A natureza da crise da universidade

*Por Fábio Lopes da Silva

A universidade vive uma crise de proporções bíblicas. Até aí, morreu o Neves:  qualquer membro da comunidade acadêmica consegue perceber que está metido em uma encrenca considerável. Os problemas e as divisões entre nós começam quando se trata de compreender a natureza e a extensão da crise. 

O senso comum tende a reduzi-la aos aspectos materiais mais evidentes: o estado de conservação dos prédios, o salário dos docentes e TAEs, a terceirização crescente dos serviços, etc. E o nosso impulso quase inevitável é, ato contínuo, explicar esse estado de coisas pela falta de recursos federais. Daí em diante, lulistas e criptolulistas passam a atribuir esse desfinanciamento da universidade ao que chamam de golpe e seus desdobramentos. Já a turma mais à direita se regozija com o fato de que, instalado no poder há dois anos, Lula não recompôs o orçamento das instituições federais de ensino superior. “Faz o L”, repetem essas pessoas, sarcasticamente.

Ninguém está certo nessa história. A questão de fundo não é quem ferrou a universidade financeiramente – até porque direita e esquerda no poder fizeram e estão fazendo isso –, mas por que a universidade está sendo ferrada.

Penso que, para responder a essa pergunta, um bom começo é me socorrer da história recente do país e da história das universidades. 

Até a década de 1930, o Brasil era um fazendão. A economia nacional se baseava na exportação do café, do açúcar e de outros produtos primários. O índice de analfabetismo era enorme, e a maioria da população vivia no campo. Foi então que o país passou a conhecer um ciclo impressionante de desenvolvimento. Indústrias surgiram aos montes, metrópoles cresceram, atraindo levas intermináveis de imigrantes vindos das zonas rurais. Pelas cinco décadas seguintes, fomos quase o que a China representa hoje no mundo, com índice médio de crescimento econômico anual girando em torno do 6%. 

O Brasil se afirmava como um case de sucesso internacional. Só que, a partir dos anos 1980, por razões complexas que não vale a pena mencionar neste breve artigo, a coisa degringolou. De lá pra cá, a taxa média de crescimento despencou para medíocres 2% a.a. Se se levar em conta que a população brasileira aumenta anualmente a um ritmo de algo em torno de 1,5%, o que temos, na prática é uma estagnação econômica que já dura quatro décadas. 

Boa parte das universidades federais – inclusive a UFSC, que é de 1960 – nasceu justamente no período em que experimentamos o mais exuberante ciclo de desenvolvimento do país. E se elas surgiram naquele momento, foi justamente para fornecer os técnicos, cientistas e outros profissionais capazes de atender às exigências e metas do projeto brasileiro de crescimento. Ao formarem as elites dirigentes e tecnicamente gabaritadas do Brasil, as universidades nadavam como um peixe na água em nosso ambiente político, econômico e social. Elas eram perfeitamente funcionais. Tinham um lugar preciso no que os marxistas chamam de modo de produção.

A partir dos anos 1980, com o declínio de nosso modelo de desenvolvimento, esse lugar confortável que a instituição ocupava começou a ser perdido. Não foi algo que imediatamente percebemos, porque, embora o país estivesse mergulhado em uma crise de longo prazo, ainda tinha lenha para queimar. As indústrias e as demandas tecnológicas não desapareceram do dia para noite, mas em um processo lento, de modo que, por um bom tempo, ainda requisitavam os quadros que só a universidade era capaz de formar.

Mas os anos foram se passando, e a crise brasileira permaneceu sem solução. Havia no meio disso tudo os chamados voos de galinha, que pareciam indicar uma saída para o nosso drama, mas acabavam por dar com os burros n’água. O ciclo petista no início deste século foi talvez o mais longo e enganoso surto não sustentável de crescimento (que, não por acaso, terminou em uma acachapante recessão). A propósito, foi justamente naquela época que o sistema federal de ensino superior voltou a se expandir, com o surgimento de novas universidades e a atribuição de orçamentos minimamente consistentes para as universidades já existentes. Pena que tudo não passava de uma repetição como farsa do estupendo momento que o país experimentou entre 1930 e 1980.

Eis-nos agora diante de um Brasil mergulhado em uma condição cada vez mais dependente da exportação de commodities como a soja, o minério, o petróleo bruto, etc. A indústria brasileira esfacelou-se. O rentismo remunera muito mais do que qualquer investimento na economia real, de modo que os donos dos recursos preferem a renda fixa ou outros ativos a arriscar o pescoço  expandindo negócios. Em que pesem os arroubos retóricos dos governantes de plantão, estamos presos em uma cilada geopolítica e geoeconômica em cujos termos o que está reservado para nós é um lugar subalterno: vendemos produtos não beneficiados, compramos alta tecnologia e itens plenos de valor agregado.  

Encaremos os fatos: nestas circunstâncias, a universidade tal como a conhecemos perde quase completamente a função. Se já não se trata de formar quadros qualificados para fomentar o desenvolvimento – já que não há desenvolvimento –, o que resta para os universitários? O problema de ser univerisitários é que não se pode pedir ajuda aos universitários…

Ou as universidades brasileiras se engajam em uma mudança do modelo econômico do país (e, no limite, lideram essa mudança), ou estamos perdidos. 

A primavera petista do começo do século foi o que foi. Um soluço de crescimento condenado ao fracasso. O presidente que agora vemos no poder é bem menos ambicioso, bem mais acomodado, bem menos delirante, bem menos mentiroso, bem mais conservador do que o de seus primeiros dois mandatos. Está claro que essa mudança de modelo jamais partirá de seu governo. E a breve vida mansa que ele deu às universidades naquele primeiro ciclo não se repetirá no ciclo que por ora estamos testemunhando. Quem disso duvida só precisa considerar o volume de recursos que ele depositou nos institutos federais. É nestes – com suas conexões com o agronegócio e outros setores ligados ao modelo econômico vigente – que ele aposta suas fichas, não em nós.

Como sair dessa encalacrada? Há uma greve em curso, mas não deposito grandes esperanças nela. Claro que um movimento como esse sempre pode surpreender, mas o mais provável, creio eu, é que aconteça o seguinte. O governo vai fazer uma proposta que antecipa uma parte dos valores prometidos para 2025, e nós vamos aceitar. Ora, esses percentuais são razoáveis para os docentes, mas péssimos para os TAEs, cuja base salarial é grotescamente menor do que a nossa. Em vez de atenuar a crise da universidade, o reajuste vai agravá-la, já que, com um salário melhorzinho no bolso, os professores continuarão a fazer o que já fazem hoje, a saber, alienar-se dos problemas de sua universidade em ruínas.  Seremos trabalhadores razoavelmente bem pagos em ambientes apodrecidos (nos quais permanecemos pelo menor tempo possível), com colegas técnicos-administrativos proletarizados e sem nenhuma solução para o descompasso radical entre a universidade e o modelo econômico vigente.

Vislumbro um único caminho possível para fora do labirinto: aquele que começa pequeno, modestamente, por uma tomada de consciência que ao menos estabeleça algumas distinções mínimas entre os problemas estruturais da universidade e os que, por outro lado, somos imediatamente capazes de resolver. Sim, porque, embora tenhamos a sensação de que todo o perrengue por que passamos decorre de causas externas, o fato é que uma parte não desprezível de nossa crise tem raízes locais, ao alcance de nossa mão. O que proponho, nesse sentido, é que limpemos a área, de modo a tirar de nossa frente os problemas que conseguimos resolver e deixar-nos apenas diante daqueles cuja solução é bem mais difícil. O que proponho, além disso, é instalar na universidade uma dinâmica política em que, tendo conseguido resolver certos problemas, reúnamos forças para partir para tarefas mais custosas. Acredito sinceramente que, na vida política e social, fazer coisas que estão ao nosso alcance não é gasto de energia mas acumulação dela. Quem realiza bem uma tarefa se sente mais confiante e fortalecido para projetos maiores.

Mas não fiquemos em raciocínios abstratos. Deixem-me tentar ilustrar o que estou dizendo com um exemplo bem concreto.

Pensem no prédio A do CCE, o chamado Básico. É o mais antigo da universidade, com 63 anos de existência. Sua aparência é deploravel, e quem o frequenta não pode deixar de notar que ele está em péssimas condições de manutenção. A sensação é a de que, sem muito dinheiro – um dinheiro que não está disponível –, ele não tem salvação.

Mas a verdade é não é bem assim. Recuperar sua fachada com pintura externa e outros reparos é caríssimo.  Não vai rolar. Em compensação, boa parte dos demais problemas que o acossam é de solução simples e barata. A mãe de todos os problemas é a impermeabilização da cobertura predial, para qual a universidade tem empresa contratada. A deterioração da estrutura e dos ambientes internos decorre sobretudo disso. Vencida essa etapa, desparecem as infiltrações, as paredes mofadas, as salas interditadas. 

Outros serviços de execução super simples e não dispendiosa deixariam a vida dos usuários imediatamente muito mais confortável: troca de válvulas de banheiro, conserto de bebedouros (cujos defeitos demandam intervenções triviais), limpeza e reparo de ar-condicionado. 

O que falta, nesse caso, é uma reitoria que compreenda que, em momentos de crise, é preciso definir prioridades – e as prioridades obviamente dizem respeito ao atendimento de espaços de sala de aula.

Mas o que vemos é o contrário disso. No caso das coberturas prediais, em uma manobra à vista de todos, a reitoria justamente começou pelo prédio da Administração Central, na Praça da Cidadania. Por meses a fio, vimos operários trabalhando lá, ao passo que ambientes destinados às atividades-fim padeciam sob goteiras e infiltrações. 

O mesmo pode ser dito dos outros serviços necessários ao funcionamento minimamente salubre das atividades de ensino. Nós, diretores de unidades, que estamos o tempo todo em contato com a reitoria e seus burocratas, percebemos claramente que um grande número de pró-reitores, secretários e outros colegas em postos chaves da Administração não entende a natureza da instituição em que trabalham e a centralidade sagrada das atividades-fim, principalmente o ensino de graduação, sobre todas as outras coisas.

Simplesmente não lhes entra na cabeça que os contratos a ser celebrados devem ser os diretamente ligados à melhoria dos ambiente de ensino, os serviços a ser prestados devem se dirigir a esse mesmo fim, os recursos disponíveis devem ser religiosamente gastos nessa mesma direção – e o resto que espere.

Compreender quais são as nossas proridades; compreender que nem tudo o que diz respeito a elas é atualmente inexequível por falta de recursos; compreender que há responsáveis locais pela não provimento desses serviços que poderiam ser feitos – tudo isso é simples e só depende de nós. Tudo isso significa resgatar os valores elementares da instituição e, portanto, fortalecê-la. Tudo isso hoje é nada menos que revolucionário.    

*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC