O dia depois de amanhã

*Por Fábio Lopes da Silva

Por óbvio, a greve nas universidades é justa. Boa parte de nosso drama de fato decorre
do corte de verbas federais, que, não custa lembrar, começou ainda no primeiro ciclo petista,
se prolongou pelos governos Temer e Bolsonaro, e agora é mantido pelo novo mandato de
Lula. No caso dos técnicos-administrativos, a greve tem ainda mais razão de ser. A categoria é
a que amarga as piores remunerações no serviço público brasileiro e, de resto, conhece um
claro processo de desmonte com vistas à terceirização.

Mas o fato de uma greve estar calçada em pleitos legítimos não lhe garante o sucesso
nem, a rigor, significa que ela deva ser deflagrada. A mim estava claro desde o início que a
greve atual padecia de limites que sugeriam um prazo maior de organização e processos
prévios de politização da base. O mais certo seria prepará-la para o ano que vem.

Quando falo em limites, tenho em mente ao menos três pontos principais. O primeiro
é que as categorias – sobretudo os docentes – passaram muito tempo sem atuação sindical
minimante contundente. O período em que o petismo esteve no poder pela primeira vez foi de
forte acomodação. Já nas administrações de Temer e Bolsonaro, o marasmo de outrora deu
lugar ao pânico e à perplexidade, o que, em todo caso, resultou em paralisia e desarticulação.
Ora, esperar que um movimento há tantos anos afastado da luta política e de sua gramática
elementar pegasse imediatamente no tranco era pedir demais.

O segundo limite importante da greve está no fato de que boa parte dos grevistas está
histórica e afetivamente ligada a Lula. A rigor, quase todos eles entoaram por quase uma
década e continuam a entoar a cantilena de que o fascismo é o grande risco a pesar sobre o
país e que, por sua vez, Lula é a última linha de defesa contra essa ameaça. Pois bem: como
uma greve pode se sustentar se o nome do patrão a ser enfrentado é, ao mesmo tempo,
incensado como o bastião da democracia e dos trabalhadores brasileiros? Não se faz greve
sem querer arrancar as amígdalas do governante de plantão pela orelha. Vacilar nisso é
costear o alambrado do fracasso.

Um vídeo que circula na internet ilustra bem o que quero dizer. Nele, o negociador
nomeado pelo Ministério do Planejamento – um velho quadro da CUT – é interpelado por
representantes do Andes. “Vocês vão trair quem votou em Lula e o apoiou sempre?”, diz um
dos sindicalistas, em um estranho apelo ao toma-lá-dá-cá tantas vezes criticado pela esquerda.
Mas o que mais chama a atenção é como a cena continua. “Vocês vão dar um tiro no pé?”,
insiste o manifestante. Ao que o membro do governo responde na lata: “Pode apostar que
vamos dar um tiro no pé.” A tradução da réplica do burocrata é simples: ele sabe que aquelas
pessoas não têm para onde correr (e mais ainda: que continuam profundamente vinculadas ao
PT, mesmo quando filiadas ao PSOL), de modo que muito provavelmente votarão em Lula ou
em quem Lula indicar nas próximas eleições, mormente em um eventual segundo turno. Por
que ceder a quem, de qualquer modo, seguirá formando o rebanho pastoreado pelo Sapo
Barbudo?

O terceiro elemento a comprometer a força da greve é o prestígio social da universidade, em nítida queda livre. Já vai longe o tempo que vivi quando cheguei à UFSC, em 1994. Com 25 anos, cabeludo e dirigindo um carro velho com placa de fora, eu era alvo preferencial das blitzen da polícia. Em uma das ocasiões em que fui parado, eu havia acabado de perder todos os documentos do veículo, assim como todos os documentos pessoais, salvo uma carteira da Apufsc que me identificava como professor da universidade. Foi o que bastou para que eu fosse tratado a pão-de-ló pelo PMs e liberado para seguir meu caminho. Só faltou me acompanharem com escolta de batedores. Hoje, pelo contrário, somos crescentemente mal vistos, sem que saibamos o que fazer para alterar essa rota descendente. No caso dos TAEs, esse desprestígio se soma à baixíssima visibilidade social e ao modesto impacto político da categoria, sem falar no histórico desprezo que enormes parcelas de professores e estudantes nutrem por eles, o que inclui muitos grevistas docentes e discentes que, no momento, oportunisticamente, juram amor eterno por esses colegas.

Em um tal ambiente, o resultado da greve – ou, para ser mais exato, das greves, pois não há um movimento unificado das três categorias a não ser na retórica de alguns – é o que tantas fragilidades estruturais do movimento prometiam: um ganho salarial razoável para os docentes, um ganho ridiculamente baixo para os TAEs, e nada, rigorosamente nada, em termos de recomposição orçamentária para a instituição.

Sitiada por sua própria fraqueza, a greve dos docentes experimentou um breve
momento em que parecia que ia pegar, mas ficou nisso. Nunca foi majoritária na UFSC e, de
umas semanas para cá, minguou até se isolar no solilóquio de uma pequena vanguarda
autonomeada. Os TAEs seguem com um movimento tão forte numericamente e em
radicalidade quanto sem perspectivas de ganhos. Não é difícil antecipar o que lhes aguarda
caso sigam nessa jornada: uma polarização cada vez maior com professores e estudantes, que
só dividirá ainda mais o que já está dividido. A ideia de construção futura de uma greve
unificada da educação – desde sempre remota mas ao mesmo tempo a única saída possível
para o emparedamento em que os TAEs se encontram – ficará ainda mais distante e
impraticável.

