Sílvio Almeida e os limites da luta antirracista na UFSC

*Por Fábio Lopes

Há pouco mais de um ano, em 1º de agosto de 2023, o agora ex-ministro Sílvio Almeida esteve em missão oficial na nossa universidade. Sua agenda incluiu uma audiência no gabinete do reitor, com direito a foto em que o visitante enlaça as mãos às da vice-reitora. Ato contínuo, ele proferiu palestra no Auditório Garapuvu, onde multidões à beira de um êxtase religioso o aguardavam.

Naquele mesmo dia, horas depois do evento, o Notícias da UFSC destacava em manchete a frase supostamente mais contundente de sua conferência: “destruir a universidade”, disse ele, “é destruir possibilidades de desenvolvimento econômico para o Brasil” (https://noticias.ufsc.br/2023/08/silvio-almeida-na-ufsc-destruir-a-universidade-e-destruir-possibilidades-do-brasil-estabelecer-um-caminho-de-desenvolvimento-economico/).

Ora, vocês certamente conhecem a famosa passagem de Hamlet em que o príncipe da Dinamarca acaba de ter o primeiro encontro com o fantasma do pai morto. Amigos o esperam angustiadamente. “O que disse o rei?”, pergunta um deles de bate-pronto. Ao que Hamlet responde: “Que não há em toda Dinamarca um só canalha que não seja um patife consumado”. A réplica, claro, soa completamente decepcionante, e o interlocutor do herói shakespeariano não esconde isso: “Meu senhor, não é preciso um fantasma sair da sepultura pra nos dizer isso.” Pois é. Mas na UFSC não é assim: aqui, a platitude de Almeida sobre a relação da universidade com o futuro do país foi recebida como se fosse o maná que caía do céu. Pior, muito pior: entre todos os presentes, a começar pelo reitor, não houve uma única voz a se levantar para dizer que, como representante de um governo que naquele exato momento estava sufocando financeiramente a instituição, Almeida ajudava a perpetrar a destruição que, ao mesmo tempo, condenava (a rigor, o orçamento da UFSC era então menor do que o vigente nos anos Bolsonaro). Em suma, ninguém se deu conta – ou quis se dar conta – de sua demagogia barata, de sua hipocrisia flagrante.

Pensando bem, tudo foi muito estranho naquela visita. A imprudência, o exagero sentimentalóide e a cegueira quase fanática foram a regra entre nós. Embora o convidado tenha lá seus méritos, não era para tanto, longe disso. Como intelectual, ele não é tão importante assim. De resto, nunca é de bom alvitre incensar burocratas. A política é um jogo delicado demais para admitir alianças definitivas, que dirá idolatria.  Afetos são parte da vida. Mas a experiência mostra que eles facilmente se transformam em seu contrário, de modo que cumpre exercê-los com moderação. Em todo caso, a razão e a objetividade – mormente em espaços como a universidade – nunca podem deixar de ser protagonistas.

Deu no que deu. Como desde a semana passada é de conhecimento de todos, a contradição entre o discurso do ex-ministro e sua prática – tão bem ilustrada na palestra que ele deu na UFSC – revelou-se aparentemente capaz de coisas horrendas. Sua punição se anuncia, e, pelo visto, será duríssima. Mas, e nós nisso tudo? Agiremos como se tivéssemos sido simplesmente enganados por ele? Seguiremos em frente como se o fato de ele ter querido cinicamente posar de defensor da universidade nunca aconteceu? Fingiremos que boa parte dos aplausos dirigidos a ele deviam-se menos a suas qualidades pessoais do que a complacência que emprestamos aos representantes da comunidade negra? Simularemos que o identitarismo, a propósito de criticar a meritocracia, está afrouxando demais a nossa capacidade de julgamento e discernimento?

A injustiça contra as minorias é um fato aterrador, que merece resposta contundente. Mas oferecê-la não é tão simples quanto parece. Está cada vez mais evidente que o racismo não pode ser combatido da maneira vulgar como boa parte de nós tem feito. Trata-se de um problema sério demais para ser abordado com a pressa, a acriticidade e a condescendência que hoje parecem ser a voga na UFSC. 

Ainda não temos elementos para decidir de uma vez por todas se Almeida cometeu ou não os atos de que é acusado. De uma coisa, contudo, podemos estar certos: é preciso discutir o modo como a luta antirracista está sendo conduzida. É preciso discutir a bajulação culpada, a covardia e a tolerância compensatória com que irresponsavelmente temos nos lançado nessa cena. 

É fácil silenciar sobre a suposta importunação sexual do ex-ministro ou declarar-se perplexo, confuso, machucado. Mas a nossa tarefa intelectual e política é outra. Trata-se de, neste momento, perceber que a recepção que o ex-ministro teve na UFSC é um convite à vaidade, ao narcisismo, aos erros morais, à indigência intelectual e, no limite, a atos inomináveis que acontecem debaixo da mesa e destroem a comunidade negra e, por conseguinte, a vida brasileira.

*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC