Um aluno desleixado, desinteressado pelos estudos, que não fazia seu dever de casa e vivia repetindo o ano, hoje se transformou em um estudante atento, esforçado, que corre para recuperar o tempo perdido.
Essa é a imagem do Brasil que aparece no minucioso raio X da situação do ensino médio e fundamental revelada pelo livro “Educação Básica no Brasil”.
O volume, que será lançado na segunda-feira pela editora Campus/Elsevier, reúne uma série de levantamentos e pesquisas que procuram jogar luz sobre os diferentes nós do problema educacional brasileiro.
A análise, feita majoritariamente por economistas, entre eles o Prêmio Nobel James Heckman, trata de um caleidoscópio de questões que vão desde a difícil criação de um sistema de incentivos e punições para escolas, diretores e professores, passa pelo impacto da educação sobre a renda, a desigualdade e a violência e chega às experiências inovadoras que estão sendo realizadas no Brasil e no mundo.
Há boas e más notícias. O lado bom é que, pela primeira vez o Brasil – depois de vencida a hiperinflação nos anos 1990 e tendo atacado a desigualdade na distribuição de renda nesta década – se beneficia de um programa claro de combate ao enorme passivo educacional que emperra seu desenvolvimento.
Enfim, uma política pública que começou há 15 anos, na administração de Fernando Henrique Cardoso, e foi continuada e aperfeiçoada pelo governo Lula, com a criação de um fundo específico para a área (o Fundef, depois substituído pelo Fundeb), de programas de incentivo à frequência escolar (o Bolsa Escola, seguido pelo Bolsa Família) e de mecanismos de avaliação e de responsabilização (como o Saeb, o Enem e o Ideb).
A má notícia é que os resultados ainda não são animadores, principalmente quando comparados com outros países. Apesar de alguns avanços no período, quando foi atingido o objetivo de pôr todas as crianças de 7 a 14 anos na escola, o Brasil ainda está mal em vários aspectos, tanto em termos quantitativos como qualitativos.
Exemplo: enquanto aqui só 30% da população entre 25 e 64 anos completou o ensino médio, chega-se a 88% nos Estados Unidos e na Rússia.
Os indicadores de qualidade são ainda mais preocupantes. A classificação do Brasil no último teste do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) – que, em 2006, mediu o conhecimento de estudantes de 15 anos de 57 países – foi 54º lugar em matemática, 52º em ciências e 49º em leitura.
Esse desempenho, muito baixo em termos absolutos, também é inferior à posição que se esperaria de um país com nível de renda per capita equivalente ao brasileiro (veja gráfico na pág 19).
“Hoje existe certo consenso de que a educação é importante, mas os resultados, veja nosso desempenho no Pisa, ainda são um desastre”, afirma o professor do Ibmec Rio Fernando Veloso, um dos organizadores do livro e autor de dois capítulos.
Para Veloso, no governo FHC, da mesma forma que a partir de meados dos anos 1990, houve uma convergência em torno de princípios gerais da política econômica (meta de inflação, responsabilidade fiscal e câmbio flexível), o mesmo processo se deu em relação às diretrizes da educação, que têm um terreno comum baseado em diagnóstico e avaliação.
Nestes 15 anos, o maior desvio de percurso, aponta o economista, ocorreu no início do primeiro governo Lula, quando o ensino superior teria sido privilegiado em detrimento da educação básica – rota corrigida, afirma, depois da entrada de Fernando Haddad no ministério.
O gasto excessivo com o ensino superior é um dos alvos prediletos dos autores do livro, que criticam a inversão de prioridades que ocorre no Brasil.
Em relação ao investimento em educação, o problema não seria tanto o total de recursos destinados à área – afinal, o gasto brasileiro, de 4,4% do PIB, é equivalente ao da Coreia do Sul e maior que o do Japão (3,5%).
O equívoco estaria na desproporção de gastos entre a educação básica e o ensino superior. Enquanto o gasto público por aluno no ensino básico nos países desenvolvidos é de cerca de 20% da renda per capita, no Brasil de 15% no ensino fundamental e de 11% no nível médio.
Já no ensino superior, a proporção é de 95% da renda per capita. Na Coreia, por exemplo, é de apenas 9,3%. “Nesse país, que fez uma revolução educacional e hoje colhe seus frutos, a relação de despesas é inversa, com mais gasto por aluno na educação básica do que no ensino superior”, comenta Veloso.
Um dos autores do capítulo “Educação, Crescimento e Distribuição de Renda”, Samuel Pessôa, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), também destaca essa discrepância, lembrando que ela já foi muito maior nos anos 1950 e 60.
Nessa época, gastava-se com ensino médio, então de boa qualidade e para um reduzido número de alunos – a taxa bruta de matrícula era de 7% -, dez vezes mais, por aluno, do que no fundamental. Com estudantes do ensino superior, essa razão chegava a cem vezes.
Para Pessôa, esses números refletem as escolhas de uma sociedade elitista, “doente, esquizofrênica, que vivia um sonho dourado da era JK, do Rio bossa-nova”, que gastava importantes recursos construindo Brasília.
Enquanto isso, os investimentos em educação ficavam em apenas 1,5% do PIB, e a taxa de crescimento populacional, na casa dos 3%, fazia do país uma “fábrica de bebês”.
Uma combinação explosiva, cujas consequências apareceriam nas décadas seguintes: favelização das grandes cidades, altíssima criminalidade, baixa produtividade do trabalhador e péssima distribuição de renda.
Pessôa ressalta que, naquela época, o Brasil foi capaz de levantar a bandeira “O petróleo é nosso”, mas ninguém pensou em fazer uma campanha para pôr as crianças na escola e universalizar o ensino.
O economista afirma ainda que a esquerda sempre subestimou a importância da educação, tanto para o desenvolvimento econômico quanto para a redução da desigualdade.
Em seu trabalho, Pessôa cita um dado contundente: cerca de 30% a 50% da desigualdade no Brasil é explicada pela educação dos indivíduos, índice bem acima do verificado em outros países, em torno de 15%.
Logo, ter mais escolaridade, numa sociedade que investiu tão pouco em educação, faz muita diferença.
Está entre os investimentos mais rentáveis. A taxa de retorno da educação no Brasil é de quase 15% por ano de estudo, bastante alta se comparada a aplicações financeiras.
Mas, se a educação gera um retorno privado tão alto, por que os brasileiros investem tão pouco nessa área? É a pergunta que Marcelo Neri, economista da FGV e colunista do Valor, tenta responder em seu capítulo, que trata do paradoxo da evasão escolar.
Neri mostra, primeiramente, como o nível de escolaridade tem enorme impacto sobre a média salarial, que variava, em 2007, de R$ 392, entre os analfabetos, a R$ 3.469 entre aqueles que já frequentaram a pós-graduação.
A diferença na taxa de ocupação nesses dois extremos também é grande, subindo de 59,8% (analfabetos) para 86,3% (pós-graduados).
Ao analisar as respostas à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), referentes à evasão escolar na faixa etária crítica dos 15 aos 17 anos, Neri observa que, diferentemente do senso comum, o principal motivo que leva os alunos a abandonar a sala de aula não tem a ver com a necessidade de geração de renda, mas à falta de interesse intrínseco pelos estudos.
As motivações para a evasão foram divididas em grupos de respostas. As razões ligadas à falta de oferta educacional (falta de vaga, inexistência de escola perto de casa etc.) representaram, em 2006, apenas 10,9% do total.
Os motivos ligados à falta de renda (trabalhar ou procurar trabalho, ajudar nos afazeres domésticos etc.) foram responsáveis por 27,1% dos abandonos.
Já a falta de interesse intrínseco chegou a 40,3% e desse total 13,67% se explicariam por que o aluno “concluiu a série ou curso desejado” e 83,38% por que o jovem “não quis frequentar”.
Para Neri, esses dados trazem uma mensagem pessimista para a questão da educação no Brasil por que apontam para soluções ainda mais difíceis.
Segundo ele, o problema não se resolverá, como geralmente se acredita, priorizando-se apenas a oferta, ou seja, oferecendo mais escolas, mais professores, mais livros, mais computadores.
