Internacionalização seletiva?

*Por Hans Michael van Bellen

Foi no final de outubro, através de uma mensagem recebida por e-mail, que tomei conhecimento, pela primeira vez, de que uma minuta de resolução normativa sobre a política de internacionalização da UFSC (https://docs.google.com/document/d/1utg9l5l-AxF3kXwtpcHiuVcsiYl5LW4Z/edit#heading=h.mo0ezymdlfc6) estava entrando em consulta pública. Apesar da surpresa, imaginei que pudesse haver uma discussão em andamento na universidade sobre o assunto e que, devido ao conjunto de atividades em que estou envolvido, eu não tivesse tomado conhecimento. Conversando com colegas, percebi que não era o único alheio a esse debate e começaram a surgir questionamentos em nossas conversas: quem elaborou a minuta, em quanto tempo e de que forma? Que discussões ocorreram antes dela ser submetida à consulta pública? As câmaras (ensino, pesquisa, extensão) foram ouvidas? Os centros participaram ou contribuíram para a proposta? O site da Sínter informa que “A minuta foi redigida pela SINTER e contou com a contribuição das pró-reitorias de graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão, além de diversas unidades que compõem a administração central e de especialistas em internacionalização e em política linguística da UFSC.”. Ainda não consegui entender bem como se deu esse processo, mas, como o prazo para o término da consulta se aproximava (08/11/2024), resolvi analisar a minuta com mais atenção. Li todo o texto e fiquei com mais dúvidas sobre como poderia contribuir para aquele documento, uma vez que a contribuição deveria ser pontual, modificando o teor do documento parágrafo por parágrafo ou fazendo uma avaliação geral ao final do formulário. Tentei, mas não consegui, decidi então apresentar aqui uma análise mais crítica da minuta da resolução, pois ela revela potenciais aspectos negativos que podem impactar princípios fundamentais do funcionamento de uma universidade.

Primeiramente, a ênfase em promover uma agenda fortemente alinhada a conceitos como justiça epistêmica, descolonização do saber e a valorização de parcerias exclusivamente com o Sul Global pode gerar a percepção de que a universidade está adotando um viés ideológico que limita a pluralidade de perspectivas e restringe o debate livre de ideias. Esse foco pode obscurecer a transparência e a abertura ao intercâmbio acadêmico mais diverso e abrangente, indo contra a natureza universal e inclusiva que se espera de uma instituição de ensino superior.

Outro ponto de crítica é que a implementação de políticas com uma forte orientação ideológica pode levar à homogeneização do pensamento e à marginalização de visões alternativas, comprometendo o debate livre e o confronto saudável de ideias. A universidade, como um espaço dedicado ao conhecimento e à pesquisa, deve fomentar um ambiente onde todas as vozes, independentemente de alinhamentos políticos ou filosóficos, possam ser ouvidas e discutidas abertamente. Priorizar abordagens que promovam certas ideologias em detrimento de outras pode criar barreiras para a livre troca de conhecimentos e enfraquecer a credibilidade institucional perante a comunidade acadêmica global e a sociedade em geral.

Além disso, há o risco de que essa política prejudique a transparência e a imparcialidade nas decisões e ações institucionais, especialmente se houver a percepção de que determinados enfoques acadêmicos são preferidos por questões políticas e não por mérito científico ou relevância acadêmica. Isso pode afastar potenciais parceiros internacionais e pesquisadores que buscam um ambiente neutro e desvinculado de agendas ideológicas específicas.

Portanto, por mais que a busca por justiça social e equidade seja um objetivo louvável, é essencial que a política de internacionalização de uma universidade preserve a ideia de distanciamento analítico em sua atuação, assegurando que a transparência e o debate livre sejam mantidos como valores centrais de sua missão institucional.

Algumas definições utilizadas na resolução também se mostram um pouco limitadoras em se tratando de políticas institucionais. Por exemplo, a ideia de “Sul Global” e a “luta contra o pensamento hegemônico” têm ganhado espaço em debates acadêmicos, especialmente em questões de descolonização do conhecimento e justiça epistêmica. No entanto, essas noções também atraem críticas significativas, particularmente no contexto do desenvolvimento científico e do pensamento em um mundo globalizado. Algumas das principais críticas são:

Polarização e Simplificação Excessiva: Dividir o mundo em “Norte Global” e “Sul Global” pode ser uma simplificação excessiva que ignora as complexidades e interdependências entre as nações. Essa abordagem pode reforçar divisões em vez de promover colaborações globais. No contexto científico, isso pode levar a uma visão dicotômica que limita o intercâmbio de ideias e tecnologias entre regiões, essencial para o avanço coletivo do conhecimento.

Risco de Isolacionismo: A ênfase na “luta contra o pensamento hegemônico” pode resultar em uma tendência ao isolacionismo, em que certos países ou grupos acadêmicos optam por ignorar contribuições significativas de outros por serem vistas como “hegemônicas”. Isso pode limitar o acesso a conhecimentos e metodologias amplamente aceitos que poderiam beneficiar a pesquisa e a inovação.

