Güenther: viver, pensar e discutir a universidade

O Boletim da Apufsc publica a última parte da entrevista realizada em 2005 com o professor Raul Güenther, encerrando a homenagem registrada nas três últimas edições do informativo.  A entrevista foi realizada pelo historiador Cesar Félix. Raul fala das últimas greves, da primeira eleição da Andes e do momento de maior força do movimento docente:

 

Boletim da Apufsc – Por esse motivo, o senhor acha que os professores não estão participando das últimas greves?

Raul Güenther – Veja bem, as pessoas não estão participando das últimas greves por muitas razões, mas também porque desde o começo os professores não acreditam na perspectiva colocada na greve. Elas podem não ter uma análise política clara, mas têm uma intuição. E não há, eu não conheço na história da humanidade, algum momento em que uma liderança convenceu o pessoal a se atirar do abismo. Não existe isso. Então, você tem que discutir com as pessoas, saber o que elas estão pensando, fazer uma análise mais concreta. Veja a greve atual [de 2005]. Se você olhar o Boletim, você vê o seguinte na terceira linha: “mesmo que persista a cegueira política do campus é novamente por causa do movimento…”. Como assim? Há 150 pessoas que vão à assembléia e você vai dizer que os outros estão cegos? Não estão. Eu estou convencido disso porque eu estou fazendo greve em um Departamento de setenta pessoas. Destes setenta, nós estamos em dois na greve. A questão é a seguinte: com esse quadro, eu converso com as pessoas e a impressão que me dá é que eu acho que os outros têm razão, não eu.

Apufsc – Na sua análise, as últimas greves já nascem fracas. Por qual motivo?

Raul Güenther – Veja bem, vou pegar novamente o caso da greve atual. Eu acho que a greve nasceu fraca e não conseguimos reverter porque estamos fazendo análises emocionais – isso você pode ler nos editoriais do Boletim de Greve. Claro que também precisa de emoção, mas as pessoas não se guiam só por isso. As pessoas que não vão à assembléia também pensam. Nós temos de encontrar maneira de dialogar com elas. Eu tenho ido à Apufsc e alguns dirigentes da greve, não da Apufsc, me dizem: “Raul, me enchi de conversar”. Eu pensava: “como, me enchi? Se é isso, exatamente, o que temos que fazer – conversar” . Aí eu lembrei de uma brincadeira que nós fazíamos. O professor Jean-Marie pode te confirmar isso. Sabe qual era o grande trabalho que nós fazíamos nas primeiras greves, de 80, 81, 82? Ir na sala de aula fazer adesão. As greves não saíram assim, somente com um chamado. Na greve nós íamos lá. Eu brincava: “olha, Jean-Marie, esse negócio aqui é uma coisa muito repetitiva, nós temos que construir um robô para fazer isso”. A tarefa do presidente é muito importante. Eu ia nos lugares que estavam contra. Por exemplo, eu ia no hospital falar com o pessoal da medicina. Eles não receberiam um professor, mas o presidente da Apufsc eles recebem. Esse era o nosso trabalho, todo dia, o dia inteiro. Foi nessa época que eu tava contando que a gente tinha que construir um robô para fazer isso. Depois, o tempo passou e veja só: hoje eu estou metido com a robótica. Fico pensando que o Jean-Marie deve pensar: “eu acho que o Raul entrou para a robótica só para construir aquele robozinho”. Mas deixando a brincadeira de lado, não era brincadeira, não. A gente apanhava verbalmente, tinha que discutir com os professores, com os estudantes… Tem que ter essa disposição de ouvir, ouvir e ouvir. Senão, como é que você vai conversar com as pessoas? 

Apufsc – O que fazer?

Raul Güenther – Temos que refazer a estratégia e tem outra coisa, isso também eu acho que é uma coisa desse momento, dessa conjuntura. No entanto, isso tende a se prolongar e se prolongar pelo tipo de tratamento que está tendo também. Portanto, eu acho que isso é uma coisa que está faltando para o nosso pessoal. Estudar e refazer a estratégia e digo mais: muita gente poderia ajudar nisso, inclusive eu. Acho que a gente deveria em algum momento começar a repensar. Eu nunca saí à frente disso e nem penso nisso, mas me disporia a ajudar nessa coisa que eu acho necessária. 

 

Apufsc – O primeiro presidente da Andes, professor Osvaldo Maciel, foi escolhido no 1º congresso. Já o segundo presidente foi eleito em votação direta e nacional. Nesse momento, o senhor fez parte da nova direção. Como se deu essa eleição? 

Raul – Quando nós formamos a primeira diretoria da Andes no congresso, já existiam duas correntes no movimento, uma que era puxada pelo professor Maciel e a outra que era puxada pelo professor Pingueli. Penso que o congresso teve a sabedoria de colocar os dois juntos na diretoria, o Maciel foi presidente e o Pingueli Rosa, da UFRJ, secretário-geral. Tocamos o movimento em frente. Veja o que aconteceu depois, na escolha do segundo presidente: Estava mais ou menos claro que teríamos duas chapas. Só que nós decidimos o seguinte: tem dois grupos, de visões diferentes. Então os dois grupos vão escrever dois documentos, fazendo uma análise da conjuntura da universidade, com as devidas propostas para enfrentar essa conjuntura. Isso seria remetido para o movimento para ser discutido e aí teríamos um Conad no Rio Grande do Norte para discutir o processo eleitoral. As duas correntes escreveram e ficaram conhecidas como a corrente dos pretos e a corrente dos azuis.

 

Apufsc – Por quê?

Raul – Porque uma imprimiu as propostas em mimeógrafo à tinta e outra imprimiu as propostas em mimeógrafo a álcool. Uma ficou preta e outra ficou azul. Nós, que estávamos com o Maciel, éramos os azuis e os outros eram os pretos, o pessoal do Pingueli. 

 

Apufsc – E o que aconteceu?

Raul – Nessa época, eu era o presidente da Apufsc em exercício e o Maciel era presidente nacional da Andes. Nós levamos essa discussão para o conselho de representantes da Apufsc e foi um debate muito acirrado. O conselho de representantes da Apufsc tomou a decisão que deveria ter uma composição. Quer dizer, aprovamos isso com o peso do presidente nacional da Andes, que era o professor Osvaldo Maciel. Olha só a importância do nosso conselho de representantes.

 

Apufsc – E foi tranqüila a aprovação do professor Maciel?

Raul – Sim, o professor Maciel sempre teve uma postura muito democrática. É verdade que ele argumentou, mas quando viu a proposta e nos ouviu, aceitou. Aí fizemos uma chapa só de composição em que o professor Pingueli foi eleito o presidente e eu fui o primeiro secretário.

 

Apufsc – O senhor falou que existia uma divisão. Por qual razão?

Raul – Era uma divisão baseada em como organizar o Sindicato. O pessoal ligado ao professor Pingueli tinha uma posição de formar uma federação, uma confederação de associações, e nós defendíamos que precisávamos de uma associação que tivesse a participação direta das pessoas. Então a eleição direta nos diferenciava, porque eles pensavam muito mais numa coisa constituída na base da representação, onde você tem vários sindicatos e aí um conselho de todos eles em que participam os presidentes, etc., e tomam as decisões nacionais. Esse conselho seria o órgão dirigente dessa federação, e nós achávamos que não, que o sindicato tinha que ter a participação direta dos professores. Era a diferença de visão. 

 

Apufsc – Mas nessa disputa vocês ganharam, porque isso dura até hoje…

Raul – Até hoje a eleição para a diretoria é direta. Na outra proposta, para os conselhos, as pessoas são sempre escolhidas nas assembléias. Essa é uma diferença fundamental de concepção. É uma coisa que vinculava mais à mobilização direta da categoria. Nós defendíamos mais isso. Mas eu devo dizer o seguinte: essa foi uma diferença inicial, depois isso foi assumido também pelo pessoal do Pingueli. Quando nós ganhamos isso nos congressos, eles também aceitaram e participaram dentro disso. Não havia uma diferença fundamental.

 

Apufsc – E quando foi que as diferenças apareceram outra vez?

Raul – Acredito que outro momento de diferenças veio depois, já quando a professora Maria José era a presidente do Andes e eu o secretário-geral, mas houve de novo uma composição entre as mesmas forças. O tema dessa vez foi à eleição do Tancredo Neves para presidente do Brasil.

 

Apufsc – Como aconteceu?

Raul – Existia uma concepção dentro da Andes, encabeçada pelo pessoal da professora Maria Jose, também pelo pessoal mais ligado ao professor Pingueli Rosa e pelo professor Luiz Mercadante, que nós deveríamos apoiar o Tancredo Neves na eleição do colégio eleitoral. Quero dizer: A Andes deveria apoiar o Tancredo.

 

Apufsc – E vocês queriam apoiar quem?

Raul – Nós defendíamos que a Andes é um sindicato autônomo e, portanto, não cabia a ela apoiar nenhum candidato a presidente. Cabia à Andes fazer o seguinte: chamar o Tancredo para um debate público, apresentar a ele as nossas reivindicações e pedir  que se posicionasse a respeito. Mas aí você me perguntaria, “mas, nós não deveríamos chamar também o Paulo Maluf?” E eu te respondo: Não, porque nós sabíamos quem era o Paulo Maluf no governo de São Paulo e o que ele tinha feito com a USP. O Paulo Maluf, nós repudiávamos, rejeitávamos naquele momento, pelo tratamento que ele deu para USP, Unicamp e Unesp. Muito bem, então nós defendemos essa posição e isso foi no Conad (Conselho Nacional dos Docentes) do Mato Grosso e veja bem, a diretoria da Andes queria apoiar o Tancredo, ou seja, pelo menos a maioria da diretoria. O Carlos Martins, que era vice-presidente, e eu defendemos essa posição de não apoiar e de fazer o debate com Tancredo Neves.

