Falta critério na contratação de professores

A falta de regras nacionais para a contratação de professores de ensino religioso — de oferta obrigatória nas escolas públicas, mas matrícula opcional — abre espaço para requisitos no mínimo subjetivos. Em Tocantins, por exemplo, uma das exigências é a de que o profissional tenha “irrepreensível conduta ética e moral”. No que diz respeito ao conteúdo, há também determinações curiosas. Na legislação de Santa Catarina, um dos objetivos das aulas é o ensino do “mistério”. O levantamento completo, por estado, dos critérios de seleção dos docentes na área, bem como das diretrizes sobre os assuntos a serem ministrados, está no estudo Ensino religioso: qual o pluralismo?, financiado pela Universidade de Brasília em parceria com a Comissão de Cidadania e Reprodução, uma entidade sem fins lucrativos.

Coordenadora da pesquisa, a antropóloga Debora Diniz critica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Primeiro porque a legislação federal deixa a critério das secretarias estaduais a habilitação dos professores e condiciona a definição de conteúdo à consulta de entidade constituída por denominações religiosas. “Entendemos que, por se definir laico, o Estado não tenha querido intervir. Mas colocar a responsabilidade em entidades religiosas também não parece sensato. O que são essas entidades? E as religiões de origem africana, que muitas vezes não têm sequer uma doutrina sistematizada específica, serão obrigadas a se associar se quiserem ser representadas nas escolas?”, questiona a pesquisadora.

Carmen Lúcia Fonseca, diretora de ensino fundamental da Secretaria de Educação de Tocantins, concorda que o requisito “ter irrepreensível conduta ética e moral” é um tanto “vago”. “Deixa meio aberto mesmo. Mas a intenção, na minha avaliação, não é medir a ética do professor, mas sim alertá-lo da importância desse tipo de conduta”, afirma a diretora. Segundo ela, há aproximadamente 140 profissionais de ensino religioso — com nível superior ou cursando — em todos os colégios públicos do estado, de ensino fundamental e médio. A seleção, de acordo com Carmen, é feita de forma direta pelos diretores de cada escola. “Eles entrevistam o candidato, pedem que ele apresente uma aula fictícia e o contratam, se preencher os requisitos”, explica.

Da mesma forma que Tocantins, mais 13 unidades da Federação contratam professor de ensino religioso sem seleção pública. No restante, os docentes são concursados — nem sempre para ministrar a disciplina. É o caso do Distrito Federal, onde Otamir de Castro deu aulas de história na rede pública por mais de uma década. Neste ano, ele decidiu encarar as turmas de religião, já que uma especialização em antropologia cultural o habilita para tal tarefa. Ciente da delicadeza da missão, Otamir é cuidadoso. “Para ser bem didático, o professor precisa ficar atento, 24 horas, a fim de não direcionar o conteúdo para qualquer religião específica”, ensina.

Um outro motivo leva o professor a ter cuidado redobrado: a inexistência de material didático pré-determinado, distribuído pelo Ministério da Educação, como ocorre com as outras disciplinas. Otamir prefere, então, recorrer à biblioteca da escola para embasar suas aulas. “Não usamos documentos religiosos, como a Bíblia, para não haver discriminação. Estudamos tópicos mais abrangentes, que tratam da história das religiões, cultura africana”, destaca o professor. A precaução, entretanto, não o livra de algumas saias-justas. “Certa vez, duas alunas de uma determinada religião questionaram a visão crítica do mundo, afirmando que tudo o que ocorre, ocorre de acordo com as leis divinas, e que portanto dispensava uma visão crítica”, lembra.

Ciência
Apesar da delicadeza do tema nas escolas, o conselheiro de educação Mário Sérgio Ferrari, membro da comissão conjunta permanente para o ensino religioso no DF, defende a manutenção das aulas. “Mesmo polêmica, num primeiro momento, a disciplina deve ser ofertada enquanto área do conhecimento, compreendida como uma ciência, porque contribui para a formação básica do cidadão”, opina Ferrari, que trabalha como professor universitário. Para Roseli Fischmann, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), é impossível encarar o tema desse ponto de vista. “Ou é religião ou é ciência”, destaca.

A dificuldade de normatizar no país quem deve ser o professor de ensino religioso e qual conteúdo ele trabalhará, para Roseli, são os principais indicativos do problema “quase insolúvel” trazido pela Constituição Federal.

1- Estado laico
Aquele que não apoia correntes religiosas direta nem indiretamente e garante a liberdade de crença e culto. Na origem de sua história jurídica, o Brasil não era laico. A Constituição Imperial de 1824 instituía a religião católica como a oficial. As outras religiões ficaram proibidas de construir templos e fazer manifestações públicas. Em 1890, com a proclamação da República, o governo provisório chefiado pelo Marechal Deodoro da Fonseca baixou um decreto proibindo a intervenção da autoridade federal e dos estados em matéria religiosa. De lá para cá, manteve-se o princípio da separação entre Estado e religião, pelo menos no papel.
Entendemos que, por se definir laico, o Estado não tenha querido intervir. Mas colocar a responsabilidade em entidades religiosas também não parece sensato
Debora Diniz, antropóloga

Leis contradizem LDB

A controvérsia do ensino religioso nas escolas vai muito além da questão de fé, do risco de proselitismo por parte de professores ou da discriminação em virtude de confissão professada pelo aluno. O imbróglio chega à discussão jurídica, já que, na tentativa de manter o caráter laico, a legislação federal jogou nas costas das secretarias estaduais de educação a incumbência de normatizar a oferta da disciplina. O resultado é uma profusão de regras: três leis, quatro decretos, 15 resoluções, dois pareceres, uma deliberação e uma instrução, distribuídas na 27 unidades da Federação, conforme aponta o estudo Ensino religioso: qual o pluralismo?.

“Com exceção dos estados que regulamentaram a matéria por lei, o restante oferece o ensino religioso baseado em pareceres, resoluções, deliberações, que são instrumentos muito frágeis do ponto de vista democrático”, assinala Debora Diniz, coordenadora do estudo. A consequência prática do improviso legislativo está na diversidade de regras nos estados. Mesmo optativa, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a disciplina faz parte da carga horária mínima anual do ensino fundamental estipulada pelo Ministério da Educação, de 800 horas, no Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Mato Grosso e Acre. Apesar disso, as instituições não podem reprovar o aluno que não cumprir o estipulado em horas-aulas devido à ausência na matéria.

Outra incongruência com as diretrizes nacionais, apontada pelo estudo da UnB, é o alcance do ensino religioso — mencionado nas leis federais apenas para a etapa fundamental — até o ensino médio na Bahia, Rio de Janeiro, Goiás, Paraná, Rondônia, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Distrito Federal. Mas nem todos condenam as condutas estaduais. Na avaliação de Célio Cunha, professor da Universidade de Brasília (UnB) e consultor especial da Organização das Nações Unidas para a Ciência, Cultura e Educação (Unesco) no Brasil, os estados podem estender a oferta de aulas de religião desde que sejam optativas. “Facultativamente, não vejo problema. Assim como o fato de contabilizar a disciplina dentro das 800 horas, mas nesse caso é preciso cautela para que não haja opção por esse ou aquele credo”, adverte.

A extensão das aulas além do ensino fundamental, embora prevista em normas estaduais, é ilegal, na avaliação de Roseli Fischmann, pesquisadora na área pela Universidade de São Paulo (USP). “A escola não é da Secretaria de Educação. Antes de tudo, há uma Constituição Federal que precisa ser seguida”, afirma a especialista. Ela conta que grupos de estudiosos que se debruçam sobre o assunto pretendem, em breve, acionar a Justiça para questionar leis estaduais que regulamentam o ensino religioso. (RM)

O que diz a lei

– A Constituição Federal afirma, em seu artigo 210, que o ensino religioso será facultativo e ministrado obrigatoriamente pelas escolas públicas de ensino fundamental no horário normal de aula. Portanto, nenhum aluno é obrigado a cursar o ensino religioso, embora a escola tenha que oferecê-lo. O texto enfatiza o respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
– A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) remete às secretarias estaduais a tarefa de regulamentar a definição dos conteúdos e as normas de admissão dos professores. Ou seja, dá carta branca aos estados. A única ressalva é que, para a definição dos conteúdos, seja ouvida entidade civil constituída pelas diferentes denominações religiosas que se credenciarem.

Legislação do improviso

Como é regulamentado o ensino religioso nas escolas atualmente. Veja a data da norma.

Lei
Maranhão – 2004
Bahia – 2001
Rio de Janeiro – 2000

Decreto
Distrito Federal – 2005
Minas Gerais – 2005
Santa Catarina – 2005
São Paulo – 2002

Resolução
Espírito Santo – 2009
Goiás – 2007
Pará – 2007
Pernambuco – 2006
Amapá – 2006
Roraima – 2006
Ceará – 2005
Piauí – 2005
Paraíba – 2004
Sergipe – 2003
Rondônia – 2003
Alagoas – 2002
Amazonas – 2001
Mato Grosso – 2000
Rio Grande do Sul – 2000

Instrução
Tocantins – 2004

Parecer
Rio Grande do Norte – 2000
Acre- 1999

Deliberação
Paraná – 2006
Mato Grosso do Sul – 2004

Fonte: Estudo “Ensino religioso: qual o pluralismo?”