Redução da Colaboração Internacional: A retórica que critica a hegemonia pode minar a colaboração internacional ao sugerir que parcerias com instituições e pesquisadores de países do “Norte Global” são inerentemente problemáticas. Isso pode prejudicar iniciativas que requerem cooperação ampla para abordar problemas globais, como mudanças climáticas, pandemias e crises de segurança alimentar.

Implicações na Neutralidade Científica: O desenvolvimento da ciência pressupõe, idealmente, um compromisso com a objetividade e a busca pela verdade, independentemente de fronteiras culturais ou geográficas. O foco em combater o pensamento hegemônico pode desviar a atenção dessa busca neutra, introduzindo viés e politização em áreas onde a imparcialidade é fundamental. Isso levanta questões sobre a possibilidade de comprometer a integridade científica em nome de objetivos ideológicos.

Ambiguidade Conceitual: As definições de “Sul Global” e “hegemonia” podem ser vagas e subjetivas, o que dificulta a aplicação consistente dessas ideias em políticas e práticas acadêmicas. Essa ambiguidade pode levar a interpretações variadas que acabam por fragmentar movimentos de cooperação e debate científico, gerando confusão e até divisões internas nas comunidades acadêmicas.

Desafios ao Mérito e à Excelência Acadêmica: A adoção de políticas que favorecem exclusivamente uma agenda “anti-hegemônica” pode, em alguns casos, desvalorizar critérios de mérito e excelência em prol de representatividade ideológica. Isso pode resultar em uma redução da qualidade e competitividade da pesquisa, à medida que a ciência passa a ser moldada mais por valores políticos do que por resultados empíricos.

Desconstrução sem Construção: Críticas ao pensamento hegemônico frequentemente focam na desconstrução de estruturas de conhecimento sem oferecer alternativas claras e eficazes para a construção de novos paradigmas. Isso pode criar um ambiente de crítica constante que impede o progresso e a inovação científica, em vez de promover um sistema robusto de co-criação de conhecimento.

Essas críticas não negam a validade da inclusão e da busca por vozes diversas no desenvolvimento científico, mas ressaltam a importância de equilibrar tais esforços com a manutenção da colaboração global, da objetividade científica e da integração de perspectivas que possam enriquecer, em vez de limitar, o avanço do pensamento e da ciência em um mundo globalizado.

Considero também importante fazer uma crítica a respeito do uso da palavra “servidores” na resolução normativa, pois se apresentam algumas questões sobre a linguagem institucional e suas implicações. A escolha de termos na redação de políticas universitárias não é neutra e pode influenciar a percepção e a dinâmica entre as diferentes categorias da comunidade acadêmica. O uso recorrente do termo “servidores” em vez de separar claramente docentes, discentes e técnico-administrativos pode reforçar uma imagem de subserviência que não condiz com a essência colaborativa e igualitária que uma universidade deve promover. Essa terminologia pode, de forma sutil, promover a invisibilização das distintas funções e papéis desempenhados por cada grupo. Docentes, discentes e técnico-administrativos têm atribuições e contribuições distintas para a missão da universidade, e agrupar todos sob o rótulo de “servidores” pode apagar as diferenças significativas em suas contribuições, necessidades e perspectivas. Essa homogeneização linguística desvaloriza a especificidade das categorias e cria uma percepção de que a universidade prioriza uma estrutura hierárquica rígida, onde todos se enquadram como meros cumpridores de ordens, em vez de participantes ativos e pensantes de uma comunidade acadêmica diversificada.

Além disso, tal escolha de palavras pode minar o sentimento de pertencimento e autonomia entre as categorias, impactando negativamente a moral e o engajamento. O ambiente universitário, que deve ser um espaço de liberdade intelectual, respeito mútuo e colaboração, pode acabar transmitindo, por meio dessa linguagem, uma imagem de controle e submissão. Promover uma terminologia que reconheça e valorize explicitamente as diferenças entre docentes, discentes e técnico-administrativos é importante para a transparência, o respeito às funções e o fortalecimento de um ambiente inclusivo e democrático na universidade.

Por fim, por se tratar de uma política bastante importante para uma instituição de ensino superior (internacionalização) com impactos nas mais diferentes áreas da UFSC, acredito que seja essencial, da mesma forma como foram discutidas as políticas da pós-graduação no período pós-pandemia, que se abra uma discussão mais abrangente em termos de participação e tempo para construir uma política de internacionalização que reflita os anseios da comunidade universitária.

*Hans Michael van Bellen é professor do Departamento de Engenharia do Conhecimento (CTC/UFSC)

Artigo recebido às 21h22 do dia 5 de novembro de 2024 e publicado às 13h21 do dia 6 de novembro de 2024