Saneamento em terras indígenas deve ser pensado com e para a comunidade, defende estudo da UFSC

Dissertação “Diálogos sobre Saneamento: Um caso de extensão sanitária na Reserva Indígena Tekoa Vy’a, em Major Gercino, SC” sugere uma nova práxis

Para o pesquisador Rodrigo de Pinho Franco, o saneamento, seja em regiões urbanas ou rurais, deve sempre ter em vista a promoção da saúde. Nesse sentido, ele deve ser planejado e executado com e para as pessoas, relacionando os saberes acadêmicos com os saberes tradicionais. Esses princípios estão no cerne de sua pesquisa de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGEA/UFSC). Orientada pelo professor Paulo Belli Filho, a dissertação “Diálogos sobre Saneamento: Um caso de extensão sanitária na Reserva Indígena Tekoa Vy’a, em Major Gercino, SC” sugere uma nova práxis para o saneamento em territórios indígenas.

Entre as propostas apresentadas no trabalho, estão a proteção de nascentes, o aperfeiçoamento na rede de distribuição de água, a instalação de banheiros com sistema de tratamento de efluentes e a realização de oficinas sobre gestão de resíduos sólidos. Tais práticas são resultado do intercâmbio entre a reflexão acadêmica e o envolvimento dos indígenas no diagnóstico dos problemas e nas tomadas de decisão. “O respeito ao tempo Guarani e às formas de trabalho coletivo, com rodas de conversa e mutirões, permitiram ao projeto identificar as demandas e se reinventar ao longo do caminho”, afirma o pesquisador.

A pesquisa-ação de Rodrigo foi desenvolvida no âmbito do projeto de extensão Saneamento Ambiental em Aldeias Indígenas de Santa Catarina, vinculado ao Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental (ENS-UFSC) e ao Núcleo de Educação Ambiental da UFSC (NEAmb/UFSC) – que faz a gestão e planejamento das ações do projeto. As atividades iniciaram em março de 2022, com o objetivo de “promover melhorias no saneamento ambiental em aldeias indígenas de Santa Catarina, por meio de diagnósticos e tecnologias sociais que contemplem as questões culturais e promovam a governança local”. O trabalho também teve o apoio do Laboratório de Efluentes Líquidos e Gasosos (LABEFLU/UFSC) e do Núcleo de Tecnologias Sociais para a Gestão da Água (TSGA/UFSC). 

A Reserva Indígena Mbya Guarani Tekoa Vy’a, localizada em Major Gercino (SC), a cerca de 100 quilômetros de Florianópolis (SC), foi o território escolhido por Rodrigo para realizar seu estudo. Entre março de 2022 e julho de 2023, o autor visitou a reserva 37 vezes, o que lhe possibilitou ter uma compreensão cada vez mais apurada dos modos de viver, trabalhar e se relacionar com a terra desse povo. Dessa forma, foi possível identificar como a implementação do saneamento como um direito humano fundamental poderia se inserir ali de forma efetiva e respeitosa. 

“Para que se obtenha sucesso na universalização do acesso ao saneamento em territórios indígenas, é fundamental associar-se à vida na Terra e lutar contra as injustiças socioambientais e climáticas. […] Logo, se no Brasil, em nível de políticas públicas, está em criação o Programa Nacional de Saneamento Indígena, é preciso reiterar o direito às Terras Indígenas dentro das práticas tecnocientíficas em saneamento para dar subsídio a este processo, evitando que se torne mais uma política neutralizadora”, defende o pesquisador.

O professor Paulo, orientador do trabalho, observa que muitas experiências de saneamento em territórios indígenas não foram bem sucedidas porque não respeitaram e não respeitam as dinâmicas destas comunidades. “A dissertação do Rodrigo apresenta uma experiência que pode ser um exemplo para o Sul do Brasil, podendo ser adaptada para outras comunidades. Nesse sentido, sua pesquisa foi um marco para a pós-graduação em Engenharia Ambiental, pois fortalece a importância para as formações e pesquisas direcionadas às comunidades indígenas.”

Diagnóstico

De acordo com Rodrigo, atualmente o saneamento nas aldeias indígenas Guarani na região Sul é bastante diverso. Em relação à gestão de resíduos sólidos, a coleta é feita em boa parte das aldeias. Quase todas também têm abastecimento de água, mas o estado de conservação não é satisfatório, precisando de manutenção. Quanto ao esgotamento sanitário, muitas instalações não funcionam bem ou são obsoletas, além de os banheiros serem insuficientes e estarem em péssimas condições. 

Chuvas intensas também podem gerar problemas nas comunidades. “Há uma enorme dificuldade, em decorrência das chuvas em Santa Catarina, que prejudicam o acesso às aldeias. Elas ficam, normalmente, em regiões elevadas, próximas aos morros e com estradas de terra. Muitas aldeias ficam inacessíveis quando chove, além de sofrerem com deslizamentos”, contou. 

As ações do projeto resultaram em diversas melhorias, envolvendo a comunidade em todas as etapas, desde o diagnóstico até a implementação das soluções. Foram construídas, por exemplo, duas proteções de nascentes, que ajudam a melhorar a qualidade da água, além da correção do sistema de filtração da água. Também houve aperfeiçoamento na rede de distribuição de água e instalação de banheiros com sistema de tratamento.  

Para discutir com a comunidade a importância do tratamento adequado dos resíduos e técnicas de compostagem, foram realizadas oficinas sobre gestão de resíduos sólidos, além de mutirões de limpeza. O projeto também promoveu espaços de diálogo, para resgatar e valorizar práticas sanitárias tradicionais Guarani. 

A falta de acesso ao saneamento em territórios indígenas, destaca o pesquisador, não pode ser atribuída à falta de educação sanitária, mas sim a fatores estruturais, como a carência de investimentos e de políticas públicas adequadas. Ele também aponta para a importância de se adotar uma abordagem decolonial na implementação de projetos de saneamento em territórios indígenas, respeitando os saberes tradicionais e a autodeterminação dos povos indígenas. 

Rodrigo atualmente participa da elaboração do Programa Nacional de Saneamento Indígena (PNSI), iniciativa que pode ajudar a garantir o acesso ao saneamento nos territórios dos povos originários. 

Nova práxis

Mesmo que a realidade seja diferente em cada etnia e em cada território, o autor sistematiza uma nova práxis para o saneamento em territórios indígenas, recomendada para diferentes níveis de atuação e organização sociopolítica. “Seja para a construção de estratégias para que políticas públicas cheguem aos territórios, ou para as compensações ambientais de agentes privados, esta proposta está orientada para auxiliar o empoderamento e protagonizar os indígenas nas tomadas de decisão sobre seu saneamento”, escreveu. 

De acordo com o autor, para além de buscar direcionar as políticas públicas com mais eficiência, as sugestões buscam uma postura emancipatória e decolonial da tecnociência aplicada ao saneamento indígena, entendendo essa nova práxis como uma ação intersubjetiva que deve buscar favorecer simultaneamente a autonomia individual e coletiva. 

A práxis segue seis etapas: consolidação da equipe de trabalho e mobilização do grupo intersetorial de apoio; estabelecimento de vínculos e relações de cooperação através do convívio; práticas de educação sanitária e ambiental e o diagnóstico participativo; aplicação de dispositivos no saneamento indígena; avaliação dos índices, indicadores e percepções; e apresentação dos resultados e celebração.

Na conclusão de seu trabalho, o autor reforça que a falta de saneamento é uma questão histórica. “Diante da atual condição da saúde indígena no mundo e especialmente no Brasil, estudos que envolvam o saneamento devem, sobretudo, compreender que a falta de saneamento é uma ferida colonial que ainda sangra a seiva da vida indígena e as veias da América Latina. É preciso assumir a postura crítica e emancipatória da educação ambiental e sanitária, buscando agir de modo a contribuir com a consolidação da participação social enquanto política pública. Na tecnociência, deve se aproximar da inter, trans e multidisciplinaridade, tendo a pesquisa-ação como método. Valorizando a ecologia de saberes, ao dialogar com as cosmovisões indígenas, que ainda re-existem produzindo envolvimento – e não desenvolvimento. Envolvidos a segurar os céus para todos.”

Fonte: Notícias UFSC