Excelentíssimo Senhor Reitor
Prof. Dr. Álvaro Toubes Prata
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
Cumprimentando-o cordialmente, tomo a liberdade de manifestar minha apreensão, consternação e indignação pela indicação, seleção e publicização do livro “O Presidente Negro” ou “Choque das Raças”, de Monteiro Lobato, como obra prevista para o Concurso Vestibular 2010, com um agravante sério, a recusa em rever tal decisão mesmo em face de seguidas ponderações às instâncias competentes. Aliás, estes não são sentimentos particulares, mas de outros tantos militantes de movimentos negros, de mulheres e de afirmação de direitos, como os das pessoas com deficiência, que prontamente contataram nossa organização, o Núcleo de Estudos Negros/NEN, desejosos de uma posição coletiva.
Este livro, escrito e editado em 1926, ainda que de modo ficcional, não só expressa, mas reafirma um ideário racista e racializado, sexista e eugênico presente em um contexto da sociedade brasileira, que exaustivamente vem sendo esmiuçado por pesquisadores e estudiosos de diferentes campos de conhecimento, da sociologia à educação, da antropologia á biologia, da história à literatura. Neste conjunto, nenhum motivo é capaz de explica o sentido e o significado de sua seleção e indicação para constar entre os livros previstos para o vestibular. Como é possível uma obra anterior à Proclamação dos Direitos Humanos, de 1948, que guarda estreita e inequívoca relação como as práticas nazi-facistas instauradas entre os anos finais de 1930 e os iniciais de 1940, e que teve sua maior expressão na II Guerra Mundial, ser escolhida para um concurso de Vestibular, em 2009? Como é possível a indicação de uma obra que expressa declaradamente a apologia da pureza de raçad+ que defende abertamente a eliminação da raça negra pela esterilização por ser considerado um ser inferior d+ que é capaz de apresentar as mulheres como mesquinhas, incapazes de utilização da inteligência, volúveis, enfim, “she are as water”, como será dito em algum momentod+ que professa a eliminação física dos deficientes físicos logo após o nascimento, a eutanásia para os doentes e a supressão física dos pobres? Afinal, como é possível uma obra que tece loas ao eugenismo, propaga preconceitos de diferentes naturezas, enaltece a supremacia de raça branca e difunde discriminação racial pode fazer parte da indicação e seleção de concurso de uma instituição pública que proclama em sua Estatuinte como finalidade institucional: “produzir, sistematizar e socializar o saber filosófico, científico, artístico e tecnológico, ampliando e aprofundando a formação do ser humano para o exercício profissional, a reflexão crítica, solidariedade nacional e internacional, na perspectiva da construção de uma sociedade justa e democrática e na defesa da qualidade de vida” (grifo nosso)?
Não é o caso aqui tecer ilações sobre o metier próprio da crítica literária, mas se o livro foi indicado e selecionado tomando-o por si mesmo, considerando estritamente seu conteúdo, estilo e autor, como é possível permitir uma obra que agrida frontalmente a integridade e os princípios de direitos humanos e constitucionais dos sujeitos (homens e mulheres, negros e não-negros, e pessoas com deficiências) que estarão participando do concurso vestibular? Uma agressão grave aos princípios de isonomia e de razoabilidade.
Se a sua indicação e seleção foram em alusão ao recente pleito e eleição do Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, como o é comumente referenciado, só devemos lastimar pelo primarismo e oportunismo crassos, que desconhecem fronteira e juízo. Se a obra é tomada pelo seu aspecto ficcional por que a referência a uma realidade social, política e histórica contemporânea? Se aceita afirmativamente a resposta a tal interrogação por que não seriam menos ou mais verdadeiras as ilações e juízos de valores sobre eugenia, eutanásia, sobre racismo, sexismo e todas as práticas permissivas, cruéis e abomináveis associadas à intolerância, presentes no livro.
Por certo, podemos encontrar muitas opiniões controvertidas sobre os alcances preconceituosos e racistas destilados por Monteiro Lobato neste livro (há outros emblemáticos do autor, como Urupês, de 1918, e Memórias de Emília, de 1936, que sugerem que o autor discorria estes temas com natural desenvoltura). Algumas encontram fortes e contundentes indícios, outras nem tanto que mereçam destaque, como há, ainda, aquelas que não são capazes de encontrar algum indício que cause suspeição. Entretanto, nenhuma delas deixará de se sentir tão desconfortável diante das próprias palavras “sinceras” de Lobato ao escrever para Godofredo Rangel, escritor e amigo íntimo, falando do livro e da reiterada recusa de sua edição nos EUA: “Meu romance não encontra editor. (…) Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.” (grifo nosso). Novamente, muitos podem identificar puro cinismo, outros somente o exercício da ironia e alguns – mais uma vez – nada de mais.
Mas o que é mais estarrecedor é como existem sujeitos que insistem em não querer ver o que Lobato jamais quis esconder. Lobato não foi um homem alheio ao seu tempo. Ele esteve ativa e envolvidamente presente nos debates de seus contemporâneos. Assim, num cenário social tão próximo a Machado de Assis, Lima Barreto, Luis Gama, Cruz e Souza, entre outros, Lobato assinar a ficha de associado da sociedade eugênica de São Paulo, criada em 1917 e a primeira organização desta natureza na América Latina, era somente um modo particular do tomar partido das disputas mais acirradas de sua época: afirmação da supremacia racial, miscigenação e mestiçagem como degeneração da raça, ideologia do embranquecimento e por aí afora. Talvez, muitos dos comentadores de Lobato têm sua parcela de responsabilidade ao fazer assepsias de sua biografia escondendo suas incongruências ideológicas e racistas. Mas quantos cadáveres serão ainda capazes de esconder nos armários da vida social para conceder ao autor do consagrado Sítio do Picapau Amarelo, a paz de espírito dos mortos? Mesmo assim, querer ver em Lobato o que jamais quis ou pensou de si mesmo, só será compreensível como produto, tomando as palavras de Saramago, de uma “insolência cínica”.
Em resumo, ouso dizer a V.Ex.ª que diante dos fatos, a oportuna e razoável decisão de retirada do livro de Monteiro Lobado da bibliografia prevista para o Vestibular e, consequentemente, a exclusão de qualquer questão referente ao conteúdo do livro, torna-se um questão menor. As decisões imperiosas que se quer ver assumem dimensões maiores às reivindicações citadas:
– rever o papel, função e atribuições da Comissão Permanente do Vestibular/COPERVE em face de tomar decisões que agridem e ferem os princípios nucleares constitucionais e de Direitos Humanos como os princípios norteadores da finalidade de uma universidade pública, democrática e plural. A COPERVE não está acima de qualquer suspeita, tampouco à margem das instâncias institucionais, como Conselho Universitário e Reitoria.
– identificar e responsabilizar a quem de direito pelo processo de escolha e seleção de uma bibliografia que não condiz com valores e direitos sociais e humanos construídos e consagrados nas sociedades democráticas atuais.
– reconhecer como grave a escolha, seleção e publicização desta obra particular de Lobato e expressar publicamente desculpas à sociedade e às pessoas que de alguma forma se sentirem ofendidas, injuriadas e discriminadas.
Devemos reconhecer, que apesar de aquém do ritmo desejado, são louváveis os esforços, e com eles os avanços, que a sociedade brasileira tem obtido nas políticas de educação de ensino superior com a ampliação do atendimento de jovens – homens e mulheres –, como a ampliação da diversidade sócio-econômica e étnico-racial. As universidades públicas, em particular as universidades federais, têm dado sinais auspiciosos quanto à democratização de acesso, à vitalização de seu estatuto de instituição social como bem público e produtora de conhecimentos de qualidade e excelência sociais.
Em face disto, não é possível esperar menos da Universidade Federal de Santa Catarina. Se desejarmos consagrar o lugar social que ela ocupa, devemos – todos/as – ser vigilantes contra toda e qualquer agressão que não condiz com o ideário de uma sociedade justa>emocrática e plural. Para tanto, é imprescindível que todas as formas de discriminação, racismos e intolerâncias sejam abominadas e enfrentadas.
Por fim, assumo o risco de confessar a V.Ex.ª minha crença de que as grandes decisões humanas, aquelas que decididamente fizeram diferença para vidas das pessoas e sociedades, foram produtos de coragens singulares que ousaram enfrentar o que se cria estar fora de lugar. Esta idéia poderia ser capturada, com lirismo, numa expressão do rapper estadunidense, Jay-Z: “Rosa Parks sentou-se para que Martin Luther King pudesse andar: Luther King andou para que Obama pudesse correr: Obama está correndo para que nós possamos voar.”
Não basta a indignação com os fatos, é preciso dizê-la, por isso também se deseja de V. Ex.ª ação e a proclamação das providências ao pleito.
Atenciosamente,
Florianópolis, 12 de novembro de 2009.
* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE/UFSC e membro do Núcleo de Estudos Negros/NEN, onde exerce a função de Coordenador do Programa de Educação
[email protected]
C/Cópias:
Exmo Sr. Fernando Haddad, Ministro da Educação.
Exmo Sr. Edson Santos, Ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial.
Exma Sr.ª Nilcéa Freire, Ministra da Secretaria Especial de Políticas paras as Mulheres.
Exmo. Sr.ª Maria Paula Dallari Bucci, Secretaria da Educação Superior/Ministério da
Educação.