Parece haver apenas dois caminhos quando se fala em Escola Sem Partido –movimento no qual se baseiam diversos projetos de lei espalhados pelo Brasil.
Você defende o combate a uma doutrinação política, partidária e sexual nas instituições de ensino. Não vê problemas no fato de alunos gravarem as aulas e denunciarem os professores, caso considerem haver doutrinação. Também aprova que sejam afixados cartazes nas paredes com os deveres dos professores (veja abaixo), pois isso criaria maior transparência no processo de aprendizagem.
Ou você considera o projeto uma “lei da mordaça”, que levará censura para a sala de aula –isso porque alguns temas não poderão ser debatidos e qualquer informação pode ser encarada como “doutrinação”. A gravação das aulas, o cartaz com deveres e o incentivo às denúncias tendem a acuar o professor, quebrando a relação de confiança com os alunos. Esses profissionais também poderiam ser criminalizados, criando instabilidade jurídica na escola.
Os dois lados defendem de maneiras diferentes a “pluralidade de ideias”, mas estão longe de chegar a um meio-termo em que convivam opiniões contrárias. Mas existe, sim, um ponto de consenso: mesmo sem virar lei, a proposta já trouxe impactos para o sistema de educação brasileiro.
Fecham-se esses parênteses de concordância, pois a oposição volta imediatamente quando se trata de classificar as mudanças. Se são positivas ou negativas, depende, é claro, do lado em que se está nesse debate.
Flavio Augusto da Silva, o deputado Flavinho (PSC-SP), é relator do projeto de lei apresentado em 2014, que vinha sendo debatido em uma comissão especial na Câmara dos Deputados e acabou não sendo votado. Em vídeo após a comissão encerrar os trabalhos, ele avaliou o impacto como positivo.
“Tiramos o véu que acobertava essa ação maldita dos doutrinadores dentro da estrutura educacional brasileira, e agora esses doutrinadores não ficarão impunes diante dos olhos da sociedade […]. Daqui para frente a educação brasileira não será mais a mesma e digo isso com uma visão positiva”, deputado Flavinho, relator do projeto.
Andressa Pellanda vê o projeto como algo negativo. Ela é coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Essa rede está entre dezenas de instituições que elaboraram o “Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas”, para “combater atos de perseguição que exploram uma eventual fragilidade dos profissionais da educação, criando um clima de medo e autocensura nas escolas”.
“Já existe um impacto visível dentro da sala de aula: uma prerrogativa quase inquisitória, que deixa os professores acuados. A aprovação [da lei] pode fortalecer esse movimento, mas ele já vem acontecendo e impacta negativamente a relação entre professores e alunos, prejudicando a qualidade da educação”, Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
O cartaz: deveres do professor, segundo o Escola Sem Partido.
1. Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.
2. O Professor não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.
3. O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.
4. Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa –isto é, com a mesma profundidade e seriedade–, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria.
5. O Professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
6. O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula.
Veja a seguir os pontos de vista dos lados opostos na discussão sobre o ensino no Brasil.
Flavinho, deputado relator do projeto Escola Sem Partido
“Pais não vão mais tolerar os doutrinadores”
O deputado Flavinho afirma haver um problema “muito sério” na estrutura educacional brasileira: a doutrinação política, partidária e sexual que vai desde o ensino básico até as universidades. “Esse projeto toca nos doutrinadores de esquerda, que têm agido sorrateiramente há muito tempo”, diz o relator do projeto que defende “precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”.
Segundo ele, tratava-se de um tema sobre o qual ninguém queria falar até o Escola Sem Partido ganhar força. E gerava perseguição aos alunos que “discordavam dos professores esquerdistas” e aos professores que “não se alinhavam com o status quo esquerdista que domina a estrutura educacional brasileira”. “A partir de agora isso mudou. Porque os pais estão mais atentos, os alunos sabem mais dos seus direitos. Nós, pais, não vamos mais tolerar esses doutrinadores dentro da estrutura educacional brasileira”.
Para isso o relator reforça a possibilidade de denúncia, falando que os pais podem “mandar seu filho gravar aquilo que o doutrinador está fazendo”, caso o aluno seja assediado, coagido ou prejudicado dentro da escola. “Isso não é crime, crime é o que os doutrinadores estão fazendo com seus filhos.” E aconselha os professores a fazerem esses registros, se forem perseguidos dentro da estrutura educacional: “Não se cale mais, denuncie”.
Procurado, o deputado não quis dar entrevista. Sua assessoria afirmou que o conteúdo a ser abordado pela reportagem poderia ser encontrado em vídeos de sua página pessoal no Facebook, de onde foram tiradas as declarações acima.
Associações ligadas à educação
Professores monitorados e censura na sala de aula.
Associações da sociedade civil e de entidades ligadas à educação –precisamente a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e o Todos Pela Educação– afirmam que o projeto Escola Sem Partido leva a censura para sala de aula.
“Esse movimento tem mais força do ponto de vista moral do que legal. Os professores já estão começando a serem expostos com esse incentivo para serem filmados. Isso os deixa acuados dentro da sala de aula e cria uma autocensura, podendo fazer com que deixem de passar uma atividade ou trabalhar algum assunto que possa ser interpretado como doutrinação”, afirma Andressa Pellanda, da Campanha.
“Esse incentivo à filmagem do professor amparado pelo Escola Sem Partido é muito negativo para o processo educacional, um absurdo gigantesco. Essa relação precisa ser preservada, valorizada, incentivada, não o oposto: alunos e famílias contra os professores”, Priscila Cruz, do Todos Pela Educação.
Cruz afirma que na escola do século 21 não cabe o professor despejar conteúdo: é preciso que o aluno crie autonomia para aprender a partir do debate com outros estudantes e com os professores. Em outras palavras, aprender pela interação e com pessoas que muitas vezes pensam de maneira diferente. Pellanda completa, dizendo que o projeto coloca o pluralismo em xeque: “Apesar de dizerem que são a favor de ideias plurais, querem evitar a discussão de algumas pautas”.
Para a presidente do Todos pela Educação, o foco da discussão deveria estar na formação dos professores: é preciso haver clareza nos objetivos, escolas bem geridas e material didático alinhado à base da educação. “A Escola Sem Partido é uma ilusão de atalho para acabar com a doutrinação, traz uma simplificação absurda para as questões educacionais. Como se perseguindo os professores fosse possível garantir a aprendizagem”.
Simone de Oliveira, do grupo Mães pelo Escola Sem Partido
“É preciso mostrar mais de uma vertente aos alunos”
Advogada e administradora do grupo Mães pelo Escola Sem Partido, curtida por cerca de 26 mil pessoas no Facebook, Simone de Oliveira acredita que o principal impacto do projeto está na pluralidade de ideias. Mãe de um casal –ele no 6º ano, ela no ensino médio–, Oliveira afirma que muitos professores seguem uma única linha ideológica e colocam seu ponto de vista como sendo “único, absoluto e correto”.
“É preciso ter respeito às opiniões contrárias, mostrar mais de uma vertente aos alunos. As escolas estão há mais de 20 anos seguindo uma política de esquerda marxista. Não é para apresentar só a versão com a qual o pai concorda, mas várias para fazer o aluno pensar e tirar conclusões”, Simone de Oliveira, do grupo Mães pelo Escola Sem Partido.
Ela dá o exemplo de quando o filho falou que, na época do governo militar, todos os opositores foram presos e torturados. Ela fez a ressalva de que alguns foram presos e torturados, mas não todos. E foi à escola conversar, dizendo que o material didático havia passado do ponto. Voltou à instituição quando o professor de geografia da filha falou sobre neoliberalismo, os possíveis ministros do presidente eleito Jair Bolsonaro, o MST (Movimento dos Sem Terra) e explicou por que votaria no PT. “Acho que ele extrapolou, foi além do necessário. Não fazia parte da matéria, era simplesmente sua opinião.”
Os exemplos acima, segundo a advogada, mostram que o projeto já causa impacto, chamando atenção para o assunto. Isso faz com que os pais prestem mais atenção ao material didático e ao conteúdo ensinado aos filhos.
Para Oliveira, o projeto não criminaliza os professores nem deve aumentar o número de processos às escolas. “O pai não vai concordar com tudo o que for ensinado, mas sabe que haverá esse pluralismo. […] Nem todos os professores fazem doutrinação e só haverá impacto para os doutrinadores.”
Escolas particulares
Pouco impacto, criminalização e desprestígio
Caso o projeto de lei seja aprovado, as escolas públicas terão de seguir o texto do Escola Sem Partido. Já as “escolas particulares de orientação confessional e ideologia específica poderão veicular e promover os conteúdos de cunho religioso, moral e ideológico autorizados contratualmente pelos pais ou responsáveis”, como prevê o artigo 7º do projeto debatido na Câmara.
Para Esther Carvalho, diretora-geral do Colégio Rio Branco (SP), a mudança deve ser pequena nas instituições particulares por causa da natureza da relação das famílias com essas instituições de ensino. “As escolas privadas passam por uma escolha dos pais. É preciso, portanto, comunicar bem seu projeto pedagógico, afinar aquilo que está fazendo o tempo todo. Não vamos conseguir acertar 100% com todas as famílias, haverá discordância, mas é preciso estar muito claro qual o embasamento do projeto [pedagógico].”
Ademar Batista Pereira, presidente da Fenep (Federação Nacional das Escolas Particulares), acredita que o impacto será maior no sentido de criminalizar os professores e criar instabilidade jurídica para as escolas particulares. “Participamos da discussão do Escola Sem Partido anos atrás, para garantir que os alunos tivessem acesso a diferentes versões sobre uma situação ou aprendizado. Era algo simples, baseado nos cartazes. Não era de direita nem de esquerda”, lembra. Em sua opinião, a proposta mudou muito.
“O projeto hoje trata de forma genérica assuntos que podem e devem ser debatidos nas escolas, levando qualquer discussão eminentemente pedagógica a ser criminalizada se tirada do contexto. Se criminalizarmos o professor, ele vai se recolher, deixar de fazer, perder o envolvimento”, Ademar Batista Pereira, presidente da Fenep.
Diretora do Colégio Equipe (SP), Ausonia Donato destaca algo que chamou sua atenção no texto do projeto Escola Sem Partido: o fato de não haver a palavra “cidadania”: “As propostas pedagógicas são elaboradas tendo como referência a concepção de cidadania. Quando se entendia que cidadão era um ser esclarecido, ilustre, com grande bagagem de conhecimento [concepção iluminista], os currículos da escola eram extensos, com muitas disciplinas, pois o grande objetivo da educação era transmitir todo esse saber. Quando as leis explicitam a concepção de cidadania, como já foi dito, elabora-se uma proposta educacional coerente com esta visão”.
“No caso desta lei, sequer a palavra cidadania aparece, então nos perguntamos se este tipo de educação prepara para a cidadania. Parece que não. Talvez forme um consumidor, aquele que consome ideias, conhecimentos, informações, sem refletir sobre elas”, Ausonia Donato, diretora do Colégio Equipe.
Esses e outros questionamentos ainda estão longe de serem respondidos –e, novamente, as respostas dependem muito do posicionamento dos envolvidos no debate. Entre as certezas está o fato de o debate político ter ganhado força dentro da sala de aula, mesmo que essa pauta não estivesse no planejamento das escolas. Sem votação neste ano, a proposta debatida na Câmara pode ser desarquivada em 2019, quando os novos deputados assumirem seus mandatos. Se isso acontecer, o trâmite para votação começará do zero.
Fonte: UOL