A cicuta que matou Sócrates

*Por Alex Degan

O exemplo é muito conhecido e de tão citado acabou surrado e caricato: os políticos
liberais, nutridos pela consciência burguesa, fomentaram o crescimento do nazismo durante a
República de Weimar. O historiador francês Johann Chapoutot, em seu brilhante livro “Livres
para obedecer”, foi além, demonstrando cabalmente a parruda conexão entre o nazismo e
algumas ideias contemporâneas que alimentam teorias da gestão empresarial, analisando com
lupa a obra de Reinhard Höhn (1904-2000), general hitlerista que se consagrou no pós-guerra
como jurista dedicado à Administração. Apesar do uso pouco zeloso que tal vinculação
encontra na argumentação política atual, é preciso levar o exemplo histórico em altíssima
consideração. Urge aprender com e na História, não emulando uma inocente compreensão
ciceroniana da “historia magistra vitae”, mas sabendo dialogar com os acontecimentos do
passado e as expectativas de futuro para fertilizar nossa compreensão do presente.

No caso brasileiro, por exemplo, não podemos nos esquecer dos tristes
acontecimentos que culminaram com o impedimento da presidenta Dilma Rousseff e a
derrocada democrática que viabilizou Jair Bolsonaro. Complexo e multicausal, neste processo
também figurou um jogo político e retórico que retroalimentou grupos extremados de
variadas plumagens de direita e esquerda. Na parte que nos cabe neste latifúndio, é muita
desonestidade intelectual não reconhecer que nas duras e longas greves de 2012 e 2015
também operaram uma consciente ação de desestabilização de um governo combalido,
especialmente na de 2015. Os pífios resultados alcançados deveriam ter dilatado as
referências em nossa cultura política e ensinado algo. Infelizmente, parece que não. É custoso
revisitar as práticas que ainda investem em um dirigismo vanguardista que trata a diversa
categoria docente como infantilizada e incapaz de compreender a sua realidade ou o
cabeçalho de uma cédula. É nauseante entrar em uma assembleia e perceber que concepções
contrárias às análises majoritárias são recebidas com vaias e ironias, tornado o ambiente
pouquíssimo convidativo ao exercício do contraditório. É desalentador entender que
perdemos a capacidade de construir consensos, excitados pela necessidade de termos razão e
incitados pela lógica da lacração própria das redes sociais. As assembleias, que desde a Grécia
Antiga comportavam elementos de exibição retórica, estão praticamente reduzidas à miséria
performática. E só.

O movimento paredista de 2024 na UFSC começou muito mal e, provavelmente, vai
terminar ainda pior. Os lados que antagonizam na condução da greve se esforçam em nos
envergonhar, investindo pesado nos dissensos e desprezando o muito que nos aproxima. E
como vovó já dizia, “em casa onde falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão”. O
deserto de lideranças é a regra e a explosiva falta de civilidade não está confinada apenas aos
smartphones, extrapolando o virtual para a degradação na empatia. Sobretudo, esquecemos
que diálogo não é ação simplória e intuitiva, mas uma trajetória trabalhosa que pressupõem
algumas regras mínimas como a comunicação não violenta, o abandono da ironia e,
principalmente, o entendimento fino de que é com o divergente que procuramos encontrar
uma forma de sentido. Neste campo, além de ouvir com o mínimo de aceitação, temos que
cultivar a sabedoria da paciência e de se silenciar para compreender. Assim, e apenas assim,
podemos obstruir o impulso egocêntrico de fazer prevalecer nosso ponto de vista particular e
possibilitar a dilatação da compreensão mais generosa para com reflexões distintas.

Em 2019, dentro do depressivo e repressivo contexto bolsonarista, conseguimos de
fato mobilizar amplos apoios na sociedade brasileira e promover protestos e paralisações
organizadas em mais de duas centenas de cidades. Se a sangria do MEC não foi de todo
contida, passamos na ocasião um recado claro que possibilitou a primeira grande manifestação
contra o Governo Bolsonaro e sepultou o ultimato fatal reunido no programa “Future-se”.
Hoje, apontar estas alternativas, como paralisações em dias específicos, é motivo para receber
o carimbo de pelego ordinário e inocente besta. Tal territorialismo ansioso pelo acertamento
vulgariza qualquer leitura da realidade em prol do proselitismo autoritário. Pouco importa se a
greve esvaziou a universidade em um momento de retomada e paralisou os mesmos centros
de sempre. Pouco importa se a nossa capacidade isolada de sensibilizar o Governo Federal é
limitadíssima ou quase inócua. Pouco importa se nos comunicamos extremamente mal com a
sociedade como um todo, minimizando uma operação essencial dentro do mundo das redes e
das desinformações. Não somos ousados e nem criativos nos enfrentamentos para além das
palavras de ordem endógenas e as greves por tempo indeterminado. É mais fácil, já que a
culpa pelos nossos fracassos sempre se encontra exclusivamente nos outros e nunca dentro
das nossas misérias particulares. Assim, aqui na UFSC continuamos presos no loop infinito do
rompimento da APUFSC com o ANDES e indiferentes aos pleitos da categoria, que se renovou
enormemente desde o divórcio. Aparentemente há dentro da nossa universidade uma enorme
preguiça de refletir sobre os seus limites, onde insistimos em falar muito e ouvir pouco. E isto
em ambos os lados da mesa de negociação.

Sinal dos tempos: o site da BBC News Mundo, em 19 de Maio de 2024, publicou uma
matéria intitulada “A onda de agressão a professores no Mundo”. Apresentando dados
alarmantes oriundos de representações sindicais de docentes da Educação Básica no Brasil,
Coreia do Sul, Inglaterra, Colômbia, Espanha e Chile, a reportagem testemunha um
crescimento exponencial de agressões verbais e físicas protagonizadas por alunos, pais e
autoridades. Em 2019, o néscio que comandou o MEC afirmou que as universidades federais
eram locais de “balbúrdia” e “cracolândia”. Desde 2015 o historiador Fernando Penna,
docente na UFF, estuda a infame e desonesta organização “Escola Sem Partido”, analisando
seus anteprojetos, textos e postagens. Sua investigação revelou um esforço bem coordenado
de demonização da categoria docente, comparando o nosso nobre ofício com crimes abjetos.
Se é verdade que a agressividade contra o saber e contra os seus propagadores pode ser
encontrada em muitos períodos históricos – Sócrates foi sentenciado, em 399 a. C., a beber
amarga cicuta por ter “corrompido” a juventude ateniense -, o fortalecimento contemporâneo
desta política do ódio é matéria para grande preocupação.

Lamentavelmente, hoje não parece ser apenas os “outros” os que nos atiram pedras.
Como é possível observar na UFSC, dentro do péssimo ambiente que frutificou entre nós,
cravamos nossos dentes em nossa própria carne com cegueira raivosa, e tamanha autofagia se
dá dentro dos grupos progressistas. A política universitária e sindical permanece emparedada
dentro dos círculos dos afetos, com gritos, socos na mesa e molecagens lidas como corajosas
manifestações carregadas de simbolismos. E são mesmo. Talvez a leitura do Vladimir Safatle
devesse estar pari passu com a do velho Weber, recuperando que na vivacidade da política
também se espera um pouquinho de racionalidade. Resta-nos agora trabalhar para restituir o
mínimo de respeito e recompor esforços dentro de nossa categoria plural e complexa, pois a
cadela do Fascismo está sempre no cio, como disse Brecht. E ela está excitadíssima! Os
ressentimentos e as picuinhas não podem nos cegar diante dos imensos desafios presentes e
futuros, ou não teremos nem mesmo os derrotados 221 votos que procuraram absolver
Sócrates.

*Alex Degan é professor de História da Ásia do Departamento de História/CFH