*Por Fábio Lopes
Um dos aspectos mais exasperantes de uma certa esquerda brasileira é a sua crença na própria inocência. Regra geral, os ativistas ligados a essa tendência política simplesmente dão de barato que são moral e intelectualmente muito superiores ao comum dos mortais. Essa superioridade, eles supõem, não precisa se basear em nenhum indicador material. É coisa dada de nascença, ontologicamente garantida – e nada que aconteça na vida mundana pode mudar isso. Para eles, ou bem as pessoa aderem às suas pregações e projetos, ou bem estão condenadas a arder no fogo do inferno. Simples assim.
É claro que esse tipo de atitude condena quem o pratica à ignorância. Afinal, por que alguém deveria estudar, compreender as coisas ou questionar a própria condição se já está com os dois pés solidamente fincados na Verdade, na Justiça e no Bem? Caberia, antes, aos outros – os que ainda não atingiram a Iluminação – tarefas tão comezinhas quanto abrir um livro e se esforçar para aprender o que quer que seja. Mas a preguiça e a indigência intelectual não são os únicos subprodutos perniciosos da crença na própria grandeza espiritual. O efeito verdadeiramente deletério da fé na própria Concepção Virginal é, paradoxalmente, a canalhice e, no limite, a iniquidade.
O inocente ontológico não professa apenas a velha convicção de que os fins justificam os meios. É muito pior que isso. A pessoa capturada pela ideia de que foi desde sempre tocada pela Graça nem se coloca a pergunta sobre a qualidade ética dos meios. Sendo ela a encarnação mesma da Pureza, tudo o que fizer será necessariamente sagrado, santificado. Não há padrão externo para julgar as condutas. O critério é imanente: se sou eu quem faz, logo é Bom. Não é o ato que eleva o agente. É o agente que eleva o ato.
O bolsonarismo só fez agravar esse arraigado hábito mental de parte de nossa esquerda. Os defensores do Capitão são tão ogros e cretinos que fazem com que qualquer um se sinta bem dentro de sua pele e se considere muito melhor do que, na verdade, é.
A extrema-direita destrambelhada colocou o sarrafo tão baixo que deu aos seus adversários a certeza de que, só por não andarem sobre quatro patas, já atingiram o Nirvana. Nem lhes passa pela cabeça a advertência que sempre faço a meu filho: “Ser bom dá trabalho”. Nunca foi tão fácil conquistar um lugar no Céu.
A UFSC é um ambiente particularmente propício à reprodução dessa nova raça de bípedes implumes que já vêm ao mundo sob o signo da santidade. Não se caminha pelo campus sem tropeçar em almas transbordantes de virtudes. Os últimos meses, aliás, foram pródigos em mostrar isso.
A greve docente, por exemplo, foi uma prova contundente do quão sublimes são os seus líderes e comandados. O fato de ela ter se prolongado inutilmente por mais de um mês é mero detalhe irrelevante, assim como é mero detalhe irrelevante a reposição das aulas ter sido frequentemente feita em cima da perna direita, para inglês ver.
Igualmente sem qualquer importância é o número expressivo de alunos que, mercê da dispersão decorrente da paralisação das atividades e do interminável recesso escolar em que estamos até agora metidos, simplesmente desistiu de seus cursos ou, na melhor das hipóteses, perdeu muito do elã que os trouxe à universidade.
Também não passa de ninharia a circunstância de a continuação da greve docente ter sido decidida por uma parcela amplamente minoritária da categoria, que impôs a sua vontade à maioria. Claro: que diferença a fria matemática faz quando o Povo Eleito já decidiu o que é certo?
Ah, sim: faltou dizer que tampouco se deve dar bola para o fato de que essa minoria só conseguiu calar a maioria porque, graças a um acordo com a Administração Central em troca de votos nas próximas eleições para reitor, obteve benesses como a possibilidade de censurar a Agecom ou transformar as vetustas reuniões do Conselho Universitário em um circo romano, com direito a ameaças e agressões às vozes dissidentes. A violência é instrumento mais do que justificado quando o que está em causa é nada menos do que a Guerra Santa.
Nós – os vis, os pecadores – é que não percebemos que tudo isso, a rigor, não são golpes contra a democracia, a civilidade ou os valores universitários mas metamorfoses e emanações da Bondade.
Nós – os ímpios, os eurocêntricos, os elitistas – é que não percebemos que tudo isso até pode parecer vileza mas (em um nível profundo, metafísico, que só aos Altos é dado ver) é de fato Gentileza, Empatia, Castidade.
Nós – os direitistas, os conservadores, os bolsonaristas e criptobolsonaristas – é que ainda não compreendemos que o que os Ascetas fazem é legítimo em si mesmo, cabendo à proverbial Viúva pagar a conta, sem que a instituição precise dar nada em troca.
Nós – os pelegos e interesseiros – é que não compreendemos que o leme da Universidade já deveria estar há muito tempo nas mãos da Sacrossanta Congregação. Ainda não entendemos que, justamente por não enxergarmos a Luz, continuamos a nos dedicar a essa coisa suja chamada política, que envolve negociações, avanços e recuos, erros e acertos, autocrítica, paciência e, pasmem, ideias tão absurdas quanto achar que talvez a UFSC esteja na draga em que está por razões que também tenham a ver com os equívocos e limites de quem nela trabalha ou estuda.
Como fruto de nossa baixeza, nós – os que, como no poema de Pessoa, não temos “tido tempo nem para tomar banho” – é que permanecemos tolamente agarrados à “narrativa” de que a UFSC é péssima executora de recursos e se vê obrigada a devolver vultosas verbas à União ao fim de cada ano fiscal. A universidade precisa é de mais dinheiro, period.
Nós – os ímpios, os infiéis – é que fazemos o jogo do governo ao insistir que existem muitos docentes que não cumprem suas obrigações, enquanto outros carregam o piano. Pura ilusão. Os Lattes raquíticos de determinados colegas e/ou a alergia deles à sala de aula pertencem ao Mundo das Aparências. No Mundo das Ideias, eles são ganhadores do Prêmio Nobel e se dedicam aos alunos como Madre Teresa de Calcultá se entregava aos leprosos.
Nós – os quinta-coluna – é que ficamos perdendo tempo com miudezas como o fato de que há um monte de TAEs perambulando por aí sem nada melhor para fazer, ao passo que outros tantos deles têm que trabalhar em dobro para compensar o descompromisso alheio. Bullshit. Precisamos é contratar mais gente e pagar melhores salários, no más.
Nós – os que nascemos do ódio – estamos redondamente enganados. Ao contrário do que espalhamos aos quatro ventos, a crise da universidade não é a crise de uma instituição que, em um país preso à condição de mero exportador de commodities, não sabe o que fazer com o fato de já não consegue mais se sustentar como centro formador de quadros técnico-científicos e produtor de C&T. A crise da universidade tampouco é a crise de uma Casa que nem sequer é capaz de corrigir seus próprios problemas de gestão, que dirá interferir na cena brasileira.
Nada disso: tudo, inclusive a inexistência de contrato de manutenção de aparelhos de ar-condicionado e bebedouros mesmo depois de dois anos do início da gestão que está promovendo o Advento, se resume à falta de Afeto.
*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC