Para que a educação possa dar um passo à frente, é preciso que se reformule a formação proporcionada nos cursos de licenciatura no país
Desde o início da década de 1990, a Declaração Mundial de Educação para Todos, aprovada, em Jontien, Tailândia, na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, reconheceu a necessidade de se promover educação com qualidade. Em 2000, em Dacar, o Fórum Mundial de Educação reforçou essa necessidade. Os 160 países participantes, entre eles o Brasil, se comprometeram a aperfeiçoar todos os aspectos da qualidade da educação, procurando promover a excelência, a fim de possibilitar aos aprendizes a obtenção de resultados educacionais reconhecidos e mensuráveis.
É fato que alguns dos desafios educacionais estão sendo perseguidos no Brasil. A universalização da educação é um deles. No início do século 21, o país expandiu a inserção e a manutenção do estudante na escola. No ensino fundamental, em 2008, de acordo com o Censo Educacional, 27,8 milhões de alunos estavam na escola, sendo 27,5 milhões no ensino regular mais 341 mil na educação especial, o que significa quase a totalidade de crianças na escola. Ainda é um desafio alcançar resultados semelhantes no ensino médio, que tem uma defasagem de 30% em relação às matrículas do ensino fundamental, mas o quadro geral de alunos matriculados na Educação Básica melhorou bastante na última década.
Um desafio, entretanto, ainda está distante do sucesso: a eqüidade a partir da diversidade. Não basta garantir a todas as crianças o acesso à escola: é preciso que haja qualidade de ensino para todos os alunos. Temos ainda duas realidades comuns no Brasil: o ensino elitista, excludente, prática comum nas escolas de ensino privadod+ e o ensino público, de acesso garantido a todos, por direito, mas que nem sempre apresenta êxito na formação escolar de seus alunos. Universalizar o ensino não significa torná-lo “uniforme”, estático, único, em uma gangorra que distancia cada vez mais a qualidade da escolarização de muitas crianças oriundas da elite econômica daquelas oriundas da população sem os mesmos recursos econômicos ou, muitas vezes, totalmente carentes desses recursos. Universalizar significa alcançar a eqüidade a partir da diversidade, ou seja, garantir o direito de todos os alunos – que são sujeitos únicos – de alcançar a excelência em seu ensino.
Hoje, o que costumamos perceber no imaginário social é a visão da escola pública como uma escola de menos qualidade – e, por extensão, destinada aos denominados grupos minoritários -, enquanto a escola particular é percebida como aquela que oferece um ensino de maior qualidade. O que nos parece mais grave é que essa diferenciação está tão naturalizada que passa a ser aceita, em primeiro lugar, como verdade (o que é grave, porque muitas escolas públicas brasileiras, como deveria ser, têm oferta de ensino melhor ou igual a muitas privadas), e, em segundo lugar, como se, aceita tal “verdade”, sempre tivesse sido assim e assim devesse permanecer. Ou seja, nessa visão, é como se os sujeitos de direitos fossem apenas aqueles que pudessem pagar por eles, e como se bastasse pagar para assegurar qualidade na formação do aluno.
Convém relembrar que a escola pública tem a função democrática de oferecer uma educação de qualidade para todos. No atual estágio de nossa sociedade, é ela que pode oferecer oportunidades iguais de ensino e formação para aqueles que não podem ou não desejam pagar uma escola particular. Contudo, fazemos aqui uma aposta na evolução de nossa sociedade e na vontade política dos governos, no sentido de tornar todas as escolas públicas efetivamente escolas de qualidade, passando a ser a escola particular não mais a única opção – imaginária ou real – de um ensino de excelência, mas apenas uma escolha daqueles que, com consciência social, sabem que podem pagar pela escolarização de seus filhos, que muitos outros não podem fazê-lo e, sobretudo, que todos têm direito a uma educação de qualidade. Isso significa dizer que tanto a escola particular quanto a pública têm o mesmo dever de oferecer um ensino de qualidade para todos os seus alunos.
Muitas escolas brasileiras têm relutado em aceitar as mudanças que se impõem com a universalização da educação. Para que isso seja feito, é preciso rever as práticas de ensino atuais, para segarantir o desenvolvimento de competências daqueles alunos que ainda não as têm sem mediocrizar o daqueles que já as têm. Na escola, seja pública ou particular, o ensino não pode pretender ser homogêneo – privilegiando um ou outro grupo à maneira da gangorra descrita acima – porque, sendo cada aluno um sujeito único, os grupos serão sempre heterogêneos. Então, o que é chamado muitas vezes de problema é, na verdade, uma característica dos grupos e, na escola, das turmas.
Na recente história da educação brasileira, o fracasso escolar era esperado, reforçado pelos professores e até aceito pelas famílias. Escola considerada “boa” era aquela “difícil de entrar” e que “exigia muito”. A reprovação, ainda hoje um resquício cultural dessa história recente, era uma prática constante, como se o professor não tivesse por obrigação fazer a sua parte para garantir o sucesso de seus alunos. A heterogeneidade dos grupos era (e ainda é em muitas escolas), então, “resolvida” com a exclusão, com a reprovação. Hoje, já são compreendidos, ao menos teoricamente, os malefícios da retenção escolar (isso porque no Brasil coexistem duas práticas: a das escolas que mantêm a cultura da reprovação – em especial nas escolas privadas, no ensino médio – e a daquelas que têm como prática a aprovação automática, independentemente das habilidades desenvolvidas em sala de aula). O professor e a escola, em geral, nos dois casos, continuam eximindo-se de sua responsabilidade, seja no ato da reprovação, seja com a facilitação da aprovação (justificada por uma “pseudo” proposta de modernização do ensino) sem que o aluno tenha efetivamente garantido o seu direito à formação. No primeiro caso, reforça-se a cultura da exclusãod+ no segundo, é estabelecido um pacto de mediocridade entre escola, família e sociedade, no qual quem sofre as conseqüências é o aluno, tanto o que poderia ter sua bagagem de competências ampliada – e isso não ocorre com a justificativa de que nem todos poderiam acompanhá-lo -, quanto o que não alcançou minimamente os objetivos educacionais traçados para aquela série – e é alçado à seguinte sem que ninguém se responsabilize por sua formação.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), qualidade significa inter e transdisciplinaridade, significa educar para a vida, integrar os saberes, instrumentalizar o aluno para ser uma pessoa e um cidadão melhor. Muitas propostas pedagógicas, em teoria, seguem essa tendência, mas poucas práticas a refletem, especialmente a partir da 5ª série (6º ano) do ensino fundamental, quando o aluno passa a ter aulas de 40 ou 50 minutos com oito ou dez professores diferentes. Como conhecê-lo, entender suas dificuldades, incentivar seu sucesso a partir de um quadro desses? É, no mínimo, uma hipocrisia reiterar o discurso da escola democrática, de qualidade, quando o professor o trata como um número na lista de freqüência.
É preciso compreender que esse é um quadro conseqüente da formação de nossos docentes. No Brasil, muitas Instituições de Ensino Superior (IES) continuam formando alunos em licenciatura explorando conteúdos isolados, sem integração entre os saberes. A formação universitária dos professores é fragmentada, voltada para a pesquisa, não para a sala de aula. Os professores dos professores de nossos alunos continuam “perdidos”. Também precisam rever suas práticas. Como ensinar aquilo que não se aprendeu? Como construir uma educação democrática se a formação de nossos formadores se deu na ditadura militar, na fragmentação e no esvaziamento da formação integral e no fortalecimento do individualismo ou de noções individualistas?
Para quebrar esse ciclo, é preciso que se reveja, com urgência, a formação em licenciatura. Somente com professores com uma base generalista, comum aos diversos saberes, nos ensinos fundamental e médio, será possível promover a interdisciplinaridade e preparar nossos alunos para a vida em coletividade e para o mundo do trabalho com uma educação mais funcional – capaz de verdadeiramente subsidiá-lo em sua vida -, não somente para as provas que faz na escola ou para os concursos vestibulares que fará no futuro, o que sempre reforçará a exclusão.