O debate sobre ações afirmativas no ensino superior continua na UFSC. Sim, pois há pelo menos seis anos são realizadas atividades específicas ou integradas a eventos de ampla divulgação em que o tema está aberto às interrogações, aos esclarecimentos, enfim, ao debate. Ainda mais, o Boletim da Apufsc incluiu entre suas publicações manifestações e convites para eventos com o tema! Ou desconhecem os acadêmicos?
Lembrando alguns momentos de debate recente – todos amplamente divulgados –: o debate Cotas para negros nas universidades, em outubro de 2001 com a participação do vereador e professor Marcio de Souza e do professor Nildo Ouriques, o debate “Cotas para negros: problema ou solução?”, ocorrido em 13 de fevereiro de 2003, com a participação da procuradora-geral da UFPR. Dora Lucia Bertulio, do professor Carlos Eduardo dos Reis e do sociólogo João Carlos Nogueira e o debate de 26 de junho de 2003 “Cotas na UERJ. E na UFSC?”, promovido pelo Grupo de Trabalho de Etnia, Gênero e Classe da Apufsc com a presença da pró-reitora de Ensino de Graduação (à época, professora Sonia Probst) e a docente da Faculdade de Educação da UERJd+ Maria Alice Rezended+ a Mesa Redonda Relações raciais e políticas em educação no Brasil (02/2006) com a presença de acadêmicos da UnB, UFRJ e do movimento de Pré-vestibulares popularesd+ o Seminário Cotas e Ações Afirmativas na Universidade Federal de Santa Catarina, promovido em junho de 2006, com participação de representantes envolvidos no debate e implementação na Unicamp, UFPR, UnB e pesquisador do Laeser (Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais) da UFRJd+ seminários promovidos pela Coperve/UFSC sobre vestibulard+ os encontros para debate promovidos pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas e pelo Centro de Ciências da Educação, o encontro da Comissão de Ações Afirmativas e os gestores da UFSCd+ e ainda a home page da Comissão da UFSC com materiais que informaram das análises e posicionamentos sobre as ações afirmativas.
Com estas atividades foi possível trazer para a UFSC conhecimentos relacionados às várias questões que constituem o núcleo da responsabilidade política implicado na decisão pelas ações afirmativas: o acesso à educação superior publica e de qualidade como direito que deve ser cada vez mais ampliado face ao reconhecimento de que os estudantes – empobrecidos, negros e indígenas – da educação básica têm menos oportunidades no percurso de seus anos de estudo, em função da dinâmica excludente pela qual a educação brasileira constituiu-se desde seus primórdios quando da instauração das redes publicas pós-proclamação da República ao final do século XIX. É disto, afinal, que se trata o debate central das ações afirmativas!
Tais oportunidades são marcadas historicamente por múltiplas faces: desde a precariedade que veio sendo imposta ao cotidiano do planejamento e das atividades escolares, às “violências” que constituem visível e/ou invisivelmente as interações escolares e o eurocentrismo patético dos saberes consagrados nos currículos, que se combinam com todas as demais relações sociais que formam o tecido de sociabilidade das crianças e jovens. Vivemos um momento em que nossos saberes sobre mobilidade educacional, sobre direitos, sobre legalidade são fustigados e seus alicerces fortemente questionados. Estamos sendo convidados a avançar para o que Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, nomeou de “viragem descolonial”, a assumirmos os desafios que muitos já enfrentaram para combater a tragédia social que é o racismo.
Para tanto, contamos no Brasil, com densa produção social que é capaz de subsidiar uma nova compreensão para o que se oferece como o real e o legítimo. Leiam, pois, senhores e senhoras acadêmico/as, as análises sobre os tipos de escolas que são destinadas aos pobres – entre os quais negros sempre são maioria – e as relações raciais que ali nutrem a construção da auto-imagem de cada criança e cada jovem.Talvez seja desconhecido, para quem não acompanhe – porque não é do seu oficio docente no ensino superior – as pesquisas e as análises educacionais no Brasil que desde os anos 1990 mostram a face perversa das desigualdades no Brasil. Por exemplo, leiam Do silêncio do lar ao silêncio escolar, de Eliane Cavalleiro, onde a observação do cotidiano na educação infantil (já) identifica as expressões dos preconceitos sócio-raciais entre crianças e entre professoras e crianças. Examinem os dados das pesquisas de IBGE e Dieese sobre a relação entre ocupação de postos de trabalho/escolaridade quando comparados pretos/pardos e brancos. Ou, se preferirem trabalho de feição acadêmica mais familiar, leiam ao menos alguns dos textos da Revista Estudos Avançados do Instituto de Estudos Avançados da USP, edição de numero 50 como o dossiê O negro no Brasil.
Também pode ser desconhecido o debate que já ocorria ao longo dos anos 1990, sobre Constituição e ações afirmativas, momento em que se esclareceu a gênese da definição estática de igualdade, herdada da formulação jurídica liberal que deu sustentação ao estado burguês, e firmou-se a perspectiva de adoção da concepção substancial de igualdade, conforme o professor Joaquim Barbosa Gomes, “que levasse em conta sua operacionalização não apenas em certas condições fáticas e econômicas, mas também certos comportamentos inevitáveis da condição humana, como é o caso da discriminação” (2003). Em outras palavras, não basta a Constituição brasileira definir a igualdade, mas, exatamente para que ela seja efetiva, deve o Estado atuar de modo a fazer emergir o que o jurista acima referido observa como “diversos ordenamentos jurídicos nacionais e na esfera do Direito Internacional dos direitos humanos, de políticas sociais de apoio e de promoção de determinados grupos socialmente fragilizados” (idem).
Outrossim, as pesquisas voltadas para o desenvolvimento humano no que se refere às capacidades intelectuais – vamos nomear assim – mostram que a construção de saberes e disposições ocorre como relação de saber, ou seja, na atuação dos indivíduos nas relações com os outros, todos mediadores da produção de conhecimento entre si. Isto certamente nos coloca a responsabilidade de construir oportunidades reais, face ao que as ações afirmativas, também compostas pelas cotas para ingresso no ensino superior, são expressão nacional e internacional de sensibilidade, autocrítica da sociedade e compromisso que desafia nossos saberes, valores e, em muitos casos, o conforto que a ordem vigente propicia.
A larga experiência com as ações afirmativas no mundo mostra, outrossim, que não se trata de facilitar, de privilegiar, mas exatamente de prover mais pessoas ao direito à educação, mas este é um debate rigoroso que merece foco especifico para o qual podemos destinar outro momento de interlocução. Por fim, valem as palavras de Raquel de Queiroz, em diálogo com um seu colega anônimo, na revista O Cruzeiro (1948), contrapondo ao que este chamara de “filosofia da mulataria” para a problematização posta por sociólogos em relação ao racismo. Um, outro e mais outro, a escritora alinha exemplos das mais diversas esferas da vida em sociedade e com testemunho pessoal ou informações diversas apresenta um quadro que ainda permanece inalterado: a discriminação racial, além de criar obstáculos ou mesmo interdições para as ações mais corriqueiras das pessoas, impregna para além, a auto-valorização e com isto, a construção de projetos de vida! No presente, muitas universidades brasileiras dizem não ao racismo e a outras formas de discriminação ao implementarem ações afirmativas e nos oferecem oportunidade ímpar para ampliar a democracia na sociedade.