É sobre isto: a eficácia no cumprimento da lei de cotas para docentes na UFSC

*Por Alex Degan e Tiago Kramer de Oliveira

O Conselho Universitário ainda este ano irá pautar minutas de Resolução que tem como objetivo corrigir um grave problema na aplicação da política de cotas em concursos públicos para docentes na UFSC. A política não cumpriu o objetivo de aumentar a quantidade de professores negros em nossa instituição e o atual patamar está bem abaixo dos modestos 20% almejados pela lei. Antes tarde do que nunca, a discussão sobre alternativas mais eficazes chegará ao conselho superior. As minutas de resolução que orientarão os debates no CUn foram produzidas por uma comissão designada exclusivamente para este fim.

O tema demanda diálogo desarmado, sério e republicano. A universidade é local de pluralidade de ideias, de visões de mundo, de ciência e de projetos políticos e ideológicos. É normal, e mesmo salutar, que exista discussão sobre o modelo de ações afirmativas mais adequado à sociedade brasileira. Assim como não é apenas saudável, mas urgente, que se questione a pertinência, os termos e os pressupostos das ideias sobre racialização e racismo que embasam a retórica política, os estudos acadêmicos e as políticas públicas no Brasil e no mundo. A universidade não pode se tornar um espaço tóxico para o debate público, uma vez que a imposição de verdades inquestionáveis e o cancelamento da crítica é um procedimento autoritário e não podemos achar que existem procedimentos autoritários válidos em razão da virtude da causa.

O que não é pertinente é que a discussão de uma resolução no Conselho Universitário, para o cumprimento de uma lei, se torne um cavalo de batalha ideológico, político ou acadêmico. O foco do Conselho e dos conselheiros deve ser a forma mais eficaz de aplicar uma política pública instituída por lei.

Nos últimos dez anos, grande parte das vagas destinadas às cotas foram ocupadas por candidatos inscritos para ampla concorrência e essas vagas não retornaram para os concursos seguintes e, concurso após concurso, nossa dívida com o cumprimento da política ficou maior. Esta situação é vergonhosa e exige a nossa reflexão e ação.

A razão para não termos alcançado o mínimo de docentes ingressantes por cotas não pode ser definida por meio de inferências abstratas e acusações sem provas. Tal procedimento apenas intoxica o debate, promovendo cizânia e rebuliço. A comunidade acadêmica não pode cair na armadilha de abrir mão de uma discussão séria e partir para enfrentamentos ofensivos desnecessários motivados por interesses que destoam da nobreza do tema em pauta.

É preciso considerar que uma política de ação afirmativa efetiva não se faz apenas com percentuais definidos em resoluções. Devemos pensar nos detalhes da sua efetivação, em cada etapa e no fluxo dos processos, para que a política possa ser eficiente e regida pelas melhores práticas.

Um exemplo de política afirmativa mal programada foi a de bolsas de iniciação científica para o ciclo de 2023/2024. A Propesq destinou um número de vagas de bolsas de IC para ações afirmativas e professores sensibilizados com a política optaram por destinar as vagas para tal ação. O que ocorreu foi que as vagas de ampla concorrência e as vagas de ações afirmativas ficaram totalmente separadas e a quantidade de projetos por vaga em ações afirmativas, não se sabe em quantos casos, foi maior do que a relação projeto/vaga na ampla concorrência. Nestas situações, professores com nota mais baixa na proposta ficaram com duas bolsas de IC de ampla concorrência e professores com nota mais alta nas propostas ficaram sem nenhuma bolsa para ações afirmativas. Mesmo com a demonstração do ocorrido, tudo ficou por isso mesmo. Ação afirmativa às avessas.

Portanto, é necessário que o Conselho Universitário avalie com bastante cuidado como o concurso será organizado para que ele tenha efetividade e legalidade. Umas das propostas de minuta é a atribuição de 100% das vagas dos próximos concursos para a política de cotas, até que se atinja o mínimo legal. Outra proposta é atribuir 30% das vagas a partir de critérios que merecem ser avaliados com mais cuidado. A apresentação de duas propostas não facilita o debate, tornando-o mais confuso. Apesar de a comissão responsável argumentar que caberá ao CUn decidir se quer atingir o mínimo legal em mais ou menos tempo, a apresentação de duas minutas dificulta a realização de destaques e adaptações.

A proposta de 100% causa uma série de questionamentos e incertezas que poderiam ser evitadas se ela fosse seguida por dispositivos que pudessem garantir que, após a conclusão de uma primeira etapa do concurso – realizada apenas por candidatos das ações afirmativas e avaliada a quantidade de ingressantes cotistas – as vagas pudessem ser reabertas para cotas e ampla concorrência, ou apenas para ampla concorrência. Ainda que tenhamos no Brasil muitos professores negros com doutorado e experiência profissional (em algumas áreas mais do que em outras), é preciso considerar que a execução de políticas bem-sucedidas de ingresso de graduandos e pós-graduandos pretos e pardos em universidades ainda está por surtir resultados mais consistentes para a formação de docentes. Trata-se de um processo que demanda de dez a vinte anos de estudos, em graduação, mestrado e doutorado. É possível, portanto, afirmar que, mantidas as atuais políticas, a quantidade de candidatos negros em concursos nos próximos anos será consideravelmente maior que a atual.

Em termos minimamente pragmáticos, o que parece mais adequado é que as ações afirmativas para ingresso na condição de docente em uma universidade pública sirvam para que candidatos qualificados para a vaga demandada pela universidade, e que fazem parte do grupo atendido por essas ações, possam concorrer em condições mais justas com candidatos também qualificados que não fazem parte dos grupos atendidos pela política. Se o sorteio de vagas não cumpre esse papel, as vagas exclusivas, sem alternativas no caso de não preenchimento das vagas, talvez não seja o melhor caminho.

Diminuir a exigência de titulação, por exemplo, de doutorado para mestrado, é algo controverso. As vagas demandadas pelos Departamentos atendem a perfis específicos, de alta qualificação, e para atender estudantes de graduação e pós-graduação. No caso de um ingressante com mestrado, os obstáculos são muitos. Primeiro, para o próprio docente, pois a remuneração é pouco atraente. Segundo, para a instituição, que não poderá contar com o professor em diversas funções e, na melhor das hipóteses, terá que arcar com o afastamento para a realização do doutorado por quatro anos, deixando de ter um docente que possa atender demandas que não sejam de ensino, pois substitutos não realizam nem pesquisa, nem extensão e tampouco gestão. Terceiro, para os estudantes de graduação, que em vez de terem aulas com professor efetivo da área específica (no período de afastamento para o doutorado) terão que ser atendidos por professores substitutos, que na UFSC sequer podem orientar um TCC. Quarto, para os estudantes de pós-graduação, que não terão aulas e orientação com o docente recém-ingresso.

Parece, portanto, que em vez de votar por uma ou outra proposta na íntegra, ou decidir que tudo vai ficar como está, o CUn poderia definir a votação entre as seguintes escolhas:

a) vagas exclusivas para ação afirmativa em uma primeira fase do concurso com a reabertura de inscrições, com cotas e livre concorrência, para as vagas não preenchidas;

b) vagas para ações afirmativas e de ampla concorrência no mesmo edital, sem exclusividade;

c) ação afirmativa como a única forma de ingresso para o percentual de vagas definida para o concurso e, em caso de não preenchimento de vagas, reabertura para ações afirmativas com mudanças nas exigências de formação;

E, após esta primeira votação, definir o percentual de vagas para a ação afirmativa, que pode inclusive ser um número intermediário entre os propostos. De qualquer modo, a comunidade universitária não precisa ver com maus olhos a proposta de 100% de destinação de vagas na abertura do concurso, pois ela sequer devolve as vagas que não foram preenchidas e não retornaram às políticas de ação afirmativa.

A abertura nesses moldes, pode, inclusive, incentivar que tenhamos mais candidaturas, mais pessoas que decidam enfrentar o alto investimento de tempo e de dinheiro para realizar um difícil concurso para docente na UFSC.

O problema está na exclusividade das vagas para as ações afirmativas e não no percentual destinado à política. Portanto, temos entre os três caminhos elencados para a implementação dos 100%, dois que facilitam sobremaneira tanto a implementação da política quanto o bom atendimento de demandas da universidade.

Optar por 100%, mas abrir as vagas não preenchidas para ampla concorrência parece ser um caminho viável. Por outro lado, definir um percentual de 30% e priorizar as cotas nas vagas em que houver mais negros inscritos não parece algo justo com candidatos negros altamente qualificados em áreas em que o percentual de negros qualificados é menor.

Qualquer que seja a decisão, é preciso conciliar a necessidade e a vontade de receber mais professores em ações afirmativas com as demandas da instituição por pessoas altamente qualificadas em suas áreas de atuação e os limites legais e administrativos para a execução das ações. Deixar a universidade com vagas não preenchidas e sobrecarregar a administração com a abertura e reabertura de editais e no gerenciamento de critérios confusos, pode colocar em xeque a eficiência da política. Manter vagas ociosas por muito tempo prejudica as demandas da UFSC junto ao MEC por novas vagas.

Por fim, o objetivo deste texto é convidar a comunidade para um diálogo de fato, ou seja, as ideias e reflexões aqui colocadas não são definitivas, acabadas, formadas. Elas estão a serviço da comunidade para serem discutidas, criticadas, superadas, enriquecidas. Em um momento que a radicalização de posições, as bolhas ideológicas e a certeza de estar do lado certo da história validam comportamentos autoritários, inviabilizam o diálogo e intoxicam os debates, é hora de a universidade reagir e se colocar como espaço de resistência das práticas democráticas e dos procedimentos republicanos.

*Alex Degan e Tiago Kramer de Oliveira são docentes do Departamento de História do CFH/UFSC.

Artigo recebido às 11h11 do dia 18 de novembro de 2024 e publicado às 12h22 do dia 18 de novembro de 2024