O lançamento oficial da cartilha será nos dias 15 e 16 de outubro, na Academia da Polícia Civil de Santa Catarina, em Florianópolis
Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) realizou uma extensa pesquisa, em parceria com a Polícia Civil de Santa Catarina, coletando dados de homicídios femininos e feminicídios no Estado. Os dados foram extraídos de inquéritos policiais nos anos de 2018, 2019 e 2020. Ao todo foram coletados 276 procedimentos investigativos de homicídios de mulheres, sendo 142 de feminicídios e 134 de homicídios simples. Também foram realizadas 20 entrevistas semi-estruturadas com delegados de polícia das diferentes regiões de Santa Catarina. O trabalho teve a colaboração de delegados, psicólogos, escrivães e agentes de polícia.
A finalização da pesquisa resultou na publicação de dois livros e uma cartilha destinada aos policiais civis que trabalham diretamente na investigação de feminicídio. O documento explica as diferenças entre feminicídio e homicídio comum, apresenta a lei do feminicídio e o que são os crimes em razão de gênero referidos na Lei.
O lançamento oficial da cartilha será nos dias 15 e 16 de outubro, na Academia da Polícia Civil de Santa Catarina (Acadepol), em Canasvieiras, Florianópolis. Durante o evento as cartilhas serão entregues aos profissionais da corporação.
A equipe de pesquisadores que produziu o documento é composta pelos professores do Programa de Pós-Praduação em Psicologia (PPGP/UFSC) Adriano Beiras e Andréia Isabel Giacomozzi, pelas doutorandas Verônica Bem dos Santos e Maiara Leandro, e pela recém-doutora em Psicologia Camila Maffioleti Cavaler. A pesquisa também teve a participação de duas bolsistas de iniciação científica que colaboraram para a coleta de dados e escrita dos resultados.
O professor Adriano Beiras é coordenador do Núcleo Margens – Modos de Vida, Família e Relações de Gênero, e a professora Andreia integra o Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição (Laccos). A pesquisa foi resultado de uma parceria entre os dois núcleos, que vêm se dedicando ao tema da violência contra as mulheres, em suas diferentes formas de manifestação.
Cartilha
Com o título “Processo de reconhecimento do feminicídio a partir de mortes violentas de mulheres em Santa Catarina”, a cartilha se propõe a orientar sobre abordagens do feminicídio, a partir dos resultados da pesquisa “Variáveis psicossociais associadas ao feminicídio em Santa Catarina”. O material é “direcionado a pessoas que trabalham com o homicídio feminino no âmbito policial, jurídico ou assistencial” e visa chamar a atenção para “os aspectos de gênero envolvidos nestes crimes”. As autoras ressaltam a importância de qualificar como feminicídio “os crimes em que a desigualdade de gênero opera como um facilitador da ocorrência”.
O documento elaborado pela equipe da UFSC foi inspirado em outra cartilha produzida pela ONU Mulheres em 2016. Com proposta similar, a cartilha “Diretrizes Nacionais Feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres” aponta aspectos que devem ser considerados nas investigações de homicídio feminino. Segundo a cartilha da ONU, “a investigação de todo e qualquer homicídio de mulher deve considerar uma motivação de gênero pré-existente, a qual só pode ser descartada caso toda a reconstituição do crime (perícias, testemunhos e demais provas) demonstre o contrário. A perspectiva de que os crimes contra mulheres são crimes de gênero deve ser, portanto, a primeira hipótese adotada.”
Alinhado a essa perspectiva, o material que será entregue aos policiais civis do Estado tem um formato didático e esclarecedor. A partir da pergunta “Uma mulher sofreu morte violenta: É feminicídio ou homicídio comum?”, o texto traz exemplos que explicitam as diferenças entre os crimes e apresenta uma perspectiva histórica sobre o feminicídio.
