Uma omissão na legislação que trata do porte de armas de fogo tem levado biólogos a inesperadas passagens pela polícia. Impossibilitados de portar espingardas desde 2004 – data de criação do Estatuto do Desarmamento -, pesquisadores devidamente autorizados pelo Ibama para coletar animais têm tido armas apreendidas e licenças de trabalho negadas pela Polícia Federal.
Um abaixo-assinado que circula desde o ano passado entre diversas classes de biólogos deve ser encaminhado em breve a autoridades federais. O manifesto, assinado por pesquisadores das principais universidades e museus brasileiros, pede a criação de uma nova categoria legal, a de coletor/pesquisador, na lista dos profissionais autorizados a transportar armas.
Segundo o documento, a impossibilidade de coletar animais por tiro não afeta só a biologia básica. A criação de reservas e o controle de zoonoses também são dificultados.
“A gente tem o exercício pleno da profissão tolhido por causa de um preconceito contra a arma, que é uma ferramenta de trabalho”, afirma o ornitólogo Rômulo Ribon, da Universidade Federal de Viçosa, um dos articuladores do abaixo-assinado. “Você consegue ou não a licença dependendo da boa vontade do delegado.”
Apreensão e inquérito – B.T.T., biólogo ouvido pela Folha, não teve essa sorte com o policial que fiscalizou seu equipamento na volta de uma missão de campo na Amazônia. Mesmo apresentando documentação conforme a PF recomenda, ele foi barrado antes de um voo doméstico.
“O delegado apreendeu minha arma e ameaça me processar. Tive de pagar um advogado”, conta. “Ele está fechando inquérito agora e vai encaminhar ao Ministério Público, sugerindo que a arma seja devolvida. Vai depender de eles [promotores] aceitarem ou não.”
O delegado que inspecionou o biólogo aparentemente contrariou a recomendação do Sinarm (Serviço Nacional de Armas), administrado pela PF.
“A atividade do coletor de espécimes pode ser desenvolvida de forma lícita se ele tiver um certificado de registro de caçador junto ao Comando do Exército, e também -para não configurar um crime ambiental- uma autorização do Ibama para fazer o abate”, afirma Douglas Saldanha, delegado-chefe-substituto do Sinarm. “Ele precisa também transportar a arma desmuniciada, num estojo adequado, desmontada, e não pode usá-la num meio urbano.”
B.T.T, porém, disse que havia seguido as regras à risca.
Outro biólogo entrevistado pela Folha, S.N.M., teve uma burocracia a mais antes de ir para uma missão de campo.
“O trabalho envolvia um transporte interestadual, e eu dependia de uma ata da PF para levar a arma”, conta. “Fui lá, expliquei toda a situação. O delegado fez mil perguntas.”
Após um gesto de compreensão e de uma despedida cordial, o biólogo teve o pedido apreciado pelo delegado alguns dias depois: “Foi indeferido”.
O episódio, diz, aconteceu em 2002, quando a legislação de armas era mais permissiva. Diante da necessidade de dados para seu doutorado, porém, o pesquisador não teve dúvidas. “Não obtive a licença para transportar a arma, mas acabei levando mesmo assim.”
Filme queimado – Ribon reconhece que biólogos agem “na clandestinidade” ocasionalmente. “Mas a gente pede para eles não fazerem assim, porque isso vai “queimar o filme” da classe”, diz.
Saldanha, da Polícia Federal, apela para o fato de que “é possível exercer a atividade licitamente” -e de que biólogos não têm foro privilegiado. Mas reconhece que a lei não ajuda. “Para que não houvesse nenhuma insegurança jurídica, o ideal seria que a legislação fosse um pouco mais específica”, diz.
Até agora, porém, os biólogos não conseguiram cativar o Poder Legislativo. “Contatei oito deputados federais e só um se dispôs a ajudar”, diz Ribon.