A polêmica mudança na caderneta de poupança foi apenas o primeiro capítulo de uma revolução que já está em curso no sistema financeiro do Brasil e afetará bancos, empresas e o cidadão comum. O pano de fundo é a queda da taxa básica de juros (Selic) para níveis historicamente baixos. Embora seja há anos uma demanda da sociedade, a tendência de redução também deixará muita gente insatisfeita.
Não é difícil entender por quê. Nas contas do especialista em finanças públicas Amir Khair, ex-secretário de Finanças do Município de São Paulo, a diferença entre a Selic média deste ano projetada pelo mercado e a que vigorou em 2008 resultará em uma economia de até R$ 50 bilhões para os cofres públicos. Outros especialistas, como o economista-chefe da Corretora Novação, Fernando Montero, falam em R$ 15 bilhões.
Diferenças metodológicas sobre o cálculo à parte, o fato é que esses números podem ser interpretados de outra maneira: uma cifra bilionária deixará de engordar as contas bancárias dos detentores de títulos da dívida governamental.
Os analistas explicam que, além dos titulares de cadernetas de poupança, já estão sentindo – ou sentirão em breve – os efeitos do juro menor os fundos de pensão, os fundos de investimento, os bancos e os setores da economia “real” acostumados a ganhar muito com operações financeiras, como o varejo.
“Está enraizada no brasileiro a cultura de uma rentabilidade alta com o juro”, diz o professor Otto Nogami, do Insper (ex-Ibmec São Paulo). “Quem quiser rendimento maior, vai ter de arriscar”, completa o professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP Simão Silber.
O mais recente levantamento da Secretaria do Tesouro Nacional mostra que quem mais tem papéis do governo na carteira são os fundos de investimento, com participação de 41,3% na dívida mobiliária federal, que somava R$ 1,23 trilhão no fim de abril. As empresas possuem 10,4% do total e as pessoas físicas diretamente, 0,5%. A maior parte do restante está com o próprio Tesouro.
Antes de o atual ciclo de reduções da taxa Selic começar, o Brasil ocupou por anos a liderança do ranking mundial de juros reais (medida que exclui a inflação). Em 2005, por exemplo, a taxa foi de 19,05%. Do ponto de vista dos investidores, significava que quem tinha R$ 100 mil aplicados em janeiro chegava ao fim do ano com R$ 110,905 mil (sem incluir a correção monetária). Hoje, com o juro real em 5,4%, esse mesmo valor iria para R$ 105,4 mil.
Se a Selic continuar caindo, como a maioria dos especialistas projeta – ao menos para 2009 e 2010 -, esse rendimento vai minguar cada vez mais. Para escapar dessa realidade, como diz o professor Silber, não há outro caminho senão buscar papéis de maior risco. Nesse contexto, a bolsa de valores surge como primeira opção, seguida pelos imóveis (esses mais indicados para grandes investidores, como fundos de pensão).
“Nem nós gostávamos da situação anterior. Queremos um país com juros mais adequados e, para isso, vamos ter de buscar alternativas para garantir aos nossos associados a aposentadoria a que têm direito”, diz o presidente da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência (Abrapp), José de Souza Mendonça.
O primeiro passo já foi dado por várias entidades do setor, que reduziram a meta atuarial (rentabilidade mínima dos investimentos em um plano de previdência). O Previ, dos funcionários do Banco do Brasil, por exemplo, baixou a meta para INPC mais 5,5% (ante INPC mais 6%). O Eletros, da Eletrobrás, reduziu para INPC mais 5,75%.
Mendonça adianta que as mudanças não devem parar por aí. Ele revela que a entidade entregou, na semana passada, um documento à Secretaria de Previdência Complementar (SPC) com sugestões para alterar a legislação do setor.
Os fundos querem, por exemplo, autorização para investir no exterior, algo que as leis atuais não permitem. Outra demanda é aumentar a participação potencial do patrimônio em ativos imobiliários.
O juro mais baixo também vai pressionar os bancos. “Eles serão obrigados a reduzir o custo do crédito para emprestar mais e compensar a queda da Selic”, afirma Khair. O professor lembra que, a despeito do juro básico menor, o spread (diferença entre o custo de captação de dinheiro e o que é cobrado nos empréstimos) continua alto no País. Por isso, ele acredita que esse é um dos segmentos nos quais deve haver, em breve, alguma alteração.
Sexta-feira, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, confirmou a expectativa de Khair e avisou que o governo vai mexer no espinhoso assunto. “Temos de reduzir mais fortemente os spreads, de todos os bancos, dos privados e dos públicos. Mesmo que tenha havido alguma melhora, temos que reduzir muito mais e é isso que vamos fazer”, disse o ministro.
As instituições financeiras também serão atingidas em suas áreas de gestão de recursos. A taxa de administração média dos fundos de renda fixa (que acompanham a trajetória da Selic) foi de 2,29% no ano passado, segundo estudo do professor da FGV William Eid Junior. Para ele e outros especialistas, é um porcentual alto, se for levado em consideração o custo de gestão desse tipo de produto. Pior, “comerá” uma parcela maior do rendimento do investidor à medida que a Selic cai.
Levantamento da Associação Nacional dos Bancos de Investimento (Anbid), feito a pedido do Estado, mostra que a rentabilidade média dos fundos de renda fixa está em um dos níveis mais baixos desde 2001 (data inicial da pesquisa). Em abril, renderam 0,77%. Ou seja, cobrar 2,29% quando o ganho mensal é de 1,5% (como em janeiro de 2006) é uma coisa, outra são os mesmos 2,29% sobre 0,77%.