Contra a empatia

*Por Fábio Lopes

[Este texto é uma continuação do artigo “Recebe o afeto que se encerra”, publicado por mim neste mesmo espaço na semana passada]

Acolhimento, afeto, empatia, amorosidade. Palavras assim hoje saem fácil da boca de qualquer um, inclusive dos mais contumazes canalhas. Nas redes sociais, não se fala em outra coisa. Se abrisse uma conta no X, um extraterrestre que baixasse à Terra ficaria com a impressão de que, desde sua última visita a Varginha, algum tipo de mutação genética conferiu a um expressivo número de seres humanos asas nas costas e uma auréola sobre a cabeça. Mas essa exuberância linguística corresponderá ao exercício efetivo dos sentimentos correspondentes? Vivemos nós em um mundo melhor (ou no mínimo mais promissor) do que aquele em que as pessoas eram bem mais discretas e parcimoniosas quando o assunto são as coisas do coração?

Lembro-me de uma ocasião em que saí com um grupo do qual fazia parte um casal em irreversível crise de relacionamento. Na hora de ir embora, em meio aos protocolares beijinhos no rosto e abraços, a esposa fez inadvertida menção de se despedir do próprio marido.  Flagrada no ato falho, ela tentou amenizar a situação com uma piada que recorria a um velho bordão: “Freud explica”. De minha parte, com a impiedade típica de quem acumula vinte e cinco anos de divã, devolvi de bate-pronto: “Há coisas que nem é preciso Freud para explicar”. 

Pois é. Esse blábláblá interminável sobre afetos & afins também entra na caixinha dos fenômenos que, de tão autoevidentes, dispensam as habilidades do Pai da Psicanálise para ser decifrados. Se se fala tanto em generosidade e abertura ao outro, se se alardeia tão insistentemente a própria adesão aos sentimentos mais puros e nobres, é justamente como gesto compensatório. Não é necessário ser nenhum gênio para perceber que o que se encontra demasiado presente no discurso de alguém está infalivelmente ausente de sua prática real e concreta. 

No caso da lenga-lenga sobre amorosidade e similares, há um agravante. Não posso deixar de notar o quão brega, piegas e kitsch é esse apelo a emoções baratas e lacrimosas.

Mas o aspecto mais pernicioso dessa hipervalorização dos afetos – ou, melhor, do palavrório sobre os afetos – é o quanto isso corrói e desgasta a democracia. Explico – e, para tanto, começo por um breve relato.

Outro dia, uma senhora – aluna de um dos cursos ministrados no CCE – bateu às portas da Direção do Centro. Era uma figura um tanto fora dos padrões habituais do nosso corpo discente, e não só por ter lá seus setenta anos. Usava máscara, o que, de acordo com ela, era uma medida protetiva contra a Covid. Não tinha a mínima familiaridade com plataformas virtuais e gadgets. Sua demanda? Tinha ido à coordenação de seu curso para tentar se matricular em determinadas disciplinas, tarefa que não fora capaz de realizar sozinha. Como não encontrou ninguém, acabou se socorrendo de nosso setor, que, não por acaso, apelidei de lanterna dos afogados. 

De minha parte, levei-a à minha sala, ouvi a sua história e, ato contínuo, a acompanhei até a coordenação de outro curso, que eu sabia estar aberta. Lá, uma bolsista a atendeu e resolveu o problema.

Mas não tirem desse meu ato conclusões apressadas: de modo algum, agi por empatia, amorosidade ou qualquer coisa desse gênero. Sou um servidor público, e a natureza mais geral de minhas obrigações – servir ao público – está indelevelmente inscrita no próprio nome da carreira que escolhi. De resto, existo sob as imposições de valores como respeito aos demais seres humanos, estabelecidos desde as revoluções liberais do século 18 e suas palavras de ordem em nome de liberdade, igualdade e fraternidade. O resto do que fiz deve ser creditado a uma ideia igualmente antiga: a boa e velha etiqueta. 

O que quero dizer é que minha conduta não foi uma manifestação do tipo de bondade hoje em moda (empatia, acolhimento, etc.), muito menos uma prova de minha suposta superioridade moral. Trata-se, antes, do simples cumprimento de uma imposição da minha profissão e, de modo geral, de uma imposição da experiência democrática. E querer transformar o que é da ordem do dever democrático em decisão individual e ação virtuosa do sujeito não é apenas um erro de julgamento; é um equívoco político grave. É um passo para fora do Estado de Bem-Estar Social e o Estado de Direito.  No limite, é uma piscadela para o libertarianismo. Supervalorizar o indivíduo – atribuir a este o que é ou pelo menos deveria ser pressuposto da convivência democrática – é caminho seguro para a destruição dos laços sociais, ou seja, para aquilo mesmo que se imagina estar construindo via empatia e seus sucedâneos. Embora perpetrado por quem diga habitar o lado esquerdo do espectro político, esse abuso da ideia de afeto é, no fundo, um entre tantos avatares da mesma perversão contida na famosa frase de Margaret Thatcher: “Não existe essa coisa chamada sociedade; o que existe é o indivíduo.”  

*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC