faz você entrar em uma linha de superprodução, numa concorrência violenta para conseguir financiamentos e bolsas. Seu colega, em vez de ser o seu parceiro de pesquisa, vira seu concorrente. Isso torna a universidade um ambiente tóxico”. Professor universitário há mais de 40 anos, ele explica que essa perspectiva produtivista, inerente ao mundo empresarial, foi migrando para o ambiente universitário progressivamente a partir da década de 1960, nos Estados Unidos. A mesma lógica chega ao Brasil no início dos anos 1990, por meio de mudanças estratégicas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que altera seu foco e passa a formar pesquisadores, no intuito de desenvolver os programas de pós-graduação no país.
A partir daí, os métodos de avaliação dos programas passam a valorizar excessivamente a quantidade de produção científica acadêmica, dando menos ou nenhuma atenção à sua qualidade, à formação e ao bem-estar dos pesquisadores. Segundo Lucídio, isso impacta diretamente a vida dos docentes, que precisam de tempo e concentração para exercer o trabalho intelectual. “É preciso ter autonomia para pensar sobre o trabalho, refletir, pesquisar de novo. Quando você entra na lógica produtivista, não é mais você quem define nem o objetivo, o meio ou o fim do seu trabalho, ou seja, o trabalho passa a ser alienado. E disso resultam consequências até mesmo patológicas”, afirma o professor.
Consequências patológicas
Sérgio Murilo Petri já sentiu na pele as consequências físicas dessa sobrecarga. Em 2019, no fim do último semestre, precisou se desdobrar em bancas de TCC, processos seletivos de mestrado e doutorado e dar aulas no lugar de colegas que saíram do Departamento, além do trabalho habitual. Em um único dia, no feriado de 15 de novembro, elaborou 23 provas diferentes para aplicar às suas turmas. Terminou o ano com sintomas de estresse e teve de buscar ajuda médica. Dados da pesquisa demonstram que 64% dos docentes sentem estresse relacionado ao trabalho e um terço já recebeu diagnóstico médico da doença. Quase um em cada cinco já foi diagnosticado com algum transtorno psicológico, em consequência da profissão. Além das questões relacionadas à saúde mental, cerca de 20% dos professores participantes da pesquisa confirmam que já receberam diagnóstico de lesão por esforço repetitivo (LER) e/ou distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho (DORT).
Para a professora Marcela de Andrade Gomes, coordenadora do Curso de Psicologia da UFSC (PSI/CFH), o adoecimento psíquico de professores está se tornando mais visível. Ela aponta como causas principais, além da sobrecarga de trabalho e acúmulo de funções, a falta de reconhecimento social e o que chama de “campanhas difamatórias” contra as universidades públicas. “Muitos professores chegam na coordenação do curso com a narrativa de que não dão conta. Acabam individualizando um problema que é maior, estrutural e coletivo. A educação nunca foi prioridade no projeto político do país. Esse é o paradoxo que o professor vive, e não é culpa dele, é algo histórico e institucionalmente criado.” Dados da pesquisa do Lastro apontam que mais da metade dos respondentes considera que seus esforços não são devidamente reconhecidos. Além disso, a terceira maior preocupação relatada pelos docentes em relação à carreira é referente a diversos aspectos das condições de trabalho, entre elas o volume, a sobrecarga e a perseguição ideológica.
Zebras gordas?
No ano passado, em mais de uma ocasião, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, mostrou seu total desconhecimento sobre a carreira de professor universitário (embora ele também seja um). Chegou a dizer que estava atrás da “zebra gorda, que é o professor de uma federal, com dedicação exclusiva, que dá oito horas de aulas por semana e ganha de R$ 15 mil a R$ 20 mil por mês”. Um estudo do Banco Mundial no entanto, revela que apenas 2,9% dos professores universitários no Brasil alcançam o último nível da carreira, sendo necessários, em média, 25 anos de serviço para chegar ao topo. Além da falácia salarial, outro equívoco na fala do ministro é a de que as atividades do professor terminam na sala de aula. Rafael da Cunha Lara, pesquisador da área de Educação e Sociologia Política da UFSC, em sua pesquisa com docentes da pós-graduação em Educação, listou pelo menos 80 tipos de atividades realizadas pelos professores. Elas compõem o chamado “trabalho invisível”, ou seja, todas as partes do processo que são cruciais para que ele aconteça, mas que não ficam evidenciados no resultado final. Estudo e preparação de aula, correção de trabalhos, atribuição de notas, desenvolvimento de atividades e provas, são exemplos do trabalho que não é contabilizado nas 8 horas de aula apontadas por Weintraub.
Além das tarefas relacionadas à ensino, pesquisa e extensão, os professores também precisam assumir responsabilidades de gestão da universidade, mesmo sem preparação técnica para isso. Foi assim para Juliano Andreoli Miyake, 41 anos, professor e ex-subchefe do Departamento de Ciências Morfológicas do Centro de Ciências Biológicas (MOR/CCB): “Não fiz administração, eu sou dentista. Tenho muito mais a oferecer nas áreas para as quais fui contratado, que é para dar aula, trabalhar em pesquisa e fazer extensão, do que resolvendo problemas burocráticos.”
Em períodos em que a demanda de trabalho é mais intensa, o professor relata sofrer com insônia e precisar de análise terapêutica para ajudá-lo a lidar com todas as questões de ordem psíquica. Por isso entende que, mesmo quando o cargo é remunerado – o que não é o caso da subchefia –, o retorno financeiro não é suficiente para compensar o estresse que o acúmulo de funções acarreta. “Eu não ganho função gratificada, que é um valor irrisório, mas se ganhasse, esse dinheiro teria que ser aplicado em tratamento de saúde.”
Em tempos de WhatsApp…
Responder mensagem a qualquer hora do dia ou da noite, mesmo aos finais de semana, seja por WhatsApp ou redes sociais, é uma prática que já se tornou comum no cotidiano das pessoas. Porém, quando incorporadas à vida profissional, essas ferramentas acabam se transformando em um canal extra para recebimento de demandas, tornando cada vez menos delimitada a fronteira entre a esfera profissional e a pessoal na vida do docente. Rafael usa o termo “ubiquidade” para caracterizar essa “presença e disponibilidade constantes” que os usos de dispositivos digitais e móveis impõem na vida dos professores. Dados da pesquisa “Nós, docentes da UFSC” demonstram que 75,5% dos respondentes afirmam interromper momentos de lazer a fim de atender às demandas que chegam por esses dispositivos, o que faz com que 80,7% considerem que não há mais uma separação nítida entre trabalho e lazer, bem como entre dias úteis e não úteis. Essa relação vai se fortalecendo culturalmente entre os próprios professores e estudantes quando, de maneira positiva, há um reconhecimento daqueles que respondem com prontidão e estão sempre conectados, observa Rafael.
Carmen Rial, 65 anos, coordenadora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, passa pelo oposto: recebe reclamações quando não atende imediatamente a certas demandas. A professora, que também é presidente do Conselho Mundial de Associações Antropológicas (WCAA), diz responder, no mínimo, entre 50 e 60 e-mails diariamente. “É um trabalho incessante, é como secar a água do mar. E se você demora um ou dois dias para responder o e-mail, a pessoa já envia outro reclamando. Antigamente quando a gente ia para fora da universidade, a gente saía. Agora não, a gente sai mas continua aqui, porque os e-mails e mensagens permanecem”. A situação ocorre com frequência e é traduzida em números na pesquisa do Lastro. Entre os respondentes, quase 75% afirmam que passaram a trabalhar mais no mesmo período de tempo, comparado a antes da inserção das tecnologias digitais no trabalho e 83,3% concordam que são multitarefas. Para Rafael, o termo “Dedicação Exclusiva”, que se refere ao regime de contratação do professor, “vem sendo levado às últimas consequências”.