Em artigo publicado em 2002, historiador refletia sobre movimentos de greve nas universidades

“Greves por tempo indeterminado, quase sempre muito prolongadas, são tão nocivas à universidade pública quanto as medidas autoritárias e erráticas do governo”, defende Daniel Aarão Reis Filho

Texto do historiador Daniel Aarão Reis Filho, publicado em 2002 na revista Espaço Acadêmico:

O recente movimento social de professores, estudantes universitários e funcionários técnico-administrativos, de mais de três meses, teve o mérito de mostrar, mais uma vez, e para toda a sociedade, a crise que marca a universidade pública brasileira: instalações carentes, corpo docente insatisfeito, truculência e falta de diálogo por parte de autoridades políticas e administrativas.

Entretanto, e ao mesmo tempo, as greves prolongadas (a deste ano e a do ano passado), a forma como foram conduzidas, e as concepções políticas e sindicais que as orientaram, evidenciaram um distanciamento crescente entre as direções sindicais e a comunidade de docentes. Mesmo entre docentes mais politizados, a legitimidade de um certo sistema sindical começa a ser contestada.

Entre as muitas divergências, duas são particularmente importantes: as restrições à validade da insistência na escolha de uma certa forma de luta: a greve por tempo indeterminado. E os questionamentos a certas formas precisas de organização: as assembleias centralizadas cujas orientações e ritmos são ditados pelos chamados “comandos”.

Cresce, cada vez mais, a consciência de que as greves por tempo indeterminado, quase sempre muito prolongadas, são tão nocivas à universidade pública quanto as medidas autoritárias e erráticas do governo. Quebrando o ritmo do semestre letivo, dispersando e atomizando professores e estudantes, desmobilizando a instituição, fragmentando o trabalho acadêmico, seus eventuais ganhos políticos e sindicais não estariam compensando as perdas e os estragos que vêm causando ao ensino e à pesquisa de qualidade que, como se sabe, são basicamente efetuados nas universidades públicas.

É verdade: muitos professores identificam-se como “trabalhadores da educação”, recriam a universidade como se fora uma fábrica, e imaginam ser possível recorrer à greve, uma forma de luta clássica dos operários fabris. O mimetismo, porém, não se sustenta porque, entre muitas outras, há três diferenças óbvias: primo, a universidade pública, como diz o nome, presta um serviço público – não produz lucros privados; secundo, e em consequência, o principal prejudicado com elas não são patrões privados, mas o distinto público, no caso, os alunos da graduação e, por extensão, os próprios professores, embora estes não sejam os mais penalizados, porque continuam suas pesquisas, e a preparação de artigos e livros, além de continuar recebendo os salários, o que é, ou deveria ser, nomínimo, constrangedor. Tertio, e finalmente, cumpre dizer que o prejuízo causado pelas greves nas universidades é irrecuperável, pois as “reposições de aulas”, ao contrário de um produto que deixou de ser fabricado durante uma greve operária, nunca chegam a “repor” as que deixaram de ser dadas. Aulas não são produtos materiais, como, por exemplo, automóveis, ou pregos, como sabem professores, estudantes e qualquer pessoa comum. A “reposição” de um curso quebrado ao meio não é mais do que um remendo, ou um arremedo.

Sempre se argumenta que a greve chama a atenção das pessoas para a “crise da universidade”. Embora isto às vezes ocorra, como no caso da última greve, é de se indagar se outras formas de luta – como manifestos e manifestações, em recinto fechado e, no limite, nas ruas – não seriam muito mais eficazes para a sensibilização da sociedade e até como pressão sobre o governo e o poder legislativo.

O grave, no entanto, é que no “vácuo” destas greves prolongadas, e a palavra é apropriada porque as universidades ficam praticamente “vazias” durante as mesmas, dominam a cena assembleias centralizadas, reunindo algumas dezenas de professores que passam a “falar” e a “decidir” pela comunidade acadêmica. Em reuniões que se estendem por horas a fio, não precedidas por nenhum tipo de instância de base (departamentos e institutos), sem nenhum controle, as assembleias só dividem o seu “reinado” com uma outra instituição, ainda mais singular – os “comandos”.

Franqueados a professores não eleitos por quem quer que seja, frequentemente nem mesmo pelas assembleias, os “comandos”, e aqui a linguagem militar não é casual, substituem-se aos órgãos legítimos e legais da universidade (do conselho universitário às chefias departamentais) que, de forma mais ou menos automática, lamentavelmente se curvam frente a estas “entidades” que passam a “comandar” a vida acadêmica, “autorizando” ou “interditando” qualquer tipo de atividade. O maravilhoso é que sem o “certificado” de “atividade de greve”, que só o “comando” pode emitir, nada se pode fazer nas universidades, a não ser à custa de sofrer acusações que podem ir das mais “gentis” (capitulacionista e neoliberal), até verdadeiras agressões verbais (traidor, covarde e fura-greve).

Frente a estes estranhos fenômenos, a comunidade acadêmica precisa insurgir-se. Recuperando, pelas suas bases reais – os departamentos e os institutos –, o controle da situação. Limitando o “poder” das assembleias centralizadas. Não reconhecendo e não se submetendo a estes “comandos” autonomeados, mais próprios para casernas do que para universidades, e elegendo, democraticamente, conselhos ou coordenações para conduzir suas lutas sindicais e políticas.

Assim fazendo, a comunidade acadêmica estará emancipando-se de tradições autoritárias e construindo uma outra legitimidade.