A reforma do Estado brasileiro estará, necessariamente, na agenda do próximo governo, seja ele qual for. O governo Lula, embora tenha contribuído para a estabilização da economia, deixará uma herança pesada na área de pessoal. Em seis anos de gestão, Lula aumentou em 98% a despesa com servidores civis, contratou 201.090 novos funcionários e elevou para 76.857 o número de cargos de confiança, um acréscimo de quase oito mil vagas em relação ao último ano do governo anterior. Tudo isso, sem que a sociedade tenha assistido a uma revolução na qualidade dos serviços públicos.
Com a crise econômica, as receitas públicas estão encolhendo, enquanto o gasto criado com pessoal segue crescendo e tem caráter permanente, rígido – não há como diminuí-lo porque a Constituição não permite a demissão de funcionários estáveis nem a redução de salários. A equação fiscal não fecha, o que obrigará o próximo presidente a enfrentar o problema, sob pena de colocar em risco a estabilidade econômica conquistada a duras penas na última década e meia.
O assunto está na agenda dos pré-candidatos. A ministra Dilma Rousseff reconheceu, em entrevista ao Valor, que nos dois mandatos de Lula faltou fazer a reforma do Estado. Essa reforma, disse ela, será um “tema central” a partir de 2011. Os governadores José Serra e Aécio Neves, do PSDB, pensam da mesma forma, embora não se deva esperar dos três o mesmo tipo de solução. Mesmo no atual governo, avesso a reformas, há quem esteja pensando em mudanças radicais na gestão pública.
O ministro Roberto Mangabeira Unger, da Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, acaba de concluir uma série de propostas, que ele defende que sejam implementadas simultaneamente e desde já. Elas não enfrentam diretamente o problema do inchaço na máquina pública, mas apontam caminhos para tornar o Estado eficiente. Ainda assim, não parece realista acreditar que o presidente Lula vá mexer com o funcionalismo a pouco mais de um ano da sucessão. Seja como for, as ideias, desenvolvidas em parceria com o Ministério do Planejamento e com sugestões de empresários, estimulam o debate necessário do tema.
O ministro propõe três agendas de gestão. A primeira pretende lidar com um tema do Século XIX – a criação de uma burocracia profissional. “Trata-se de uma obra inacabada no Brasil. Temos ilhas de excelência – o Itamaraty, a Receita Federal – num mar de discricionariedade. A maioria dos ministérios é fantasma”, diz ele.
Para enfrentar o problema, o ministro sugere três ações. A primeira é o envio de um projeto de lei ao Congresso, propondo a redução “progressiva e rápida” dos cargos de confiança. Hoje, existem 76.857 desses cargos no governo federal. O ministro sugere que uma boa parcela disso seja substituída por funcionários de carreira. Ele deixa claro que não está propondo o fim das funções de confiança. “O Estado não deve ser comandado por tecnocratas, mas, sim, pela política”, ressalva.
A segunda ação proposta é a ampliação da proporção das carreiras horizontais, isto é, daquelas que podem servir a qualquer ministério, como os atuais gestores públicos. Segundo Mangabeira, a experiência internacional mostra que a vanguarda do serviço público está justamente nas carreiras multifuncionais. A terceira ação é criar, nos Estados, escolas de serviços públicos voltadas para a formação de carreiras horizontais – no governo federal, quem já cumpre esse papel é a Enap.
A segunda agenda é a do Século XX, ou seja, a da busca da eficiência. A ideia é instituir quatro formas de avaliação dos serviços prestados pelo Estado: a autoavaliação dos servidoresd+ a avaliação externa, conduzida pelo Ministério do Planejamentod+ uma outra avaliação externa, eventual, contratada fora do Estadod+ e a avaliação feita pelos usuários, como fazem alguns países europeus.
O segundo ponto dessa agenda é a reconstrução do Direito Administrativo, que, na opinião de Mangabeira, oscila hoje entre a rigidez e a discricionariedade. A Lei de Licitações (8.666) é um exemplo de rigidez que, na prática, torna o Estado ineficiente. As leis ambientais, por sua vez, favorecem as decisões discricionárias – um exemplo: a dificuldade de se obter autorização para a construção de hidrelétricas. No primeiro caso, a proposta é promover uma revisão “radical” da 8.666. No segundo, é acabar com a possibilidade de discricionariedade. “O Direito Ambiental brasileiro é o não-Direito. Delega poderes discricionários quase irrestritos a um elenco de pequenos proprietários administrativos, que, com isso, organizam um despotismo não esclarecido”, critica Mangabeira. “O resultado prático é transformar cada licenciamento num jogo de influência, de pressão. É uma miopia dos ambientalistas gostar disso. Eles podem gostar enquanto os amigos deles estiverem no poder. Quando os adversários estiverem, não gostarão.”
A terceira agenda é a do Século XXI, “do experimentalismo”. Um de seus propósitos é reconstruir o federalismo brasileiro, substituindo o modelo de repartição estanque de competências por outro, cooperativo, que associe os três entes da federação em ações comuns. Mangabeira propõe que se comece a fazer isso na educação, com a criação de entidades “transfederais” para zelar pela qualidade do ensino em todo o país, assumindo a gestão de escolas que não atendam a determinados índices de desempenho.
O outro ponto da terceira agenda diz respeito à prestação de serviços públicos pela sociedade civil. O ministro alega que prevalece no Brasil uma espécie de “fordismo” administrativo – a provisão de serviços padronizados e de baixa qualidade pelo aparato burocrático. São serviços de qualidade inferior aos prestados pela iniciativa privada a quem tem dinheiro para pagar por eles. Mangabeira sugere que o Estado financie a sociedade civil para que ela participe da prestação “competitiva e experimental” de serviços, por exemplo, nas áreas de educação e saúde. “Não é privatização”, garante. Os colégios de aplicação ligados a universidades federais, menciona o ministro, são uma experiência bem-sucedida que poderia ser replicada para o ensino fundamental.