 

Apufsc – E conseguiram aprovar essa posição no Conad?

Raul – Levamos para o Conad, que aprovou a proposta. Não foi muito fácil, porque, de fato, era uma posição mais avançada, que muitos professores, como rejeitavam o Paulo Maluf, não entendiam de imediato. Eu viajei pelo Brasil inteiro para discutir isso com os professores, mas depois de você explicar as pessoas entendiam. Eu te digo uma coisa, eu acho que esse foi um momento absolutamente decisivo para a Andes, porque se você olhar o registro histórico, o Tancredo foi a muitas reuniões públicas para receber apoio e ele foi para a nossa uma reunião para fazer um debate. É diferente. Foi na UnB, nós estávamos lá, ele veio debater com a gente, pegou as nossas propostas. Foi depois da greve de 1984, uma greve muito difícil, longa, desgastante, mas que marcou profundamente a sociedade brasileira sobre a necessidade da universidade pública. Muitas pessoas pensam que foi uma greve derrotada. Materialmente, pode até ter sido, mas ela nos colocou na agenda nacional. E o Tancredo pegou nossas propostas e disse que acatava tudo. Era uma questão de nós discutirmos como as coisas seriam implementadas e as propostas seriam encaminhadas…

 

Apufsc – E isso aconteceu?

Raul – Essa fala do Tancredo foi obtida pelo fato da gente não apoiar simplesmente, mas pela firmeza de manter a autonomia da entidade e buscar um pronunciamento perante a essa representação dos professores. Foi uma coisa tão importante que, antes até da posse do Tancredo – que acabou não ocorrendo –, já tínhamos agendado uma audiência com o ministro da Educação, que era o Marco Maciel. Fomos atendidos três dias depois da crise de saúde do Tancredo. Chegamos lá, o Tancredo tinha acabado de ser internado, fomos recebidos pelo ministro da Educação e a primeira coisa que ele disse foi: “tudo que o doutor Tancredo disse vai ser cumprido, mas vocês aguardem que nós temos que acertar as outras coisas aqui primeiro”. Foi algo muito importante, que nos dividiu também naquele momento, mas, na verdade, era a divisão básica de uma concepção mais institucional com uma concepção mais de militância direta. 

Apufsc – A Andes superou bem essas diferenças?

Raul – Penso que conseguiu na prática superar as diferenças, até pela alternância de pessoas na diretoria. A gente conseguiu compor essas duas visões existentes e conseguimos entender que as duas eram importantes. Peguemos o exemplo do trabalho institucional, o professor Pingueli foi excepcional, pois a penetração dele como cientista permitiu que a gente tivesse apoio da SBPC para o nosso projeto de carreira, tivesse apoio da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Ele conseguia articular isso. Juntamos isso com o trabalho de militância direta que a gente fazia e conseguimos transformar isso num canal. Isso foi uma química importante que aconteceu nesse processo. Estou convencido que a composição que nós fizemos para a eleição da primeira diretoria estava absolutamente certa. É algo de que eu me orgulho muito, era uma chapa só. Eu era o único candidato nessa ocasião, o único candidato daqui, e era presidente da apufsc. Percorri todos os departamentos da UFSC, fui muito bem recebido, e, melhor que isso, recebi mais de 60% dos votos dos professores dessa universidade para eleição da Andes, repito, 60% dos professores foram votar, isso não é pouca coisa. Foi a primeira, claro, tem tudo isso, mas evidentemente receber uma votação dessa é um estimulo.

 

Apufsc – E num contexto no qual o senhor não era do grupo do candidato… 

Raul – É, eu não era do grupo do candidato, mas como era uma eleição de uma chapa única, os professores reconheceram a importância de nossa política de você fazer uma composição naquele momento.

 

Apufsc – Qual foi o momento de maior adesão ao movimento docente?

Raul – Me lembro que uma coisa assim absolutamente significativa foi a adesão à primeira greve, em 1980. Não só pela adesão, mas também pela participação dos professores. Muitos docentes estavam participando, muitos estudantes também. Outro dia eu comentava com um amigo que esse foi realmente o momento em que eu me senti trabalhando numa universidade. A universidade funcionava fora de sua normalidade. Mas o que funcionava era uma universidade onde as discussões ocorriam, com participação enorme dos estudantes e dos professores. Quando outros colegas contam como foi fico com inveja, porque eu já era dirigente, tinha muitas tarefas organizativas, então não conseguia participar disso tudo, mas quando me contavam, eu pensava: “puxa, era isso que a gente queria fazer com a universidade, com a instituição, colocar essa gente toda estudando, discutindo, vivendo a universidade”.