Não existe greve grátis

*Por Daniel de Santana Vasconcelos

Não existe greve grátis. Sim, me perdoe o dileto leitor, mas contra todas as minhas convicções teóricas e minha visão de mundo de economista keynesiano, progressista e anti-neoliberal por conhecimento e por convicção, preciso tomar de empréstimo uma conhecida frase de Milton – bate três vezes na madeira – Friedman. Na acepção original, o que a afirmação de Friedman quer dizer é que tudo tem um custo, e os custos serão enfrentados por alguém, mesmo que não sejamos nós, diretamente, a arcar com eles. Vale, sobretudo, para almoços, mas vale, também, para greves. E agora, municiado dessa ideia, eu discuto não a greve, mas o pós-greve que se desenha entre nós – com rabiscos bastante ruins, a uma primeira leitura.

Os docentes da UFSC entraram oficialmente em greve em 07 de maio. Eu mesmo fui um dos que aderiram ao movimento, consciente de que as pautas eram válidas e justas, o movimento era nacionalmente amplo, e o governo atual fez por merecer essa greve, uma vez que negligenciou negociações, propôs um 0% absolutamente inaceitável para os docentes esse ano e os ridículos 12,5% lineares de depois (já carcomidos pela inflação futura), e, principalmente, porque vem tratando a educação com abusivo desleixo, para dizer o mínimo. Não chega a ser uma ação destrutiva como foi aquela resultante do terrível amálgama Temer+BolsoGuedes e as “pragas do Egito” (os ministros que passaram pelo MEC durante os anos desses dois governos). Temo que Darcy Ribeiro confirmaria, mesmo diante de um governo dito “de esquerda” (mas José Dirceu já o contestou…), que o problema continua sendo maior, faz parte mesmo de um projeto ruinoso, e o atual governo nada faz para mudar isso, a não ser propagandear que vai construir coisas novas, enquanto as antigas, já construídas, estão caindo sobre as cabeças das pessoas. A greve docente nacional é justa, as pautas são mais que justas, e o quarteto Lula-Haddad-Dweck-Camilo segue negligente. É a receita para o desastre, mas um desastre com 100 novos institutos federais, vá lá entender a lógica desse pessoal.

O fato, todavia, é que no dia 24 de maio, depois de uma manobra burocrática com todos os elementos de um ardil traiçoeiro, conduzido pela diretoria do sindicato local no interesse de defender não os docentes, não a instituição universitária, mas a federação da qual faz parte, a greve docente, em termos práticos, oficialmente, terminou. Há ainda um grupo expressivo de colegas que não aceita esse final, uma vez que o processo que levou a ele atropelou tudo e todos, mas infelizmente os líderes do movimento paredista aderiram conscientemente à votação que terminou quase empatada, mas com a maioria votando pelo final da greve (tendo sido vencidos, internamente, os votos de lideranças em contrário, que entendiam que o processo conduzido pela diretoria nascera viciado e participar dele tornaria o vício em algo tacitamente válido). Finda a greve, em termos oficiais, é chegada a hora de discutir o após-greve. E aí os sinais não são nada bons.

Começou pela aprovação pelo Conselho Universitário, numa reunião atropelada e mal conduzida – como, ademais, tem sido praxe – de uma nova resolução para tratar da questão dos estudantes em greve. A resolução, em si, cópia ruim de outra, de 2019, preserva as falhas da anterior. Ambas contem os mesmos vícios de origem, mas a atual peca mais, por ser absolutamente negligente em relação ao que aprendemos de 2019 pra cá. A resolução recém aprovada lida com a greve como se a greve fosse um almoço grátis. Mais sobre isso logo em seguida. Contudo, a marcha para o caos institucional segue, agora, com a ideia de “suspensão” (seja lá o que definirem ser isso) do calendário letivo, em face da greve. A proposta de suspensão do calendário, interrompido de forma não totalmente ampla por uma greve de somente três semanas, é outro almoço grátis. E, em ambos os casos, as duas soluções propostas incorrem em outro problema que os economistas gostam de investigar em suas teorias – o problema dos caronas. O carona é alguém que usufrui benefícios das ações dos outros, mas não incorre nos custos para obtê-los (como, por exemplo: professores que usufruem ganhos salariais das greves tocadas corajosamente por outros, gestões que repassam para outros as responsabilidades que deveriam ser suas, ou estudantes que não enfrentam diretamente os custos da adesão a uma greve, mas se beneficiam do resultado de resoluções ruins e mal redigidas, mal discutidas, e, infelizmente, apesar de todos os vícios de origem, aprovadas).

