*Por Sergio Torres de Freitas
Nesta segunda, dia 7, a UFSC amanhece menor. Morreu o seu ex-reitor Lúcio Botelho. Para além da grande figura humana, de qual falarei mais adiante, há que se destacar sua trajetória dentro desta universidade, que tanto amou e que ajudou a engrandecer.
Ingressou nela como um estudante pobre no curso de Medicina, numa época em que estudantes pobres ainda conseguiam cursar Medicina sem o advento das cotas. Formado em 1975, desde sempre compromissado com a saúde da população que nuca pode pagar para ter acesso à saúde, cursou especialização e ingressou como professor no departamento de Saúde Pública em 1979, de onde nunca mais saiu. Foram 45 anos ininterruptos de dedicação a duas de suas grandes paixões: a saúde pública e a universidade pública.
E foram essas paixões que o levaram a se tornar mestre e doutor em saúde coletiva, cujas titulações foram tardias em grande parte por sua dedicação à UFSC: foi chefe de departamento, diretor de centro do CCS – cargo que ocupava quando aqui cheguei como docente há 31 anos, vice-reitor em dois mandatos e reitor entre 2004 e 2008. Ao contrário de outros, terminado seu último mandato, voltou à sala de aula, ao ensino de graduação.
Como ele mesmo dizia, “não criei institutos, fundações ou assumi cargos em outras estruturas públicas ou privadas, eu gosto de ensinar e gosto da UFSC”.
Na medicina, foi homenageado por diversas turmas de formandos, e orientou dezenas de TCCs; posteriormente, credenciou-se a dois programas de pós-graduação, onde seguiu dando aulas e orientando até os dias de hoje: na quarta-feira, dia 2 de outubro, quando passou mal e precisou ser internado, tinha uma defesa de mestrado de uma orientando marcada para iniciar às nove da manhã.
Ainda teve tempo, nesse período pós-Reitoria, de assumir, em 2017, um projeto para formação a distância em auriculoterapia para o SUS, em parceria com o Ministério da Saúde. Neste período, formou mais de 15 mil auriculoterapeutas, todos profissionais de nível superior e todos servidores do SUS. A qualidade e a efetividade dessa formação foram recompensadas com mais trabalho: logo após a pandemia, a parceria foi ampliada para formação também em acupuntura, que já chegou a centenas de formados.
Na sua gestão, podemos destacar algumas ações e até mesmo não ações que caracterizavam seu espírito democrático e humanista: foi responsável pela interiorização da UFSC, onde implantou dois projetos: o ensino a distância para formação de professores da rede pública em Física, Química e Matemática, historicamente deficitários no estado de Santa Catarina, com 3 sedes e 17 polos espalhados pelo estado e que continuam em funcionamento; e a criação de três campi no interior do estado, em Araranguá, Curitibanos e Joinville. Na sua concepção, seriam estruturados a partir dos arranjos produtivos e culturais locais, feliz ideia que não aconteceu.
Foi também responsável por uma mudança na política de internacionalização da universidade, preconizando a sua horizontalidade nas relações: com ela, o número de alunos estrangeiros recebidos pela UFSC cresceu, em especial os do programa PEC-G, e o intercâmbio de alunos nossos para o exterior aumentou enormemente, em especial para os de mestrado e doutorado, a ponto da UFSC ser uma das três representantes no Brasil do programa Erasmus Mundus, da comunidade europeia.
Se orgulhava muito de coisas mais simples, marca indelével de sua personalidade: democratizou as cerimônias de formaturas, ao trazê-las para dentro da UFSC e permitindo aos estudantes de menor poder aquisitivo fazerem sua colação de grau junto com os demais; recebia alunos quando das invasões de gabinete pelos 12 anos em que esteve na Reitoria, numa parceria afinada com Rodolfo Pinto da Luz enquanto foi seu vice-reitor e depois, na sua própria gestão. Num episódio de invasão, aliás, deixou uma mostra importante de sua humanidade acima das coisas materiais: mantidos os conselheiros da universidade em cárcere privado no auditório da Reitoria por mais de 8 horas, chamou a Polícia Federal; mas não autorizou a entrada de choque da PM, requisitada pelo delegado para liberação à força dos professores retidos. Por mais enfurecido e com a legitimidade a seu lado, sabia das consequências futuras que seu ato acarretaria para os estudantes, mas principalmente para a instituição.
Ele era assim. Tinha muitos defeitos, como a maioria de nós também tem, mas até seus adversários são capazes de enumerar duas os três virtudes a mais, que no somatório o tornaram uma das pessoas mais abertas, populares e democráticas que passaram pela universidade.
No seu velório, uma bandeira da UFSC, uma do Avaí, uma camisa do time de várzea de sua família, o Ajax, e uma foto do time de vôlei dos professores da UFSC. Apaixonado também por esportes, jogou em diversos times de futebol de salão do estado, na seleção catarinense e brasileira. Orgulho disso? Muito, mas muito menos que o orgulho e o amor pelos seus filhos e netos.
Por tudo isso, a UFSC já amanheceria menor nesta segunda-feira. Mas essa instituição conseguiu ficar menor ainda: pela primeira vez em sua história, um ex-reitor morre e a UFSC não decretou luto oficial, não ofereceu à família a estrutura da universidade para – se quisesse – organizar as exéquias em local público e aberto à visitação pelas milhares de pessoas que o conheceram e gostariam de se despedir dele pessoalmente.
Não veremos bandeira a meio mastro, não veremos uma tarja negra em qualquer página da UFSC a nos lembrar que uma das suas grandes lideranças nos deixou, milhares de alunos e centenas de servidores e professores mais jovens, que não o conheceram, perderão a oportunidade de tomar consciência do que é a perda de um reitor para uma universidade e de como uma instituição cresce e se fortalece ao solidificar seus ritos de respeito aos que a construíram no passado para que possa continuar se engrandecendo no futuro.
Na sexta-feira, inclusive, a bandeira da UFSC foi levada pela gentileza do diretor do CTC, prof. Edson de Pieri, ou nem isso teríamos.
Errar é humano, mas reconhecer os nossos erros e buscar saná-los ou corrigi-los não diminui a ninguém, pelo contrário. Por isso, e pela instituição que também aprendi a amar, mais que pela minha amizade com Lúcio, peço à gestão atual que se redima, ainda é tempo.
Decretar o luto, organizar uma homenagem a altura do ser humano e do(s) cargo(s) que assumiu, baixar uma portaria normativa criando um rito para os próximos, a ser referendada pelo CUn tão logo quanto possível, são medidas necessárias, urgentes e que podem afirmar a comunidade universitária e a sociedade catarinense que esta gestão está à altura da missão para a qual foi eleita. Ou se ela tem a estatura das bandeiras em luto…
*Sergio Torres de Freitas é professor do CCS/UFSC