*Por Fábio Lopes da Silva
Na semana passada, escrevi um artigo sobre o caos ideológico e a barafunda administrativa a que a atual Reitoria está nos condenando. Minha manifestação não se fez em resposta a nenhum acontecimento em particular. O que me movia era algo mais profundo, arraigado, orgânico: o cansaço, o desgosto e a perplexidade diante daquilo que, não sem uma ponta de ironia, se pode chamar de conjunto da obra. A ideia era tentar elaborar meu luto a fim de encontrar forças para ajudar a frear o trem desgovernado em que estamos embarcados. Meus dedos haviam corrido sobre o teclado ao sabor da certeza de que é absolutamente impossível para mim suportar mais dois anos de tantos descalabros e maluquices.
Houve quem se espantasse com o tom que escolhi. A universidade está sempre pronta a criticar os outros, mas tem cada vez mais dificuldade de olhar para dentro de si com o mesmo rigor, o mesmo critério, o mesmo desassombro. Qualquer coisa que se diga sobre os nossos próprios pares e as autoridades que trabalham ao redor de nós soa excessiva. Quando se trata de examinar os escaninhos da burocracia universitária e seus abismos, a complacência é a regra. O fato, contudo, é que um punhado de dias bastou para mostrar que, se errei na mão em meu texto anterior, não foi por eu ter sido duro demais mas pelo exato contrário disso: uma suavidade exagerada com quem não merece nenhuma condescendência.
Digo isso tendo em conta a recentíssima sessão do Conselho Universitário que rejeitou a atribuição do título de professor emérito ao colega Rodolfo Pinto da Luz, do Departamento de Direito.
Passei boa parte de meus trinta anos de docência e de participação ativa na vida política da UFSC divergindo do Prof. Rodolfo e me opondo a seus projetos e visões de mundo. Quem, aliás, se choca com a maneira como tenho me referido ao reitorado do Prof. Irineu certamente não me viu ao tempo em que – sob o sol de uma instituição muito menos infantilizada em seus costumes e práticas do que a atual – tínhamos candentes (mas sempre leais) embates em fóruns como o CUn e o sindicato.
Nada disso jamais me impediu de reconhecer a grandeza do meu adversário e de, no limite, não apenas respeitá-lo mas autenticamente amá-lo, como convém a adultos da espécie quando se enfrentam por motivos nobres. Nada disso, a rigor, me impediu de reconhecer no Prof. Rodolfo a figura mais importante na história da UFSC. E, na verdade, mesmo que, por algum tipo de cegueira ou vaidade, eu não quisesse admitir a enormidade de sua biografia e de sua obra, os fatos continuariam a falar por eles mesmos: além de ter sido três vezes reitor da UFSC, o Prof. Rodolfo foi pró-reitor, secretário municipal de Educação, secretário de Ensino Superior do MEC, etc.
E não é que, apesar de seu estupendo inventário de conquistas e feitos, a proposição do título de professor emérito a ele foi contestada por membros discentes do Conselho Universitário? Tudo bem, representantes estudantis têm um longo histórico de atos que geram muito mais calor do que luz naquela Casa. Dê-se àqueles jovens o benefício da imaturidade e do despreparo próprio dos verdes anos. O problema é que – no ambiente ideologicamente viscoso da universidade contemporânea, no qual se politiza tudo, exceto o que realmente importa – esse histrionismo desde sempre praticado por conselheiros discentes agora é levado a sério (ou “acolhido”, para usar um dos tantos horrendos jargões de nosso tempo). Na esteira das críticas juvenis à proposição da honraria, o diretor do CFH pediu vistas ao processo, o que o obrigava a produzir um parecer alternativo ao parecer originalmente apreciado pelo Conselho (que corretamente indicava, sem delongas, a concessão do título). Como reza o regimento do CUn, a discussão foi suspensa e remetida a data posterior, quando o parecer de vistas estivesse pronto.
A reunião que voltou a tratar do tema aconteceu na última terça-feira – e foi um show de horrores. O parecer de vistas condicionava a atribuição do título a um pedido de desculpas do Conselho Universitário pelo fato de, em 1969, o então estudante Rodolfo Pinto da Luz ter sido eleito presidente do DCE contra uma chapa que teve três de seus membros cassados pelo CUn graças a um dispositivo legal que recorreu a informações obtidas pelo SNI (fato revelado pela Comissão da Verdade instalada há alguns anos na UFSC).
Em que pesem todas as tentativas de o autor do parecer de vistas argumentar que isso não significava uma censura ao Prof. Rodolfo, é claro que era precisamente esse o caso. Se se diz que uma pessoa é beneficiária de um ato que exige um pedido de desculpas, é óbvio que se está questionando severamente a trajetória dessa pessoa.
Ora, a concessão de uma honraria é, por definição, incondicionada. Não se pode querer que alguém seja reconhecido por seus serviços ao mesmo tempo que se aponta uma mácula grave em sua biografia. Não faz sentido dar a um docente um título que este não reivindicou ao mesmo tempo que se diz que, antes disso, um pedido de perdão é necessário. Não se convida alguém para uma festa cobrando-lhe ingresso. Assim é que, na prática, a despeito dos esforços (obviamente vazios) de não fazer do pedido de desculpas um ato de repúdio à conduta pregressa do Prof. Rodolfo, a questão que estava sendo julgada era simples e clara: merece ele receber o título proposto? Há muitas coisas complexas e nuançadas neste mundo – por exemplo, a biografia de qualquer pessoa, inclusive, é claro, a do Prof. Rodolfo. Mas nem tudo na vida é dialético. E sobretudo há momentos em nossas breve passagem por este vale de lágrimas em que nem toda dialética nos exime de ter que responder de maneira direta à mais objetiva das perguntas: sim ou não? E era isso o que, em que pesem os desmentidos de seus signatário, o parecer de vistas impunha a nós fazer naquela malfadada reunião.
Uma parte dos conselheiros – eu, por exemplo – estava desde sempre convencida de que o Prof. Rodolfo, como indicava o parecer originalmente proposto, mais do que merecia a honraria, period. Outra parte – os estudantes – queria a cabeça do Prof. Rodolfo em uma bandeja. Uma terceira parte dos conselheiros, assim como o relator do parecer de vistas, insistiu no impossível: não responder imediatamente nem sim nem não, mas criar uma espécie de limbo em que, em um passe de mágica, um pedido de desculpas anula a materialidade de um fato que essas mesmas pessoas reputam grave a ponto de interditar a atribuição de uma honraria a alguém. Era, pois, evidente que a estes últimos conselheiros cabia rejeitar a atribuição do título, coisa que, no entanto, não tinham disposição para fazer.
Cumpre esclarecer que o reitor não se enquadrava em nenhum desses grupos. Qual era a posição dele? Nenhuma, para variar. Não sei se por pusilanimidade, não sei se por interesses eleitorais ou se por pura falta do que dizer, o presidente do Conselho Universitário permaneceu absolutamente calado diante de um debate que, por óbvio, reclamava a sua arbitragem, tanto mais quando se considera que o colega que estava na berlinda ocupou a cadeira em que o atual reitor está sentado e, desse lugar, o nomeou seguidamente para cargos de confiança. Haja sangue frio – ou talvez outros tipos sanguíneos – para não defender alguém a quem se deve tanto.
A esse silêncio perturbador do reitor, devem-se acrescentar outras atitudes incompreensíveis dele e de seu gabinete: a desastrosa falta de cabalagem devida dos votos antes de a reunião acontecer (o que evitaria submeter o Prof. Rodolfo à humilhação por que ele teve que passar) e a ainda mais desastrosa condução da reunião, que começou com o reitor a presidindo on-line de sua própria casa (isso depois de ser defenestrado de sua sala por TAEs em greve, em uma demonstração constrangedora da anarquia e da falta de comando reinantes) e terminou com ele sendo incapaz de fazer operações matemáticas elementares na contagem dos votos efetivamente dados ao parecer de vistas. Não vou entrar em detalhes sobre esses últimos pontos, uma vez que, em artigo recentemente publicado neste mesmo espaço, os Profs. Fabrício Neves e Rodrigo Moretti já fizeram isso.
Seja como for, o reitor não foi o único a se omitir diante de tema diante do qual, por óbvio, ele tinha a incontornável obrigação moral e institucional de se pronunciar. Também a vice-reitora não se pronunciou sobre o caso. Só que, no caso dela, isso se deu em decorrência do fato de, como já se tornou regra em qualquer ocasião em que o assunto tratado não diga respeito às suas afinidades eletivas, esta não estava sequer presente na sessão.
Como se vê, haveria muitas coisas a lamentar e criticar na tragicomédia de erros que foi essa reunião do CUn: o ressentimento e a sede de vingança que movem a atuação política dos estudantes; a imensa dificuldade de boa parte dos conselheiros de entender que há ocasiões em que é preciso simplesmente decidir entre duas posições, sem tergiversação; o uso não meditado e comedido dos relatórios da Comissões da Verdade; as tentativas de, na contramão da lógica elementar, propor conciliações impossíveis; o péssimo trabalho de preparação da reunião pelo gabinete do reitor; a inabilidade do nosso dirigente máximo na condução dos debates, etc.
Atenho-me, entretanto, ao problema que me parece ter repercussões mais imediatas sobre nós: o despreparo completo de nosso reitor e da vice. No caso do primeiro, a prova definitiva disso foi seu silêncio inominável diante da grave injustiça que estava sendo perpetrada diante de seus olhos no CUn; no caso da segunda, a mesma reunião do Conselho confirmou o que já está ficando claro para todos: ela nem mesmo pretende fingir que se interessa pelo debate universitário, nem que seja para fazer o papel de secretário dos trabalhos e de figurante que o reitor desempenha.
É profundamente penoso para mim admitir isso, mas a verdade é que nenhum dos dois tem condições de ocupar as altas posições em que estão. Em tempo: não me tomem por arrogante. Eu tampouco reúno essas condições, mas ao menos tenho a graça de ter espelho em casa e fazer bom uso dele.
No mais, resta, sim, um pedido de desculpas, só que não aquele que o parecer de vistas sugeria mas um outro. Perdão, Prof. Rodolfo. Mil vezes perdão.