As três dimensões da crise universitária

*Por Fábio Lopes

Não há dúvida de que a UFSC passa por uma crise de proporções bíblicas. Mas qual a natureza dessa crise? É preciso compreendê-la a fim de poder enfrentá-la.

Eu diria que ela pode ser didaticamente dividida em três dimensões que, claro, se relacionam mas ao mesmo tempo se distinguem suficientemente umas das outras.

A primeira dimensão é macro. Diz respeito ao estado da economia brasileira. Nas últimas décadas, o país vem conhecendo um processo severo de desindustrialização. O nosso parque tecnológico, por outro lado, é modesto e sem perspectivas de se ampliar significativamente. Ora, é óbvio que, em um tal ambiente, a demanda pelo tipo de formação que as universidades oferecem despenca.

Compare-se o que estamos vivendo agora ao momento em que a UFSC foi fundada. Corria o ano de 1960. Estávamos no auge de um ciclo de desenvolvimento que se iniciara com a Revolução de 1930. De 1940 a 1980, o Brasil cresceu em média 6% ao ano. Deixou de ser um país rural, com altos índices de analfabetismo e nenhuma importância geopolítica, para ser a oitava economia do mundo.

A UFSC era, à altura de seu surgimento e pelos anos seguintes, um peixe na água do crescimento econômico brasileiro. Ela preparava os profissionais que alimentavam e dirigiam o processo de desenvolvimento em Santa Catarina. Hoje, pelo contrário, é uma estranha no ninho de uma nação que se consolida como mera exportadora de produtos primários.

Já a segunda dimensão da crise da UFSC se relaciona à história recente do país. Refiro-me, fundamentalmente, a dois fatos ocorridos durante o primeiro ciclo petista no governo: a expressiva expansão do sistema universitário federal e, via Fies, o fortalecimento do sistema privado de ensino.

Na época, isso parecia uma boa ideia. O Brasil, afinal, estava capitalizado, e a aposta na educação e na pesquisa é sempre uma boa cartada na construção de um futuro melhor para as pessoas.

Ocorre, no entanto, que esse período de bonança se apoiava em bases muito frágeis. Economicamente, era impulsionado pela alta momentânea do preço internacional das commodities. Politicamente, dependia do apoio do PMDB, o mais volúvel dos partidos brasileiros. O risco de instabilidades era, por isso, grande. Muitas coisas poderiam dar errado – e deram. O voo de galinha deu lugar a uma brutal recessão, e a sustentação política do governo no Congresso virou pó. Veio o impeachment e, na esteira dele, uma confusão institucional e social dos diabos, na qual estamos metidos até hoje.

Resultado para nós: na penúria em que o Estado se encontra desde então, o sistema federal de universidades – do qual a UFSC faz parte – virou um paquiderme pesado e custoso. Para piorar as coisas, o sistema privado – empoderado pelos aportes que o Fies proporcionara – se transformou em uma arma poderosa que devora as demandas de formação no país e, assim, pressiona e estressa ainda mais o sistema universitário público.

Falemos agora da terceira dimensão da crise: aquela que concerne à própria UFSC e aos seus graves problemas de gestão e de cultura organizacional.

Não é segredo para ninguém que a nossa instituição estava eivada de ralos e gargalos internos que a tornam cara, lenta, ineficiente. A face mais visível de nossos limites está à vista de todos. Contratos fundamentais para o bem-estar das pessoas – plano de saúde, compra e manutenção de aparelhos de ar-condicionado, compra e manutenção de bebedouros, etc. – ou não são celebrados, ou chegam com enorme atraso, quando os custos já se elevaram enormemente por força da mera ação do tempo na deterioração dos equipamentos. A Prefeitura Universitária – embora conte com dezenas de profissionais qualificados – é, no fundo, tocada por meia dúzia de abnegados que correm o campus em luta desesperada para apagar incêndios. Isso cria situações tão absurdas quanto a que experimentamos no Prédio D do CCE. O defeito de projeto que, há anos, determina a constante falta de água na unidade foi diagnosticado não por algum engenheiro ou arquiteto da Casa mas pelo nosso TI, que calha de ter talentos que excedem a sua atribuição.

Esses e muitos outros dilemas precisam ser resolvidos. Mas como fazer isso se a universidade está hoje cada vez mais enfronhada em um conservadorismo e um comodismo que fazem com que as pessoas resistam a qualquer mudança que as tire da zona de (des)conforto em que atualmente trabalham ou estudam? Mesmo ações muito simples – por exemplo, colocar os professores mais entusiasmados para dar aulas nos primeiros semestres, já que a evasão acontece maciçamente nessas etapas iniciais dos cursos – não são implementadas, já que isso significaria destronar os mais acomodados dos horários e disciplinas que estão habituados a escolher.

As últimas grandes iniciativas tomadas pela Administração Central só fizeram piorar esse quadro. O padrão-ouro nesse sentido foi a decretação indiscriminada e destrambelhada do teletrabalho, que, a par de esvaziar o campus e fazer cair enormemente a produtividade técnico-administrativa, deu um péssimo sinal ao resto da comunidade: o de que os interesses individuais e das corporações têm precedência sobre os interesses da instituição.

Também não ajuda em nada o mantra infinitamente repetido pelo Reitor de que o nó atual da UFSC se resume à falta de dinheiro. Ora, essa não é só uma tese simplesmente falsa. É, além disso, politicamente desastrosa. Explico.

Ela é falsa porque, como tento argumentar neste artigo, não é só nem principalmente o desfinanciamento que empareda a UFSC. Nosso drama também tem forte relação com gestão ruim. Se não é esse o caso, como explicar, por exemplo, a declaração do reitor da Universidade Federal de Santa Maria de que, por lá, os aportes federais serão preservados e bastam para que a instituição funcione normalmente? (https://diariosm.com.br/noticias/educacao/_o_recurso_vai_ser_preservado_afirma_reitor_da_ufsm_sobre_compromisso_do_governo_com_universidades_federais.15418196)

E a tese é politicamente desastrosa porque ela gera ainda mais acomodação e conformismo, tudo de que não precisamos em hora tão desafiadora como a que estamos atravessando. Quando o nosso líder máximo diz que tudo que nos acossa decorre da maldade do governo em não repassar recursos, está nos colocando na condição de vítimas e, portanto, convencendo-nos de que, longe de precisar mudar práticas, somos credores de uma dívida que precisa ser paga por terceiros.

A UFSC está diante de um impasse existencial: ou inova, organiza-se, desafia-se e faz valer a imensa força que uma comunidade 40 mil pessoas necessariamente representa, ou se converterá em pária. Seria uma pena que isso acontecesse com uma universidade com uma história tão relevante e tão imenso potencial.

*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC

Artigo recebido às 13h08 do dia 20 de fevereiro de 2025 e publicado às 14h08 do dia 20 de fevereiro de 2025