Já os estudantes – categoria que, por razões óbvias, não combina muito bem com a
ideia de greve como forma de luta – embarcaram de modo muitíssimo parcial e errático na
paralisação. Ganharam de presente da reitoria até uma resolução completamente
destrambelhada e obviamente inconstitucional que, contra princípios trabalhistas básicos,
obriga professores a trabalharem duas vezes em troca da mesma remuneração caso não
adiram a greves puxadas por estudantes.

Se a greve docente é minoritária e minguante, a discente é ainda mais encruada e
empobrecida. A ocupação do CCE por um pequeno grupo de estudantes é a última flor desse
movimento sem rumo.

Sou particularmente sensível a essa ocupação não apenas por no momento dirigir o
Centro mas sobretudo porque a iniciativa interrompe e inviabiliza um processo de mobilização
que eu articulava e que vinha rendendo frutos. Explico.

Mencionei acima três fatores de fragilização da greve, mas agora é preciso acrescentar
mais um: a pouca compreensão que a comunidade universitária tem da natureza da crise da
instituição. Eu poderia gastar muitas páginas falando dos vários aspectos dessa crise que
parecem pouco presentes na reflexão dos colegas e discentes grevistas e não-grevistas, mas,
por razões de espaço e a fim de chegar mais rápido aonde quero, vou me limitar a comentar o
papel da Reitoria no agravamento de nossos dramas. Muito do que se atribui à falta de verbas
federais é, na verdade, puro efeito da incompetência da atual gestão da UFSC.

Os problemas do CCE são um bom exemplo disso. É claro que há uma série de obras
necessárias ao Centro que dependem de verbas do governo. Mas, ao mesmo tempo, há outras
extremamente simples e baratas que deixam de ser feitas não porque faltem recursos mas
porque os setores internos responsáveis por esses serviços não se mexem. Essas intervenções
não resolveriam tudo o que está errado mas melhorariam consideravelmente a vida de quem
frequenta as dependências do CCE.

À custa de muito esforço e desgaste, eu havia conseguido convencer boa parte da
comunidade do Centro de que era mesmo esse o caso. Graças às pressões que fizemos via
Conselho de Unidade e por meio de reuniões de docentes, TAEs e discentes com a Reitoria,
conseguimos forçar a Administração Central a dar prioridade a obras como a
impermeabilização da cobertura do Prédio do Básico e o conserto dos aparelhos de ar-
condicionado das salas de aula. O próximo passo seria exigir que substituíssem válvulas de
descargas danificadas, consertassem bebedouros e colocassem uma bomba de drenagem na
casa de máquinas do prédio D, o que poria fim nos recorrentes desabastecimentos de água
que martirizam aquele edifício há mais de dois anos. Tudo isso são medidas de custo quase
zero e tecnicamente muito modestas. É completamente inaceitável que não tenham sido
providenciadas até agora.

Ocorre que a ocupação interceptou a marcha dessa movimentação da comunidade-
CCE e vendeu a ideia de que os nossos problemas decorrem da crise de financiamento da
universidade pelo governo federal. Nacionalizaram um conjunto de demandas que é
evidentemente local. Blindaram os verdadeiros responsáveis por parte de nossa situação
calamitosa, a saber, o reitor e seus comandados. Parabéns aos envolvidos.

Resta às greves entender que bateram no teto das possibilidades de ganho, não
porque o governo esteja certo ou justificado em manter-nos à míngua mas porque as
condições políticas atuais não permitem mais do que foi obtido. Resta às greves lamber as
feridas em vez de insistir em um movimento que, daqui em diante, só tem a perder e a fazer a
instituição perder. Bem sei, no entanto, que não é fácil admitir isso, sobretudo quando se é
TAE em greve há três meses, com o salário na lona. Compreendo perfeitamente a relutância
desses colegas paralisados. Contudo, o que se há de fazer?

Ora, o interessante na política é justamente o fato de que quase sempre há muito o
que fazer – e é bem essa a nossa condição atual
. Creio que a tarefa em nosso horizonte –
dificílima, por certo – é, por um lado, construir um movimento realmente forte, o que depende
da compreensão dos seus limites internos e também dos limites internos da instituição como
um todo, que não são poucos e que explicam ao menos em parte o prestígio declinante da
universidade e a fragilidade da greve. A nossa pauta daqui em diante é tentar compreender o que nos divide e tentar construir pontes, ainda que precárias. A pauta inclui ainda o desafiador
compromisso de cortar na própria carne, encarando o fato de que, para começar, há
montanhas de professores que hoje trabalham pouco ou trabalham mal; que há montanhas de
TAEs que trabalham pouco e trabalham mal; que há montanhas de discentes que estudam
pouco e estudam mal; e que, claro, montanhas de gestores que gerem pouco e gerem mal.

*Fábio Lopes da Silva é diretor do CCE da UFSC