Apesar de a Lei do Feminicídio ter sido promulgada no Brasil somente em 2015, as pesquisadoras explicam que “a nomeação de homicídios de mulheres como feminicídio vem sendo pauta de movimentos sociais e produções acadêmicas nacionais desde a década de 1980”. Ainda assim, o texto reforça a importância de uma lei específica para casos de feminicídio, pois isso evita que os autores desses crimes sejam “beneficiados por interpretações jurídicas que desconsiderem os aspectos de gênero, como as frequentes alegações de crimes de honra”.
“O reconhecimento jurídico do feminicídio representa uma importante conquista para a proteção das mulheres, na medida em que dá visibilidade à temática e amplia as possibilidades de prevenção”, afirmam as autoras. Segundo elas, é fundamental definir e nomear como feminicídio a morte de mulheres “em condições sob as quais um homem dificilmente teria morrido”.
A cartilha explica que o feminicídio frequentemente está associado à violência doméstica e familiar – a qual pode se manifestar em forma de violência psicológica, violência moral, violência sexual, violência física ou violência patrimonial. Entretanto, também alerta para o fato de que a violência doméstica é subnotificada.
Na pesquisa que realizaram em Santa Catarina, as autoras constataram: “Apenas 18,3% das vítimas de feminicídio tinham registrado ocorrência policial de violência contra o autor. Entretanto, em 49,3% dos casos analisados, a investigação policial identificou informações de que existiam violências anteriores entre os envolvidos. Esse dado vem corroborar a ideia de que o feminicídio é precedido por um histórico de violência, e acrescenta o entendimento de que esse histórico, na maioria das vezes, não chega às instituições policiais por meio de denúncia formal, o que dificulta a aplicação de ações protetivas.”
O documento também apresenta diversos gráficos com os resultados finais da pesquisa desenvolvida de 2018 a 2020. Neste período, o Vale do Itajaí foi onde houve mais registros de assassinatos de mulheres: foram 69 casos, sendo 36 feminicídios e 33 homicídios comuns. A seguir, a região Oeste registrou 58 casos (35 feminicídios e 23 homicídios); a Grande Florianópolis teve 50 casos (19 feminicídios e 31 homicídios); a região Sul 44 casos (27 feminicídios e 17 homicídios); a região Norte 43 casos (14 feminicídios e 29 homicídios); e a Serra 12 casos (11 feminicídios e 1 homicídio).
Desafios
Compreender e abordar a questão do feminicídio é um trabalho difícil, segundo as pesquisadoras. Todo o esforço empreendido na elaboração desse material foi permeado pelos desafios inerentes à temática: “É muito complexa a identificação de um feminicídio. No campo da investigação criminal, além das dificuldades já presentes nas demais modalidades de investigação, um crime com razões de gênero é desafiador porque atravessa a subjetividade dos investigadores, confrontando conceitos e visões de mundo. Esse entendimento pode ser ampliado para outras formas de trabalho que abarcam a questão de gênero, como o trabalho assistencial, de proteção e, até mesmo, de pesquisa.”
Pesquisas como esta, portanto, exigem um esforço contínuo de autocrítica e vigilância epistemológica: “Quando estamos diante de uma cena de crime, de uma vítima sobrevivente ou de um suspeito, não podemos nos desfazer das normas de gênero pelas quais somos constituídos e isso pode afetar o modo como desenvolvemos nosso trabalho.”
Entre os principais objetivos dos pesquisadores do Margens e do Laccos está a busca por justiça e igualdade de gênero: “Reconhecer as razões de condição do sexo feminino como uma circunstância qualificadora nos homicídios nos permite desvelar as complexidades das relações de gênero e desafiar as normas sociais que perpetuam a violência contra as mulheres. Buscamos ampliar a conscientização sobre o feminicídio, mas também fornecer ferramentas e informações importantes para profissionais que trabalham com a temática. Esperamos que este material contribua para o avanço contínuo na prevenção e no enfrentamento a essa grave forma de violência.”
::: Acesse a cartilha aqui
Fonte: Notícias UFSC