Valorizar e ampliar o espaço das negociações coletivas. Esse é o caminho apontado por especialistas em relações do trabalho para sepultar o arcabouço legal vigente, de origem fascista, estabelecido em 1943 sob Getúlio Vargas. A construção de um novo modelo tem sido uma tarefa lenta e penosa. O alto custo político de mexer com benefícios e direitos tem prejudicado o andamento das tentativas de realizar tanto a reforma trabalhista como a sindical.
Alguns avanços nas negociações entre empresários e trabalhadores ocorreram nas discussões do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), criado em 2003, com cerca de 600 representantes. Segundo Magnus Ribas Apostólico, superintendente de relações do trabalho da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), na questão sindical formou-se um consenso em relação a alguns pontos, tais como respeito às negociações coletivas, exigência e maior controle sobre a representatividade dos sindicatos. Em outros pontos, como a representação sindical na empresa, defendida pelos trabalhadores, não houve acordo e as discussões pararam. “A reforma sindical entrou na pauta do Fórum junto com a reforma trabalhista, mas esta nem chegou a ser discutida.”
A dificuldade no diálogo direto entre representantes do capital e do trabalho é vista como uma barreira cultural a ser superada no Brasil. Ericson Crivelli, professor e advogado, cujo escritório tem forte atuação na área trabalhista, acredita que falta tradição nesse campo porque, historicamente, o Estado sempre foi chamado a intervir. “Embora tenha institucionalizado uma série de direitos para o trabalhador, Vargas de outro lado deixou o sindicato fora da empresa, amenizando o conflito de classe”, explica.
Na opinião de Crivelli, a transição para um novo modelo de relações do trabalho será lenta. “Em países como Itália, Espanha e Portugal houve mudanças a partir de uma forte ruptura, algo que no Brasil é impensável”, diz. O resultado desse acomodamento, a seu ver, está próximo daquilo que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso definiu em entrevista recente: “O brasileiro gosta de Estado – o empresário, para ter proteção e juro baixo e o trabalhador, para ter emprego público.”
A insegurança jurídica, apontada como um dos principais problemas das relações do trabalho é decorrência da equação em que se somam representatividade pobre e leis em excesso. A Justiça do Trabalho julga anualmente 2 milhões de processos, quase cem vezes mais do que se registra nos países mais desenvolvidos. Até outubro, o Tribunal Superior do Trabalho havia julgado 216 mil processos. “Há um esforço para limpar a pauta dos processos anteriores a 2005. Desde que assumi a presidência do TST, em março, já julgamos 70% dos 50 mil processos na fila”, diz o ministro Milton de Moura França.
O excesso de normas e leis faz com que o caminho do Judiciário seja, na maioria das vezes, mais vantajoso do que o da negociação, segundo Pedro Cesar da Silva, sócio da ASPR Consultoria e Auditoria. Ele entende que a reforma sindical ganhou mais importância em função da evolução e das mudanças no mundo do trabalho. “É preciso que haja pluralismo sindical para que cada entidade possa mostrar ao trabalhador a real vantagem de ser filiado a ela”, diz.
O fortalecimento da representação sindical, a seu ver, permite a mudança para o modelo efetivo de negociação e conciliação. “É claro que para isso seria necessário flexibilizar algumas normas para que alguns direitos pudessem ser negociados de acordo com a conveniência das partes, como a redução do período de férias, por exemplo”, diz.
Mexer com direitos em grande parte assegurados pela Constituição não significa impedimento para a negociação. “É possível estabelecer uma agenda comum. O objetivo dos sindicatos não é só confrontar”, diz Adi dos Santos Lima, presidente da CUT-SP. Para ele, a modernização das relações de trabalho passa pela reforma sindical. “É preciso acabar com o sindicato de gaveta”, diz.
A prática já mostra que o caminho da negociação pode trazer mudanças em assuntos para os quais há legislação específica. Exemplo disso é a redução da jornada de trabalho semanal de 44 horas para 40 horas. A medida já é adotada pelas indústrias automobilística e farmacêutica por meio de convenção coletiva. Há no Congresso uma proposta do deputado Vicente Paula da Silva (PT-SP) para institucionalizar a redução, incluindo o aumento da hora extra de 50% para 75% do salário.
O foco da divergência em torno do tema ocorre nem tanto pela medida em si, mas pelo fato de extrapolar o âmbito da negociação coletiva. A própria Confederação Nacional da Indústria (CNI) já se manifestou a respeito, esclarecendo que a decisão de reduzir a jornada não deveria ficar engessada na Constituição porque o impacto é diferente para cada setor da economia bem como para grandes e pequenas empresas. O objetivo pretendido pelas centrais sindicais de gerar empregos poderia, dependendo do setor, trazer mais custo e redução das vagas de trabalho. Segundo Adauto Duarte, integrante do Conselho de Relações Trabalhistas da CNI, nos países da União Europeia, a jornada fixada por lei, de 48 horas, funciona como um teto que serve de referência para as negociações.
Com leis em abundância e uma estrutura burocrática pesada, o risco de interpretações divergentes é grande. Foi o que aconteceu há pouco com o pagamento do adicional de insalubridade. Vários tribunais regionais interpretaram de forma equivocada uma medida do Supremo Tribunal Federal e passaram a considerar o pagamento do benefício com base no salário do funcionário e não sobre o salário mínimo. As decisões foram suspensas pelo STF. O cálculo do adicional de insalubridade, que pode variar em percentagens de 10%, 20% e 40%, de acordo com o grau de risco da atividade, deve ser feito com base no salário mínimo até que haja lei ou convenção coletiva em contrário.
Para o presidente do TST, Milton de Moura França, há casos em que os processos judiciais ocorrem porque as empresas são mal assessoradas. Cita um julgamento em que o contrato de experiência do funcionário não foi registrado. O contador alegou achar que não fosse necessário. Para o advogado Ericson Crivelli, a obrigação de quem presta assessoria jurídica é mostrar ao cliente o grau de risco real de qualquer ação com base na jurisprudência do TST e não apenas apostando na interpretação dos tribunais regionais. Para o advogado Adauto Duarte, uma saída para mitigar os efeitos das mudanças de jurisprudência, em função de interpretações divergentes em tribunais, seria alterar o entendimento de que as decisões precisam ser retroativas a cinco anos. “Além de reduzir o passivo oculto das empresas, a medida inibiria a indústria de reivindicações trabalhistas.”
Estabelecer consenso sobre temas que afetam tão diretamente a vida de empresas e de trabalhadores não é fácil mesmo para a Justiça. O ministro Moura França admite que está em minoria no TST em relação à possibilidade de convenções coletivas alterarem itens regulamentados pela CLT ou pela Constituição. “Valorizar a negociação não significa tirar direitos”, afirma. Ele dá como exemplo a redução de salário. “Em situações de grave crise econômica, deveria ser possível negociar um acordo nesse sentido”, diz.
Em alguns casos, explica o ministro, a jurisprudência sobre determinados assuntos é formada na prática. Há pouco menos de um mês o TST declarou válida a cláusula do acordo coletivo da Volkswagen com o sindicato dos trabalhadores que previa o pagamento mensal da participação nos lucros. A decisão final alterou entendimento da sexta turma do próprio TST, que havia invalidado a cláusula. Prevaleceu o entendimento de que não havia infração à lei, pois a regra estava amparada em acordo coletivo que seguiu a vontade da empresa e dos trabalhadores.
Para Moura França, o poder normativo da Justiça do Trabalho deve atuar apenas na lacuna da lei. “Não temos legislação específica sobre demissão coletiva, pois o Brasil não é signatário da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho”, diz. Em função disso, coube ao TST validar as demissões feitas pela Embraer no começo do ano, anulando a decisão do tribunal regional que pedira a readmissão dos funcionários por entender que a empresa estava obrigada a negociar a dispensa com os sindicatos. Moura França explica que não há dispositivo legal que imponha essa obrigação. A empresa cumpriu o que diz a lei, que estabelece a indenização no caso de dispensa.
Um dos aperfeiçoamentos da Constituição de 1988 foi o de ampliar a competência da Justiça do Trabalho, por meio da emenda 45, que promoveu a reforma do Judiciário. Para Crivelli, um dos pontos importantes foi o de estabelecer a obrigatoriedade de acordo nos dissídios coletivos para encaminhar determinados assuntos para a Justiça.
No caso da última greve dos bancários, por exemplo, os bancos não puderam entrar com pedido de dissídio coletivo por causa da paralisação. “Eles foram obrigados a negociar”, diz o advogado. Somente o Ministério Público da área trabalhista pode entrar com pedido de dissídio de greve. Na opinião de Crivelli, o poder normativo carrega um viés autoritário porque substitui a solução negociada. O que não tira a importância e a necessidade da instância judicial na solução de conflitos. “É que muitas vezes há sindicatos que são fracos por opção e preferem o caminho da Justiça por ser mais cômodo”, explica.
Pedro César da Silva, da ASPR, observa que é raro uma empresa, por mais que seja seguidora das leis, não ter processo trabalhista. O que, segundo ele, demonstra que é praticamente impossível atender no detalhe tudo o que está escrito nas leis. “Isso traz custos que poderiam ser evitados”, afirma. Para Sergio Watanabe, presidente do Sindicato da Indústria de Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon) há um custo adicional para o Estado no gigantesco esforço de fiscalização.
As reformas trabalhista e sindical poderão ocorrer à revelia de decisões políticas. Crivelli observa que a globalização está impondo novos modelos. “Caminhamos, mesmo que devagar, para mudanças”, diz. Nos casos de dispositivos constitucionais para os quais ainda não há regulamentação, acredita que o STF acabará firmando jurisprudência, sem esperar as decisões do Legislativo.