Já se passaram seis anos e a frase ainda martela a cabeça dos alunos: “A Medicina da Uerj não é mais a mesma. Não respeito aluno que tira menos que 7. Não respeito cotista.” A bronca do professor, um catedrático da Uerj, logo no primeiro ano da faculdade, foi o exemplo mais explícito da animosidade contra a presença dos cotistas no curso.
A prova que provocou a ira do professor tinha apenas quatro questões discursivas. “Todas dificílimas e sobre uma matéria que a gente não tinha estudado”, lembra Flávia Nobre, 24 anos, cotista, que agora faz residência de cirurgia geral na Uerj. Apenas uma aluna, não cotista, foi bem. Tirou dez. Os outros 93 alunos, cotistas e não cotistas, não passaram dos 3,5.
Na hora, não houve reação. Pesou a favor do silêncio o poder do professor de dificultar a vida de quem contraria sua opinião. “Eu sei que é uma posição submissa, mas a gente precisa se formar. É uma reação de sobrevivência”, diz Euclides Colaço, cotista.
A melhor resposta foi o desempenho da turma ao longo do curso. “Se a turma é boa, ela conquista o respeito do professor. A nossa turma sempre se dedicou e provou quando necessário que era muito boa”, avalia Felipe Bessa, não cotista.
Como a decisão de aceitar cotistas não foi discutida pelo Conselho Universitário da Uerj e sim imposta por uma lei estadual, os professores contrários ao sistema não gostam de falar abertamente sobre o assunto. “A entrada tem de ser por mérito. Cotista é uma farsa”, diz um professor com mais de 20 anos de Uerj, que não quis se identificar.
O diretor da faculdade, Plínio José da Rocha, não discute se o sistema é bom. “Lei se cumpre e se tenta que as coisas andem o melhor possível.” Mas afirma que o curso não piorou. “A Uerj não precisou mudar para receber os cotistas. Também não houve um aumento de reprovação.” A essência do curso pode não ter mudado, mas a universidade ficou diferente. “Primeiro porque a turma ficou mais colorida com a presença de mais negros”, diz Renata Aranha, ginecologista e diretora de extensão da Uerj. Renata percebeu também que os alunos passaram a perguntar mais nas aulas. “Não me importo em explicar a mesma coisa três vezes. Não sei se os que perguntavam eram cotistas ou não. Mas a minha sensação é de que antes os alunos tinham vergonha de perguntar.” Renata é a favor das cotas. “Acredito nas políticas afirmativas, mas elas precisam ser temporárias e utilizadas sem distorções.”
Para ela, o maior mérito das cotas na Medicina é mudar a imagem do negro na sociedade. “Quando você chega com dor num hospital e quem te salva é um negro, isso ajuda a transformar a imagem da população em relação à raça.”
O vice-diretor André Melgaço ressalta o empenho dos cotistas e espera com ansiedade o resultado do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), para avaliar se a Uerj mudou. “Um grande número de cotistas demonstra um esforço compensatório que os fazem atingir conceitos suficientes para colarem grau. Muitos alunos não cotistas, de colégios considerados de bom padrão, não mostram essa dedicação e acabam com notas inferiores às de cotistas.”