O dia depois de amanhã, parte 2

Por Fábio Lopes da Silva*

Há uma foto famosa de José Genoíno que, desde que a minha juventude, me assombra. Na época, ele era militante do PC do B e acabara de ser capturado durante uma fracassada campanha de guerrilha no Araguaia. Está esquálido e em farrapos. Seus braços e pernas permanecem amarrados. Soldados o cercam. 

Genoíno era um sujeito destruído. Quem vê a foto tem a nítida sensação de que se trata de um personagem sem saída, prestes a morrer. Mas o fato é que o mundo deu voltas, e aquela figura em frangalhos acabou por se converter em alguém muito poderoso e respeitado. Não muito mais do que vinte anos depois do que parecia ser aniquilação total, o pobre-diabo da foto se elegeu deputado federal e, mais tarde, presidente do Partido dos Trabalhadores. 

Só que o destino ainda lhe preparava outra surpresa. Quando tudo indicava que a roda da fortuna o transportara para sempre para o que uma velha canção chama de sunny side of the street, ele se viu acusado de corrupção e, ato contínuo, condenado. Lá foi Genoíno para a prisão.

Así es la cosa: tudo é vertiginosamente mutável. Os leões que rugem em determinado dia são os animais acuados do dia seguinte. As maiorias da véspera subitamente são reduzidas a minorias. O calor reconfortante das multidões dá lugar ao silêncio ou, o que é pior, ao urro selvagem contra aqueles que até trasanteontem eram por elas incensados e reverenciados.

Como se vê, não há regra definitiva neste vale de lágrimas – exceto uma: a de que o sol nascerá amanhã, do mesmo modo que pelos próximos cinco bilhões de anos, de maneira que é preciso um certo zelo e cuidado com o que se faz ou se diz no dia de hoje. O pior erro que alguém pode cometer é mover uma peça no tabuleiro na suposição de que essa é a última rodada do jogo. Na vida, assim como na política, não existe xeque-mate no adversário, muito menos convém tratá-lo como inimigo mortal. 

Faço essa longa introdução para abordar alguns acontecimentos recentes na UFSC – em particular, os que transcorreram nas quatro últimas sessões do Conselho Universitário.

Quando se imaginou que recusar ao ex-reitor Rodolfo Pinto da Luz o título de professor emérito fosse o fundo do poço, as três reuniões seguintes do CUn mostraram que havia muitos degraus a descer – e talvez ainda haja outros mais. 

Ao arrepio do Regimento da Casa e de qualquer compromisso mínimo com o bom senso, o reitor arbitrariamente lançou os conselheiros e conselheiras em sessões abertas, a fim de discutir temas delicados, que, por óbvio, exigiam meditação e recolhimento. Pior, muito pior: essa decisão destrambelhada se somou ao fato de que a pauta dessas sessões abertas e os respectivos pareceres que as instruíam chegaram aos conselheiros de supetão, na véspera do evento, que até então estava programado para acontecer em ambiente fechado e com outra ordem do dia.  Se a ideia era humilhar e vilipendiar colegas que eles julgam opositores, a missão foi plenamente atingida. 

Nos dias das reuniões, o auditório Garapuvu foi tomado por uma multidão ruidosa e excitada. Vaias, gritos, xingamentos e ameaças impediam que qualquer raciocínio contrário aos interesses dos grupos de pressão presentes fosse pronunciado, que dirá ouvido.

Os próprios conselheiros favoráveis às teses abonadas pela plateia tratavam de exasperá-la ainda mais, mesmo que o preço disso fosse o constrangimento e, no limite, a própria integridade física de quem se opunha à vontade da turba (que era majoritária no recinto mas claramente minoritária na universidade como um todo – mas quem se importa com esses detalhes irrelevantes?). Ofensas às regras do Conselho e à sua estrutura e modo de funcionamento eram gritadas pelos oradores com a non chalance  de quem se diverte com os efeitos de suas imprecações no público. Um deles – em exercício grotesco de falta de decoro e de compromisso com a verdade – chegou a acusar falsamente um diretor de centro de, durante a pandemia, ter defendido a ozonioterapia. Não satisfeito, destilou em seguida a sua fúria homofóbica a plenos pulmões: “Talvez esse apreço pela ozonioterapia”, ironizou o conselheiro, “seja por ele gostar de como o método é aplicado…”. A agressão não apenas ao referido diretor de centro mas à comunidade LGBTQIA+ foi recebida com alegria entusiasmada por incontáveis pessoas que, na esquina, juram amor eterno à causa de minorias ou até fazem parte delas.

Em outra daquelas sessões à beira de um ataque de nervos, ninguém menos do que a vice-reitora arrebatou o microfone para, em alto e bom som, me acusar de dois crimes – racismo e misoginia – sem dar a menor prova do que dizia e naturalmente sem medir as consequências do que seus comentários levianos poderiam desencadear em indivíduos já tão exaltados.

Tudo isso, claro, contou com a já proverbial inação do reitor, que deixava o barco correr com aquela atitude fria e distante que um dia eu já achei que fosse serenidade mas atualmente me parece bem mais estranha e, para ser franco, chega a me dar calafrios. O engraçado – ou nem tão engraçado assim – era que ele só saía de seu perturbador silêncio para coibir as tentativas de conselheiros de fazê-lo cumprir o Regimento da Casa.

Essa saturnália irresponsavelmente organizada e presidida por interesses eleitorais e sei lá mais que outros objetivos só poderia terminar como terminou. Ante a resiliência de conselheiros que, a despeito de todas as agressões e atos discricionários, conseguiram barrar ao menos algumas das pretensões absurdas dos manifestantes e seus líderes, restou aos mais enlouquecidos – que, diga-se de passagem, não eram poucos – cercar diretoras e diretores de centro. Um deles berrava em meus ouvidos – em meio a uma saraivada de perdigotos – que eu não ficaria impune, o que quer que isso signifique. Três diretoras de centro tiveram que ser escoltadas por conselheiros homens até seus veículos. Ora, não era essa gestão que se orgulhava de, nos próprios termos de seu horrendo jargão, acolher minorias?

Sitiado por tanta irracionalidade e desepero, eu tive a nítida sensação de estar presenciando uma daqueles frenesis que, nas aldeias medievais, se apossavam das pessoas acometidas pela peste. E, no entanto, contra as expectativas daquelas almas e corpos em ebulição, dos seus animadores de auditório e dos sacerdotes que, sentados à sacrossanta mesa da presidência, dirigiam a festa macabra, o sol nasceu no dia seguinte. E com o sol nasceu o mundo real. E com o mundo real a possibilidade sempre presente de os atos por eles perpetrados cobrarem um preço hoje. Ou amanhã. Ou em algum ponto do futuro. Tempo para isso não faltará. O astro-rei, pelos próximos cinco bilhões de anos, aguardará essas pessoas a cada alvorada. Mas o mais provável é que a conta lhes chegue bem antes disso. 

*Fábio Lopes da Silva é diretor do CCE da UFSC