O presidente Luiz Inácio Lula da Silva demitiu ontem um general de quatro estrelas do exército, entre a posse e a transmissão de cargo do novo ministro da Justiça, não mais que duas horas, sem que isso provocasse uma crise político-militar. O demitido foi o chefe do Departamento Geral de Pessoal do Exército, Maynard Marques de Santa Rosa, exonerado do cargo por discordar da criação da Comissão da Verdade à qual chamou de “comissão da calúnia”, que vai investigar o desrespeito aos direitos humanos durante o regime militar (1964-1985).
A demissão de Santa Rosa foi a mais importante manifestação de afirmação política do Ministério da Defesa desde sua criação, e ocorreu sem registro de indisciplina nos quartéis. Já próximo de passar para a reserva, o general escreveu uma nota que circulou na internet e foi publicada ontem pelo jornal “Folha de S. Paulo”. Nela, afirma que “confiar a busca da verdade a fanáticos é o mesmo que entregar o galinheiro aos cuidados da raposa”, entre outras coisas.
A decisão de Lula foi articulada pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, e apoiada pelo comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, e está bem resumida na nota publicada pelo Ministério da Defesa que anunciou a exoneração de Santa Rosa. Mas ela se tornou possível bem antes disso, quando Jobim e os comandantes das três forças ameaçaram se demitir do cargo, se Lula mantivesse a Comissão da Verdade nos termos originalmente sugeridos pela Secretaria de Direitos Humanos.
Jobim explicou a Lula que se comprometera com os comandantes militares que a criação da Comissão da Verdade não ultrapassaria a linha da lei da anistia. No entanto, o decreto publicado pelo presidente poderia levar à revogação da própria lei da anistia: o entendimento dominante é que a anistia é recíproca, para civis e militares torturadores ou não envolvidos no conflito armado no final dos anos 60 e início dos 70. Lula recuou e deu argumento para Jobim atacar qualquer tipo de indisciplina nos quartéis, como é o caso da nota escrita por Santa Rosa.
A manutenção do general no posto de diretor do Departamento Geral de Pessoal (DGP), um dos cargos mais influentes do Exército, representaria uma quebra da hierarquia e a desmoralização do ministro e do comandante da força. Santa Rosa escreve o roteiro de sua exoneração desde que Jobim chegou ao ministro da Defesa, onde o general ocupava a Secretaria de Política e Estratégia e Assuntos Internacionais. Quando Jobim pediu para ver a “estratégia”, o general recusou. Para o público externo ficou a versão segundo a qual Santa Rosa divergia – o que é fato – do emprego de militares para dar apoio à retirada de colonos na reserva indígena “Raposa Serra do Sol”, em Roraima.
Quando a Secretaria dos Direitos Humanos publicou um livro sobre os desaparecidos políticos, o general também engrossou as fileiras dos militares que queriam protestar contra a edição da publicação, apesar de ordem em contrário do ministro da Defesa. À época, Santa Rosa ficou mais nos bastidores. Na Defesa acredita-se que ele agora tenha resolvido se expor por estar próximo de passar para a reserva. É certo, no entanto, que há focos remanescentes de descontentamentos entre os militares da ativa, mas “sob controle”, segundo fontes civis especialistas em Defesa. O problema é maior na reserva. Ontem o antigo capitão Jair Bolsonaro divulgou na internet fotos de atentados supostamente praticados pelo “grupo de Dilma (Rousseff, ministra da Casa Civil)”.
A questão da Lei da Anistia, no entanto, ainda não está encerrada, o que, segundo o entendimento do próprio Nelson Jobim, só ocorrerá quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar uma ação da OAB que questiona a extensão da lei da anistia. Se o Supremo confirmar o entendimento dominante, de que a anistia é recíproca, a Defesa aposta que parentes e até mesmo militares que levaram documentos se apresentem para ajudar a esclarecer o destino dos desaparecidos políticos. Sem uma garantia legal, há insegurança. O ministério diz que os documentos disponíveis nos arquivos militares já foram abertos.
Antes de sair para a cerimônia de posse do novo ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, no Centro Cultural Banco do Brasil, onde Lula despacha provisoriamente, Jobim telefonou para o comandante do Exército, general Enzo Peri, que se encontrava em santa Maria (RS). O general não tardou a retornar com a informação de que a nota de Santa Rosa se tratava de “correspondência pessoal indevidamente propagada pela internet, sendo, portanto, uma opinião particular”.
O próprio Enzo sugeriu o afastamento do general Santa Rosa do cargo. As últimas demissões dramáticas de generais ocorreram no regime militar, quando o presidente Ernesto Geisel colocou de pijama, respectivamente, os generais Ednardo D’Ávilla Mello, na sequência das mortes, sob tortura, do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, e do próprio ministro do Exército à época, general Sylvio Frota, que se rebelou contra a indicação do sucessor de Geisel, o ex-presidente João Figueiredo.