O anúncio foi feito com orgulho pelo governo federal: o Brasil subiu mais duas posições e entrou no G-13 das nações com maior volume de produção científica. Conhecido pela excelência no jogo com os pés, o país também se revelou um lugar de cérebros privilegiados. Rússia e Holanda, tradicionalmente com muito mais presença na área, ficaram para trás. Do nacionalismo de chuteiras chegamos à pátria de jalecos: a comunidade científica brasileira – que lotaria dois Maracanãs, com 200 mil pessoas, entre mestres e doutores – aproxima-se da ponta de lança. Hoje, o país responde por 2,12% da produção internacional. Entre as principais razões para a façanha, o governo destaca o aumento dos investimentos públicos em ciência e tecnologia ocorrido nos últimos anos.
Ph.Ds nessa espécie de campeonato mundial da ciência – no qual os gols correspondem a artigos publicados em revistas científicas de alto padrão – passaram a fazer marcação cerrada no discurso governamental. A tese desses especialistas é que o espetacular aumento de 56% de artigos publicados, entre 2007 e 2008, não se deve a uma elevação da produtividade dos cientistas brasileiros, mas à ampliação do número de periódicos nacionais indexados na Web of Science.
Primeira base de dados a catalogar as revistas científicas mais importantes do mundo, a Web of Science (originalmente Institute for Scientific Information-ISI) reúne mais de 10 mil publicações, num universo que ultrapassa 100 mil revistas. Ou seja, seleciona a nata da produção mundial. É nesse campo que a competição se dá: uma numerologia ou, mais precisamente, uma cienciometria, que estabelece indicadores e rankings que procuram medir a quantidade e a qualidade da produção – seja de pesquisadores, publicações científicas, universidades ou países.
Foi justamente o espaço ocupado pelas revistas brasileiras nesse território o que mais cresceu nos últimos anos. De fato, o número de publicações brasileiras indexadas na base de dados da Web of Science, que pertence à empresa canadense Thomson Reuters, quadruplicou em três anos. Era de 26, em 2006d+ passou para 63, em 2007d+ e chegou a 103, em 2008. Mal comparando, é como se o Brasil passasse a marcar mais pontos no campeonato não porque o time melhorou, mas porque está se beneficiando por jogar mais partidas em casa.
“Essa explicação foi ignorada durante a divulgação do novo ranking. Não se mencionou essa mudança no número de revistas indexadas”, critica Rogério Meneghini, coordenador científico do programa Scielo, que indexa as melhores revistas científicas brasileiras, num papel semelhante ao da Web of Science, com a diferença de que o acesso é aberto.
Essa conjuntura explicaria pelo menos 80% do crescimento da produção brasileira, segundo Meneghini. “O aumento não foi real. Tenho visão otimista a respeito da ciência brasileira, mas é difícil filtrar exatamente o que é um fato ou um desejo do Ministério da Ciência e Tecnologia”, afirma. “A pasta anuncia que há aumento de recursos na área, mas frequentemente há impedimentos. As verbas federais, vencido o ano oficial, acabam retornando para o caixa.” O orçamento executado em 2008 foi de aproximadamente R$ 5 bilhões.
Cálculo da Scielo indica que, se o número de revistas indexadas na Web of Science permanecesse o mesmo entre 2007 e 2008, o aumento da produção brasileira teria sido de apenas 10%. Meneghini lembra que, em dois anos, a base de dados saltou de cerca de 6.500 para 10 mil publicações. Tal fenômeno refletiria uma mudança de política da Thomson Reuters, que, por razões comerciais, teria passado a ampliar seu acervo depois da entrada no mercado da Scopus, base concorrente que pertence à editora holandesa Elsevier e conta com 16 mil publicações.
José Cláudio Santos, gerente regional da Thomson Reuters para a América do Sul, rebate as insinuações de que o aumento da base de dados esconde uma guerra fria entre as duas plataformas. Santos afirma que, embora algumas pessoas tendam a pensar que interesses comerciais estejam prevalecendo, os critérios científicos continuam em primeiro lugar.
“Haveria concorrência se os produtos fossem os mesmos”, diz Santos. “A concepção é parecida, mas o conteúdo e o resultado são totalmente diferentes. A Scopus tem a maior base de dados de revistas científicas do mundo, o maior número de publicações em cada continente. Mas o foco da Web of Science não está na quantidade de títulos e sim na qualidade deles.”
A Thomson Reuters “está de olho na parte comercial”, reconhece Santos, mas ele pondera que se a empresa vende mais informação é porque ela é demandada. Não haveria necessidade de indexar por indexar uma nova revista. Para ele, o aumento do número de publicações brasileiras não é um fenômeno artificial. Deu-se exatamente porque a produção científica de certas áreas no país despertou interesse lá fora.
“O Brasil desponta em muitos campos”, diz. Ele cita a agropecuária, com as crescentes exportações de laranja, soja, cereais, gado, frango, suínosd+ o setor de automação bancária e de votação eletrônica, nos quais o país é muito avançadod+ a aviaçãod+ o setor de mineração, o de biocombustíveis, a tecnologia do pré-sal. “Os usuários do nosso banco de dados querem saber o que o Brasil faz, que pesquisas estão por trás dessas conquistas. Vejo que há uma falta de patriotismo quando a discussão recai sobre a entrada das revistas brasileiras na Web of Science”, diz José Cláudio Santos. Ele ressalta que países como China e Coreia do Sul também tiveram aumento no número de revistas indexadas.
O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, está alinhado com a tese de que a principal razão para o salto do Brasil de 15º para o 13º lugar no ranking mundial tenha a ver com a maior entrada de revistas brasileiras na base de dados da Thomson Reuters. Mas enfatiza que o fato, em si, é positivo. Reflete o crescimento do país, que é consistente e ocorre há anos. O Brasil vem ultrapassando países que, apesar de pequenos, têm fortes comunidades científicas e são ganhadores de prêmios Nobel, como Polônia, Suécia, Suíça e Dinamarca, observa o ministro. A novidade, agora, é que o Brasil superou a Holanda, que também é pequena, mas com tradição científica secular, e a Rússia, com grande comunidade de cientistas.
“O Brasil, diferentemente dessas nações, não tem tradição em ciência e tecnologia. Começamos a formar mestres e doutores em 1963. Antes disso não havia formação para pesquisadores. E apenas em 1969 foi criado o regime de dedicação exclusiva para docentes pesquisadores”, diz o ministro.
Se o Brasil já ultrapassou tantos países de tradição no ranking quantitativo, que mede o volume de artigos publicados, o mesmo ainda não se pode dizer em relação ao ranking qualitativo, que se baseia no impacto e na repercussão dessas publicações na comunidade científica internacional. No ranking de citações,o Brasil está em 19º lugar.
Para o presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Jorge Guimarães, esse avanço só não é maior por causa da presença muito recente da ciência brasileira no cenário mundial. “A maior das nossas universidades tem sete décadas, enquanto algumas lá fora têm quase mil anos. Há um componente cultural forte quando falamos de citações”, diz.
Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências, segue a mesma linha de raciocínio de Guimarães. Ele lembra que quanto mais prestigiosa e mais lida é uma revista, mais citações os artigos publicados ali terão. Mas, como boa parte destas publicações pertence aos países centrais, isso demandaria dos pesquisadores brasileiros um duplo esforço.
“O autor brasileiro ou de outro país em desenvolvimento tem que produzir duas vezes melhor do que os pesquisadores dos grandes centros” afirma Palis. “A impressão inicial favorece mais o autor que pertence ao círculo de pesquisadores do próprio país do que quando vem de um centro menos conhecido.”
Mesmo com esses obstáculos, o Brasil consegue destaque internacional em algumas áreas específicas, nas quais seu desempenho está bem acima da 13ª colocação que ocupa no quadro geral e da média de 2,12% da produção científica mundial.
É o caso de medicina tropical e parasitologia, áreas em que o país ocupa o segundo lugar no ranking, respondendo por 18,4% e 12,34% das publicações, respectivamente. Odontologia, em quarto lugar, é detentora de 8,19% da produção mundial.
“Temos grande conhecimento, por exemplo, em doenças tropicais, mas não há vacina porque não temos indústrias. Parte do desinteresse deve-se ao receio de que, em se tornando a vacinação uma política pública, o governo iria impor seu preço, reduzindo a rentabilidade do negócio. Não fosse isso, já teríamos produzido uma vacina contra a dengue”, diz Guimarães.
O calcanhar de Aquiles da produção científica brasileira, diz o presidente da Capes, são as ciências humanas sociais e aplicadas. Ele reconhece que, em muitos casos, há um componente regional inerente a esses estudos, que dificulta a inserção de artigos no cenário internacional. Mas Guimarães lembra que enquanto essa área corresponde, em média, a 10% do total de artigos publicados no mundo, na produção nacional ela ainda não passa de 2%, levando a média brasileira para baixo. Ele cita campos que têm pouca presença como economia, direito e filosofia. A exceção é a área de ciências sociais, cuja produção aumentou consideravelmente nos últimos anos.
Mas será que a frieza dos números, dos índices e das estatísticas é capaz de dar conta da importância do conhecimento produzido? Rogério Meneghini diz que todo o esforço da cienciometria é significativo e os resultados têm bastante correspondência com as percepções dos próprios cientistas sobre o que é mais relevante em sua área. Ele afirma que estudos desse tipo mostram uma correlação de até 70% entre as respostas subjetivas, oferecidas pelos entrevistados, e as objetivas, baseadas em análises bibliométricas. Mas a fixação pelo quantitativismo pode gerar efeitos perversos, admite.
“Às vezes, fatos anedóticos são pegos para criticar a cienciometria. Mas existem problemas, claro. Chega-se ao ponto em que editores de certos periódicos recomendam aos seus autores que citem artigos já publicados naquela revista, para que o fator de impacto dela cresça. Isso tem sido muito criticado, e com razão”, diz.
Jacob Palis também reconhece que a valorização excessiva dos números acaba gerando um “campeonato mundial de ciência”. Mas, por um lado, diz, “todo mundo gosta, não somos os únicos” – mesmo que o jogo fique cada vez mais acirrado. Ele conta que a comunidade científica da Coreia do Sul, por exemplo, é uma das mais ufanistas e agressivas. Luta com todas as armas para sediar congressos internacionais, entre outros expedientes, cujo objetivo é dar visibilidade para o país e seus pesquisadores.
Apesar de criticar esse comportamento beligerante e considerar que o desempenho da Coreia na ciência está aquém da fama que ganhou recentemente, Palis afirma que o país asiático fez a opção correta pela educação e agora colhe os frutos. É o que pode ocorrer com o Brasil, caso alguns nós sejam desatados, como a maior interação entre a pesquisa acadêmica e o setor produtivo.
“Temos de avançar na transformação de conhecimento científico em tecnologia”, afirma Palis. “Nosso meio está completamente consciente desse problema. É uma prioridade. Precisamos investir em inovação tecnológica. Até agora jogamos mais ênfase em formar uma comunidade científica forte, que é muito jovem.”
Mas mesmo a criação dessa forte comunidade científica não está garantida, gerando preocupações. O ritmo de crescimento na formação de doutores, que ultrapassava os 10% anuais no começo da década, caiu para a casa de um dígito depois de 2004. Com isso, a meta estabelecida pelo Plano Nacional de Pós-Graduação, de se chegar a 16 mil titulações no próximo ano, quase certamente não se concretizará. Como no ano passado foram formados 10.711 doutores, seria necessário um salto de quase 60% em dois anos.
Para Meneghini, o valor de R$ 1,4 bilhão destinado à Capes, agência federal mais importante no fomento à pós-graduação – ao lado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – é relativamente escasso dentro do orçamento do Ministério da Educação, que atualmente é de R$ 41 bilhões. Já os recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia, ao qual é ligado o CNPq, têm crescido nos últimos anos. Passou de R$ 2,835 bilhões, em 2002, para R$ 6,632 bilhões, em 2008.
Para o ministro Sérgio Rezende, esse aumento é representativo, mas deve ser acompanhado pelos investimentos estaduais, sobretudo por meio das chamadas Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs), o que já começa a ocorrer. Além de São Paulo, com a Fapesp, ator tradicional no fomento à produção científica, outros Estados passaram a investir pesadamente no setor, multiplicando seu orçamento, como no caso da Faperj e da Fapemig. Outras FAPs destacam-se na consolidação dessa rede, como as de Pernambuco, Bahia, Ceará, Amazonas, Distrito Federal e Rio Grande do Sul.
“Trabalhamos para que haja programas conjuntos entre o governo federal e esses órgãos estaduais. É preciso estimulá-los a participarem de um sistema integrado de ciência”, afirma Rezende, ministro e ainda cientista nas horas vagas.
Com doutorado em física pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), título obtido em 1967, Rezende costuma se comparar ao ex-ministro da Cultura, o cantor Gilberto Gil. A política não o afastou da vocação. Recentemente, publicou um complexo artigo que tenta explicar matematicamente um novo estado da matéria previsto por Einstein em 1925, mas só produzido em laboratório a partir de 1995. Foi sua contribuição para o salto brasileiro no ranking da produção científica mundial.
O trabalho foi publicado na revista “Physical Review B”, da Sociedade Americana de Física, cujo fator de impacto é de 3,172. O índice mais alto no mundo é o da “Nature” (28,751). O periódico brasileiro mais bem colocado nesse ranking é o “Journal of the Brazilian Chemical Society” (1,539), o que pode ser considerado um feito. Mais da metade das revistas indexadas na Web of Science tem fator de impacto abaixo de um.