*Por Lindberg Nascimento Júnior
Embora as instituições de ensino superior públicas sejam, por definição, espaços de inclusão e promoção da cidadania, elas também refletem as desigualdades históricas do Brasil. O racismo institucional1, invisível e muitas vezes não reconhecido nesses lugares, continua a se manifestar nas práticas administrativas, na baixa representatividade de negros e indígenas no quadro de servidores e estudantes, e na insuficiência de políticas eficazes para promover inclusão, diversidade e equidade racial.
A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) é um exemplo de enfrentamento desses desafios. Desde 2007, com a regulamentação do Programa de Ações Afirmativas, a UFSC tem somado esforços para avançar na democratização do acesso e permanência de estudantes de baixa renda, negros e indígenas ao ensino superior. Essa iniciativa, junto com outras políticas afirmativas internas, revela uma tradição sólida que coloca a UFSC na vanguarda da luta antirracista no Brasil.
Também não podemos ignorar que essa postura institucional é política e não está desconectada dos debates sobre a precarização das universidades públicas, que por exemplo, impactam diretamente a implementação de políticas de permanência estudantil, na diminuição dos recursos para pesquisas, bolsas e estágios, e na sobrecarga do trabalho que atinge os servidores. Na prática, além dessas questões serem um dos maiores desafios para a UFSC em particular, mas também para todas as universidades brasileiras, o impacto é sempre mais radical sobre a classe trabalhadora, e quem mais perde, sem dúvida, são as populações negras e indígenas.
É verdade que muitos desafios persistem e precisam ser superados, mas é importante reconhecer também que a UFSC não está inerte e apática diante deles. Pelo contrário, as ações promovidas pelos centros, setores, departamentos, núcleos, grupos, laboratórios, coletivos, servidores e estudantes — por meio de reuniões, eventos, seminários, campanhas e colóquios sobre o debate racial — demonstram que nossa comunidade está atenta e engajada no combate ao racismo, bem como, de outras formas de violência e privação de direitos sociais.
Por isso, em 2022, a UFSC reafirmou seu compromisso na luta pela democratização do ensino superior ao aprovar a Resolução Normativa nº 175/2022/CUn, que estabelece diretrizes fundamentais para o enfrentamento ao racismo institucional. A resolução orientou a criação de um grupo de trabalho para monitoramento e avaliação dessa política, do qual tive o prazer de participar, e que elaborou um diagnóstico detalhado da situação e perfil racial de estudantes e servidores.
O diagnóstico revelou um quadro preocupante, sobretudo, para o universo dos docentes. Em linhas gerais, apesar das políticas de reserva de vagas em concursos píublicos no ambito ferderal, como a Lei nº 12.990/2014, que estabelece 20% de vagas reservadas para candidatos negros, a presença de docentes autodeclarados negros na UFSC ainda é extremamente baixa, isto é, 9,1% do universo de 2594 docentes na instituição. E ainda que, sem mudanças drásticas, a universidade só atingirá a meta de 20% de docentes negros no ano 2173 — um dado alarmante que reflete a urgência de ações mais incisivas no enfretamento do racismo institucional (Chaves et al., 2024; APUFSC, 2024).
De fato, a resolução e o diagnóstico fazem parte de uma série de ações históricas desenvolvidas pela UFSC e que hoje se tornam mais relevantes para avançar na transformação desse cenário de profunda desigualdade. Em outras palavras, elas demonstram que a universidade não apenas reconhece o racismo institucional, mas se compromete a combatê-lo ativamente em diversas esferas do seu cotidiano acadêmico e administrativo. Este reconhecimento, sem dúvida, é louvável e coloca a UFSC como um exemplo de liderança no enfrentamento ao racismo no Brasil.
No entanto, a luta contra o racismo institucional vai além de resoluções e diagnósticos. Para que a equidade racial se torne uma realidade2, e não apenas um objetivo distante, nossa comunidade precisa reafirmar sua tradição de transformação profunda. O caráter vanguardista da luta antirracista na UFSC não deve ser um título vazio, mas sim refletir o comprometimento de todos os agentes que fazem parte da universidade.
Sim! Estamos em um momento de crise, e como tal, ele exige a participação ativa de toda a comunidade acadêmica. O reconhecimento do problema está posto, mas será o engajamento coletivo que garantirá sua superação e resolução, de modo que a UFSC continue sendo uma instituição de vanguarda seja no cumprimento de suas obrigações legais (uma vez que estamos muito distantes da meta proposta pela já citada Lei Federal), ou demonstrando a vontade política de enfrentar as desigualdades e construir um ambiente onde a equidade racial é parte integrante de seu desenvolvimento institucional.
A crise, por isso, é uma oportunidade de reafirmarmos nossa tradição e o mesmo espírito de compromisso que nos guiou em 2007 (ano política de cotas para estudantes) e 2022 (ano da política de combate ao racismo institucional). Nossa vontade política põe em evidência que estamos prontos para novamente enfrentar e superar os desafios do racismo institucional, e que a UFSC não pode esperar 150 anos para alcançar a equidade racial.
A universidade que queremos para o futuro depende do compromisso que assumimos hoje, pois sua transformação começa agora. Com isso, poderemos, em breve, afirmar com convicção que a UFSC se manteve na vanguarda das universidades brasileiras, tornando-se uma instituição ainda melhor. Isso porque avançou significativamente no combate ao racismo institucional e na democratização do ensino superior, ao assumir o compromisso de, em um curto prazo e com ritmo acelerado, alcançar a meta de 20% de equidade racial na instituição.
- De acordo com Carmichael e Hamilton (1967, p. 4, tradução nossa) racismo institucional refere-se a falha coletiva de uma instituição em promover a equidade racial. Em outras palavras, trata-se do fracasso de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional em razão da cor, cultura ou origem étnica das pessoas. ↩︎
- Em acordo com a Lei nº 12.990/2014, a equidade racial pode ser alcançada a partir da proporcionalidade de 20% de servidores negros no quadro total de servidores na instituição. ↩︎
Referências
CARMICHAEL, Stokely; HAMILTON, Charles V. Black power: The politics of liberation in America. New York: Vintage Books, 1967.
CHAVES, Leslie Sedrez; SCHUCMAN, Lia Vainer; NASCIMENTO JÚNIOR, Lindberg; SOUZA, Marco Antonio de Azevedo Duarte. Relatório de monitoramento e avaliação da política de enfrentamento ao racismo: Diagnóstico I – Perfil da comunidade, indicadores de racismo institucional e cenários de combate. Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2024. Disponível em: https://relacoesetnicoraciaiseequidade.paginas.ufsc.br/files/2024/07/Diagnostico_Racismo_Institucional_UFSC.pdf Acesso em: 21 out. 2024.
APUFSC. Sindicato dos Professores das Universidades Federais de Santa Catarina. Levantamento mostra que apenas 9% dos professores da UFSC se autodeclaram negros. Universidade deve demorar 150 anos pra atingir mínimo de 20% de servidores negros, mostra relatório. Disponível em: https://www.apufsc.org.br/2024/10/11/levantamento-mostra-que-apenas-9-dos-professores-da-ufsc-se-autodeclaram-negros/. Acesso: 12. nov. 2024.
*Lindberg Nascimento Júnior é professor do Departamento de Geociências (CFH/UFSC)
Artigo recebido às 12h10 do dia 12 de novembro de 2024 e publicado às 16h15 do dia 12 de novembro de 2024