Também não será combatido simplesmente com políticas que diminuam as restrições de renda, como crédito educativo, concessão de bolsas ou transferências de renda condicionadas, tal qual o Bolsa Família.
Como o problema é essencialmente de interesse, a solução – mais morosa – passa por criar a demanda por educação, mostrar ao jovem e à sua família que a taxa de retorno por ter escolaridade é alta.
“Temos dois desafios: não só o de oferecer ensino de qualidade, mas o de convencer o jovem a ir lá, frequentar a escola. O benefício da educação é gigantesco, mas os estratos mais pobres da população não têm a dimensão desse retorno. O problema da proficiência e da evasão está na casa do aluno. Se pais e filhos não estiverem absolutamente convencidos da importância da educação, as outras políticas públicas não vão resolver”, afirma o economista, que ressalta a necessidade de a escola mudar o conteúdo e a forma como ele é apresentado para que o ensino seja mais atraente.
Esses resultados da pesquisa de Neri estão perfeitamente de acordo com os achados de outros autores do livro.
É o caso do estudo feito por Naercio Menezes-Filho em coautoria com Fernanda Patriota Ribeiro. Seu objetivo foi encontrar quais são os fatores determinantes do rendimento escolar dos alunos do ensino básico paulista.
Para isso, foram analisadas as notas em matemática obtidas na Prova Brasil 2005 e no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) de 2007.
Mais uma vez, os fatores ligados à escola tiveram menos impacto (cerca de 20%) do que o imaginado.
Nada menos que 80% da variação das notas foi explicada pelas características dos próprios alunos.
Desse total, 60% estariam relacionados, entre outros dados, a diferenças de inteligência, temperamento e concentração do estudante e 20% são explicados por outros atributos individuais, sendo os mais importantes a cor da pele, a escolaridade dos pais e sua preocupação com o estudo e ter cursado a pré-escola.
No que se refere às condições da escola, os fatores que se mostraram mais benéficos ao desempenho dos alunos foram: ter um corpo docente permanente, de professores concursados, estável e sem muitas faltas, além de um espaço de recreação e banheiros excelentes.
Quanto ao diretor, ter estudado pedagogia ou receber salários mais altos não ajuda a melhorar o desempenho do aluno.
Mas faz diferença se o diretor completou o mestrado e exerce a função há mais de 20 anos.
“Isso tudo é importante, mas, mesmo que a escola melhore muito e atenda a todos esses requisitos, o desempenho do aluno cresceria 20%. Já é um ganho substancial.
Precisamos, porém, avançar sobre os outros 80%, nos quais temos de lidar com o “background” familiar: se os pais são escolarizados, se incentivam a fazer as tarefas, se há um lugar calmo para estudar em casa.
São fatores mais difíceis de ser atingidos por políticas públicas. No entanto, há outros que podem ser perfeitamente alcançados, como a ampliação do número de vagas em creches e pré-escolas”, afirma Naercio, também colunista do Valor e professor do Insper (ex-Ibmec-SP).
Esse impacto favorável da educação infantil no desenvolvimento intelectual posterior do aluno é analisado no interessante capítulo escrito por Aloisio Pessoa de Araújo, Flávio Cunha, Rodrigo Moura e pelo americano James Heckman, Nobel de economia de 2000.
Eles mostram como os primeiros anos de vida são um período determinante no desenvolvimento da cognição, que está quase totalmente formada antes da entrada na escola.
Isso mostra, defendem os autores, a importância da criação de programas educacionais voltados para crianças em idade pré-escolar que vivem em condições desfavoráveis (famílias desestruturadas, pais que não têm boa escolaridade ou não dão incentivo aos estudos). A intervenção precoce seria uma forma de reduzir a repetência, combater preventivamente a violência e diminuir as desigualdades sociais.
A eficiência do ensino pré-escolar é ilustrada por meio de quatro programas experimentais (três nos Estados Unidos e um nas Ilhas Maurício) realizados nos anos 1960 e 70.
Neles, os alunos foram acompanhados durante muitos anos (em um dos projetos, o Perry, até atingir os 40 anos).
E comparou-se o desempenho das crianças que participaram do programa (grupo de tratamento) com o das que pertenceram ao grupo de controle, formado por alunos com características socioeconômicas semelhantes.
No programa Perry, enquanto 45% dos participantes no grupo de controle concluíram o ensino médio, esse porcentual foi de 66% no grupo de tratamento.
No projeto Abecedarian, 13% concluíram o ensino superior, proporção três vezes maior do que daqueles que não participaram do programa na infância. A educação pré-escolar também teve forte impacto na redução da violência.
No programa CPC, de Chicago, 25% dos jovens que não participaram do projeto já tinham sido presos pelo menos uma vez até os 21 anos. No grupo de tratamento, esse porcentual foi 30% menor.
“A educação infantil tem de ser a bola da vez. Ainda não houve tanto debate sobre essa fase do ensino.
Mas essas experiências mostram como o desenvolvimento cerebral se dá muito cedo e é fundamental para a trajetória de toda a vida.
Os programas são caros, por que são mais complexos, demandam pessoas muito qualificadas, mas os benefícios individuais e para a sociedade são muito evidentes”, afirma o economista Aloisio Pessoa de Araújo.
Em 2006, o custo dos programas Perry e CPC foi, respectivamente, de US$ 9.785 e US$ 8.273 por criança participante. Mas o retorno estimado para a sociedade foi de US$ 9 e US$ 7 para cada dólar investido nos dois programas.
Esse rigor, mais disseminado em países desenvolvidos, de mensurar a qualidade e o impacto do ensino, também está se consolidando no Brasil. É um dos pontos fortes no processo de pôr a educação brasileira nos trilhos, como destaca o livro.
A construção de um sistema abrangente de avaliação, que não existia até meados da década de 1990, representou um avanço nos últimos anos, possibilitando o estabelecimento de metas e políticas públicas claras.
O tema é tratado por Reynaldo Fernandes e Amaury Gremaud no capítulo “Qualidade da Educação: Avaliação, Indicadores e Metas”. Presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC), Fernandes afirma que a avaliação não deve servir só como um diagnóstico, mas tem o papel de alterar atitudes e gerar um sistema de incentivos.
É o que tem ocorrido com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Para Fernandes, o Ideb representa um terceiro momento da evolução do sistema brasileiro de avaliação.
No fim dos anos 1980, aponta, a preocupação principal era apenas com indicadores de fluxo, como repetência e evasão.
Num segundo momento, passou-se a enfatizar a qualidade do aprendizado, mas haver cuidados com a evasão. O mecanismo de avaliação do Ideb valoriza essas duas dimensões: fluxo e desempenho. “Não adianta melhorar a nota do aluno à custa de reprovações e do aumento da evasão”, diz.
A partir do Ideb, foi possível criar o sistema de metas denominado Compromisso Todos pela Educação, introduzido pelo Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).
A cada rede de ensino e escola compete um esforço similar, mas com metas diferenciadas, dependendo do ponto em que se encontravam em 2005.
O objetivo é que esse esforço conjunto faça o Brasil atingir, até 2021, o padrão de qualidade de ensino dos países desenvolvidos. Como fazer isso é o que se está discutindo agora.
Fernandes lembra que, diferentemente de países europeus, como França e Inglaterra, no Brasil o sistema é muito descentralizado.
Por um lado, há vantagens, já que a taxa de inovação é maior. Mas corre-se o risco de não se difundirem as boas práticas se cada sistema se isolar.
Quanto à controvertida questão sobre um sistema de incentivo, Fernandes defende um modelo baseado mais na premiação do que na punição de escolas e profissionais. “Os sistemas de incentivo importam, mas acho o modelo de premiação mais justo.
Quando se põe punição, o quadro pode piorar. Tem de haver pelo menos uma correção, pois não se pode punir uma escola que teve resultados ruins só por que atende alunos mais pobres. Também não posso punir sem dar autonomia ao gestor.
Se ele não pode contratar, fazer escolhas, fica difícil responsabilizá-lo pelos resultados.”
A questão é polêmica e complexa. Mas demonstra como o nível do debate sobre a educação tem avançado no país, recebendo as mais variadas contribuições em livros como este “Educação Básica no Brasil”.
Reportagem publicada na ediçã de fim de semana (7, 8 e 9 de agosto de 2009)