A nova resolução aprovada para tratar da situação dos estudantes em greve é o exemplo típico de um almoço grátis. A resolução ignora completamente o fato de que os custos de saída de uma greve deveriam ser compartilhados. Pelo contrário: o texto aprovado coloca tudo nas costas de um grupo e somente um grupo, e estes enfrentarão, sozinhos, os custos da greve – os docentes. A resolução joga a responsabilidade toda de tratar com os dias parados, os conteúdos, as avaliações, o reajustamento de prazos, etc. somente sobre os docentes e as coordenações de cursos, a quem caberá, praticamente, fazer tudo. Não há responsabilidades compartilhadas com a gestão, salvo a ação burocrática da Prograd e Propg de receber os ajustes e repassar o que for necessário ao DAE, e seguirem como se nada mais tivesse acontecido. Nenhuma palavra sobre como essas pro-reitorias devem avaliar os tais ajustes, quais recomendações precisam/deveriam fazer, quais as suas responsabilidades pedagógicas na condução do processo, nada. Somente o registro cartorial no SPA – “recebido/encaminhado” – e o trabalho para o DAE, sozinho, agregar tudo e informar novas datas. Assim é fácil ser gestão. Da parte dos estudantes – cujo processo de entrada em greve foi igualmente difuso, como, ademais, foi o próprio processo da greve docente – também não há nenhum custo administrativo. Nem sequer precisa ser comprovado que o centro acadêmico de um determinado curso se reuniu em assembleia e decidiu entrar na greve, por exemplo. É o erga omnes na veia. O estudante pode alegar ter participado da greve sem nunca ter ido a uma assembleia ou se movimentado para tal, pode simplesmente pegar carona na greve dos outros, mas colher os mesmos benefícios dos que realmente estavam lutando por alguma coisa.

Ao fim e ao cabo, toda a responsabilidade – o custo desse almoço grátis – recai somente sobre os docentes. Em última instância, toda a carga de trabalho, toda a responsabilidade administrativa, restará, por gravidade de uma normativa ruim, sobre os lombos da docência e mais ninguém. Aprovada dessa forma, a resolução se prestou bem ao papel de “jogar para a plateia”, ao instituir uma greve grátis para a gestão e para o corpo discente, sem mais nenhum compartilhamento de responsabilidades entre todos os envolvidos. Tudo o que resta, espremida a resolução na sua inteireza, é somente a atribuição de toda a responsabilidade, absolutamente toda ela, sobre os ombros de coordenações de curso e diretorias do CA e NDI, administrativamente, e os/as docentes, que terão que fazer a magia acontecer – pagando a comanda do almoço.

Quando uma resolução propõe soluções para um problema difícil, ela deveria no mínimo estabelecer os critérios de resolução de forma mais precisa. Deveria, sobretudo, definir perfeitamente quem é o dono de qual responsabilidade, e como. Toda a responsabilidade no processo precisa ter um dono, ou donos. Quando isso não está bem definido, tudo vira um cipoal de interpretações livres. Veja um exemplo hipotético que dividi com meus colegas de departamento.

Suponha um estudante que tenha entrado em greve, mas o docente da disciplina não. As aulas seguiram sendo dadas. Suponha que esse docente tivesse marcado uma prova para 14/5, muito antes de qualquer indício de greve ter iniciado. O aluno não a fez pois está em greve. Toda a turma fez, pois já estava marcado. Agora o aluno quer o seu direito de refazer a prova. A normativa exige “período razoável de preparação” para a prova. Quanto tempo é um “período razoável”? Uma semana? Duas? Defina “razoável”, nesse caso. Além disso, demanda que o docente deve se atentar “às demais atividades avaliativas de outras disciplinas cursadas pelos discentes, sendo vedada a realização dessas atividades por 10 (dez) dias úteis após a comunicação do término da paralisação estudantil”. 10 dias de pedágio grátis para uns, caro para outros. Traduzindo: tudo isso está em aberto, não se diz quanto é o período razoável, mas se diz que, finda a greve, nada se possa marcar antes de 10 dias úteis, e não pode haver acumulação entre as demandas de uma disciplina e outra – coisa que, no período normal, ocorre sempre. Ao fazer essa redação voluntariosa e imprecisa, quem é o dono da responsabilidade? A Prograd? A Propg? Não. Nem uma palavra sobre o que é período razoável, nenhum manual de instruções para as coordenações de curso sobre como se pode repor o tempo referente ao período de greve, sobre se se pode utilizar tecnologias virtuais para reposição de conteúdo – a petição de princípio com que alguns grupos na UFSC repelem o uso de tecnologias virtuais para determinadas situações é uma idiossincrasia à parte, seguimos sem normativa a respeito. Em síntese: nada. E, se tudo mais der “errado”, o aluno sentir-se prejudicado, e precisar recorrer a instâncias revisoras de procedimentos administrativos (inclusive externas à UFSC), não há nenhuma responsabilidade para o/a estudante, não há nenhuma responsabilidade para reitoria, a Prograd, a Propg, só há responsabilidade objetiva, concreta, real, verificável, “auditável”, exigível, sobre as coordenações – por aprovarem os ajustes do pós-greve – e os docentes, por terem o dever de executar os ajustes para os quais foram a parte interessada menos ouvida em todo o processo. Ou seja: responsabilidade sem dono recai somente sobre os que gritaram menos. Os docentes se tornam os donos dessa responsabilidade por gravidade: caiu-lhes no colo, e ninguém mais responde por isso. Isso não é compartilhar responsabilidades: é terceiriza-las para a docência. Isso não é enfrentar os custos de uma saída de greve, é repassar a comanda a todos os docentes. “Paguem”. Por fim, desenha-se que a mesma coisa corre o risco de acontecer no que diz respeito à ideia de “suspensão” do calendário acadêmico. Ora, uma greve que oficialmente encerrou-se em coisa de três semanas não implica a necessidade de reajustamento inoportuno do calendário. Existem diversas alternativas para se dar conta das reposições dos dias de paralização no curso mesmo do calendário atual, sem sua suspensão, interrupção, ou seja lá como queriam definir a coisa. Basta que a Prograd e Propg estabeleçam critérios de reposição, que se permita a utilização de sábados, de aulas online, contraturnos, outras alternativas, para que cada docente e turma possam realizar a reposição adequada. Talvez, no máximo, se possa alongar em mais uma semana o calendário atual apenas para ajustes finais – aulas, avaliações, defesas, lançamento de notas, etc. – mas nada que realmente careça de uma suspensão ou prolongamento maior do calendário em curso. No entanto, é provável que, uma vez mais, aqueles que pouco enfrentarão os custos da manobra, mas pegarão carona em seus resultados, façam atropelar o bom senso – essa qualidade que todos acreditam possuir em demasia, mas da qual, sabemos, o mundo e a universidade andam sempre tão em falta – e enfiem de goela abaixo uma resolução ad hoc que criará mais calor do que luz. Os custos restarão por serem pagos, mais uma vez, por docentes, coordenadores de curso, chefias de departamento e servidores técnicos que deverão administrar esse pequeno caos sozinhos. Não existe greve grátis, todos precisam assumir os riscos e as responsabilidades de uma greve séria. Mas alguns gostam de gastar como se não houvesse amanhã, desde que a comanda seja paga… por outras pessoas, para quem o amanhã sempre chega.

*Daniel de Santana Vasconcelos é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC