Por uma nova cultura organizacional para a UFSC

*Por Fábio Lopes

A direção de centro é um posto de observação privilegiado da vida institucional na UFSC. O cargo permite vislumbrar simultaneamente quase tudo o que acontece nos departamentos de ensino, coordenações de curso e programas de pós-graduação. Estar na cadeira em que atualmente me sento é como ocupar a torre central de vigilância do Panopticon, o engenhoso dispositivo arquitetônico inventado por Jeremy Bentham que Michel Foucault soube analisar tão bem em páginas memoráveis de Vigiar e Punir. Sou uma espécie de antropólogo da rica e variada fauna que, mercê de um velho hábito, insistimos em chamar de comunidade universitária.

Costumo dizer que, nesse ofício, só não vejo boi voar. Todos os dias, testemunho de tudo um pouco: dos mais sublimes gestos humanos à miséria moral e intelectual. E infelizmente preciso admitir que, já há algum tempo, os maus exemplos têm prevalecido sobre as ações virtuosas. Não se trata, no entanto, de atos extremos de crueldade e baixeza: nada de grandes roubos de dinheiro público ou golpes espetaculares. Temos sido modestos e medíocres até mesmo no exercício da pobreza de espírito.

Querem alguns exemplos recentes do tipo de vício com que indefinidamente deparo? Dia destes, um TAE entrou com pedido de licença-capacitação. Até aí, tudo bem. Ocorre que esse servidor está em vias de se desligar da UFSC para assumir uma função em outra instituição pública. Quando lhe perguntei que vantagens a universidade colheria se a solicitação fosse atendida, respondeu ele candidamente que nenhuma, mas que, em todo caso, era um direito seu obter o benefício. Desnecessário dizer que indeferi o pedido.

Não muito tempo depois disso, outra TAE, que já estivera em licença-capacitação por três meses e emendara esse período de afastamento com férias (isso tudo logo depois de permanecer por meses em greve), queria ser imediatamente liberada por mais um ano e meio para uma licença para tratar de assuntos particulares. De novo, vi-me forçado a indeferir a solicitação.

Ainda mais recentemente, chegou-me a demanda de uma terceira TAE. Ela requeria afastar-se para capacitação a fim de fazer os ajustes recomendados pela banca durante a sua defesa de tese de doutorado. Indeferido.

Para fecharmos esse breve (e nem de longe exaustivo) anedotário com um número par, citarei o caso de uma colega docente que, cerca de seis meses depois de permanecer por um ano em pós-doutorado no exterior, pediu licença para tratar de assuntos particulares por três anos. Submeterei a demanda ao Conselho de Unidade, mas já adianto que pretendo votar contra a concessão.

O curioso é que, em todas essas ocasiões, os pedidos chegaram com a prévia autorização das chefias imediatas dos interessados. Eu sei lá o que se passa na cabeça desses chefes. Terão eles dificuldade em chamar uma demanda disparatada pelo nome? Desejarão eles posar de bonzinhos, mesmo que, a rigor, quem financie tamanha generosidade seja o contribuinte brasileiro? Não perceberão eles que essa bondade tem ainda menos cabimento em um ambiente como o CCE, no qual diversos setores não contam atualmente com um único técnico para secretariá-los?

Formular essas perguntas, aliás, me fez lembrar de um quinto caso que, nos últimos dias, passou pela direção do centro (lá se foi minha tentativa de manter meu anedotário com número par de itens). Refiro-me a um chefe de departamento que queria a todo custo que eu arranjasse alguém para cobrir a licença médica da secretária do setor, como se eu dispusesse de um banco de TAEs em minha sala. O que me chamou a atenção foi o fato de ele não hesitou em autorizar que a moça tirasse férias tão logo a licença terminou. Quem entende o que se passa na mente de alguém que age assim? Como diria o velho professor Alfredo Bosi, o fundo das almas a Deus pertence.

Há algo de melancólico nesse inventário de nossa pequenez. Mas paradoxalmente a lista também traz uma boa notícia: a de que nem tudo o que rebaixa e destrói esta instituição é fruto de forças globais irrefreáveis como o fascismo ou o neoliberalismo; a de que nem tudo o que nos acomete pode ser posto na conta dos cortes orçamentários ou outros macroproblemas. As soluções para boa parte de nosso drama estão ao alcance de nossas mãos. Elas são tão simples quanto ter um mínimo de senso de ridículo ou aprender a dizer não. Elas são tão elementares e factíveis quanto a decisão de se dedicar ao trabalho como qualquer ser humano comum ou a de renunciar à ideia perfeitamente idiota de querer agradar todo mundo e de ser amado por quem a gente nem conhece direito. Elas são tão triviais quanto sair da bolha protegida em que se vive para dar-se conta do que se passa no mundo, no país, na universidade, na sala vizinha.

Alguém dirá que mudar padrões de comportamento e virar a chave na cabeça das pessoas – mesmo quando essas transformações são muito discretas – é tarefa difícil. De acordo. Mas convenhamos: ainda assim, isso é bem mais fácil do que, digamos, lutar contra o Capital. De resto, essas mudanças não precisam ser operações que a pessoa realize sozinha, em um processo puramente individual. Cada um de nós pode ser impulsionado no aprimoramento de suas qualidades como servidor público por uma reconfiguração na cultura organizacional que, ao menos nos seus primeiros passos, não tem nada de desafiadora.

Pensem, por exemplo, na verdadeira revolução que poderia ser desencadeada se a equipe escolhida pelo reitor não fosse esse Comando Maluco que hoje ocupa o primeiro escalão da universidade mas um grupo que reunisse mentes brilhantes, pesquisadores de ponta, intelectuais respeitados, figuras profundamente comprometidas com a história na UFSC. Acaso faltam perfis assim na instituição? Por que diabos precisamos ser representados por pessoas que não são inspiradoras e de quem, por vezes, nem mesmo somos capazes de dizer de onde saíram para ganhar gratificações de até dez mil reais e assumir responsabilidades muito acima de suas capacidades?

Outra medida incrivelmente simples mas igualmente capaz de carrear modificações estupendas na cultura organizacional da UFSC seria a implantação das secretarias integradas. Custo a acreditar que TAEs prefiram trabalhar solitariamente nas cavernas de seus setores – sem nenhum contato com outros seres humanos – a frequentar ambientes compartilhados nos quais possam trocar experiências, dividir tarefas, jogar conversa fora e, last but not least, programar-se para desfrutar de licenças de capacitação, afastamentos para formação e mesmo férias sem colapsar as rotinas pelas quais respondem.

Estou absolutamente convencido de que essa integração seria muito mais motivadora e compensadora do que a atual maneira de organizar o trabalho, em cujos termos os TAEs muitas vezes trocam a sua higidez mental e a ampliação de seus horizontes profissionais pela pechincha (que acaba saindo caríssima para a instituição e para eles mesmos) de fazer seus próprios horários e desempenhar suas obrigações no ritmo que lhes convêm.

É claro que, como em qualquer corporação, há na UFSC os chamados feijões perdidos: gente irremediavelmente desmotivada, pouco afeita ao batente e já definitivamente afastada da ideia de que o seu desenvolvimento como seres humanos depende do modo como trabalham. Mas ao mesmo tempo há também muitos colegas técnicos-administrativos extremamente dedicados, além de outros tantos que só estão com os faróis baixos porque nada melhor lhes é oferecido ou porque temem sair da sua maneira própria de ser infeliz para se arriscar em novas formas de exercer suas atribuições.

No caso dos TAEs, é muito flagrante o quanto estes são subestimados pelos gestores. Na sua visão estreita, provinciana e jeca, a Reitoria professa a crença de que o único jeito de mantê-los sob controle é concedendo-lhes algumas poucas benesses de caráter demagógico e corporativista, mesmo que, a médio prazo, isso não apenas corresponda a um desastre para a produtividade e a eficiência da instituição (e uma instituição cada vez mais fraca obviamente significará TAEs cada vez mais vulneráveis) como acabe por estreitar dramaticamente as possibilidades profissionais dos TAEs, com consequências crescentes para sua saúde mental e física.

No fundo, a suposição é de que os TAEs são imbecis e, como tais, incapazes de compreender a necessidade de estabelecer um pacto que fortaleça a instituição e crie as condições para que as pessoas voltem a ver na UFSC um espaço interessante de socialização e de realização profissional.

A uns falta vergonha na cara mesmo – e quanto a isso, não há o que fazer. Mas a muitos – e quero crer que estejamos falando da maioria – o que falta mesmo é uma cultura organizacional que aposte na inteligência das pessoas, na força do trabalho coletivo e em lideranças que não sejam constituídas pela conveniência política mas pelo apreço que têm pelos valores universitários.

*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC