*Por Alex Degan e Michele Monguilhott
Começou em Brasília, no dia 22 de Abril, o 20º. Acampamento Terra Livre, a maior mobilização indígena do país. Motivos para tamanha articulação não faltam: a invasão mortífera de garimpeiros nas terras Yanomami, a letargia na demarcação de novos territórios, a formação de milícias rurais que operam assassinatos de lideranças e o Marco Temporal, excrecência histórica e jurídica aprovada pela atual legislatura que institucionaliza o racismo, a ignorância e a violência concreta e simbólica contra os povos originários. Tamanhas agressões são ainda coroadas com um genuíno comportamento anticientífico que grassou não apenas nas fileiras dos inimigos de vacinas, mas que cresce exponencialmente entre os sujeitos que desprezam pesquisas antropológicas, sociológicas, arqueológicas e históricas referendadas com todas as mais elevadas credenciais científicas nacionais e internacionais.
Por outro lado, é inegável que avanços precisam ser comemorados, defendidos e ampliados. A criação do Ministério dos Povos Indígenas, capitaneado por Sônia Guajajara, a presidência da FUNAI ocupada por Joenia Wapichana e a eleição de Ailton Krenak como o mais novo membro da Academia Brasileira de Letras são acontecimentos concretos e carregados de simbolismos importantes que devem nos engajar em outras lutas compatíveis. O pedido de desculpas feito pelo Estado brasileiro aos indígenas Guarani Kaiowá e Krenak, reconhecendo as perseguições, torturas e o morticínio ocorridos na ditadura militar, é a sinalização de um longo processo de reparação que se inicia e que deve contar com o nosso forte apoio.
Tal contexto vívido e ambíguo também afetou a UFSC. Recentemente, no dia 18 de Março de 2024, foi inaugurado o Alojamento Estudantil Indígena, concretizando os esforços e os sonhos dos estudantes da Ocupação Maloca. No começo de Abril de 2024, dentro da programação do Abril Indígena, foram comemorados os 25 anos de trabalho do Laboratório de História Indígena (Departamento de História/CFH), lócus responsável pela produção de materiais pedagógicos, pela escrita de artigos científicos, pelo auxílio na construção de políticas públicas e pelo fomento de 30 orientações de iniciação científica, 8 trabalhos de conclusão de curso, 11 Dissertações de Mestrado e 13 Teses de Doutorado. Em 2023 nossa universidade admitiu em seu quadro docente a Profa. Dra. Adriana Aparecida Belino Padilha de Biazi (Departamento de História/CFH), do povo Kaingang e a primeira professora indígena da UFSC.
No final do mesmo ano o Departamento de Antropologia/CFH abriu o primeiro edital de concurso público para candidatos exclusivamente indígenas, com a seleção ocorrendo e um profissional aprovado aguardando a homologação do resultado. Estes são avanços incontestes, apesar de reconhecermos que muito ainda deve ser feito quando observamos os direitos dos povos indígenas.
Entre os discentes, a participação também apresenta aumento, resultado direto do Programa de Ações Afirmativas e de políticas públicas de inclusão. Existe hoje mais de 160 alunos de 17 povos indígenas frequentando 55 graduações, número que precisa e deve crescer. Dentre elas, a Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica (LII) merece destaque pela sua importância e singularidade. O curso, resultado direto da luta de lideranças e professores, está direcionado aos três povos indígenas presentes na parte meridional do bioma Mata Atlântica: os Guarani (ES, RJ, SP, PR, SC, RS e MS), os Laklãnõ-Xokleng (SC) e os Kaingang (SP, PR, SC e RS). A LII se alicerça em uma proposta de educação preocupada com a formação de professores-pesquisadores aptos a lecionarem nas Escolas Indígenas culturalmente diferenciadas, adotando a Pedagogia da Alternância que articula tempos de pesquisa, trabalho e ensino nas Comunidades e na Universidade. Estas características exigem docentes com formações e concursos específicos para atender seus desafios pedagógicos particulares nas ações multilíngues e comunitárias.
É meritório ressaltar que, apesar do pouco tempo de existência e dos problemas estruturais enfrentados, a LII se consolidou como um curso de grande sucesso e de referência para o país. Seus egressos atuam como professores, pesquisadores e lideranças dentro e fora de suas comunidades, com alguns trabalhando dentro do Governo Federal, e sua procura permanece plenamente satisfatória, com um índice de evasão entre os menores nas graduações da UFSC. Destacamos também que, em recente avaliação externa conduzida pelo INEP, a LII recebeu a nota máxima (5) de aferição.
Apesar de tantos atributos altamente positivos, a LII ainda não possui um quadro de professores efetivos para ofertar as disciplinas de todas as línguas e culturas indígenas, uma fragilidade preocupante. Apenas a Profa. Adriana Kaingang foi contratada para lecionar exclusivamente na graduação, o que gera uma dependência excessiva de docentes substitutos e temporários para ensinarem conteúdos fundamentais, principalmente das Línguas Guarani e Laklãnõ-Xokleng. A instabilidade dentro do corpo docente prejudica a execução dos planos pedagógicos e a consolidação de pesquisas na área. Trata-se de um equívoco acadêmico, administrativo e moral grave, o que exige nossa atenção comprometida.
Solicitamos que nossa comunidade reconheça a relevância da LII e nos ajude na sua defesa. Mesmo admitindo os esforços valorosos da PRAE, da PU e da PROAFE, temos que garantir efetivamente condições dignas de moradia e espaços de acolhimento para os discentes durante a etapa Tempo Universidade. O local atual, que funciona junto ao complexo da Prefeitura Universitária e que não deve ser confundido com o Alojamento Indígena recentemente entregue (este está voltado para os discentes matriculados nas outras graduações), não é adequado.
Também demandamos dois códigos de vagas para docentes, o que atenderia o mínimo de um professor responsável por cada Língua Indígena, respeitando aspectos culturais distintos, que influenciam também as práticas escolares e processos próprios de ensino-aprendizagem e metodologias próprias de cada povo. Com a publicação da Portaria Conjunta MGI/MEC No. 29, de 28 de Julho de 2023, revisando e ampliando o Banco de Professor-Equivalente do Magistério Superior das Universidades Federais vinculadas ao Ministério da Educação, a UFSC recebeu novas vagas. Essa alvissareira notícia reforça nossos compromissos e responsabilidades com a edificação de uma Universidade Pública Brasileira de excelência e mais consciente de seu lugar social. É a hora! Temos a oportunidade de consolidarmos em nossa instituição um polo inovador de produção de pesquisas e de formação de pessoas dedicadas aos Estudos Indígenas.
Assim, cientes de nossos compromissos institucionais e éticos na edificação de uma UFSC de excelência acadêmica, como também reforçando nossas responsabilidades no combate às desigualdades sociais e étnico-raciais que marcam nosso país, compreendemos que o fortalecimento da LII da UFSC enquadra-se como ação estratégica. Nosso curso, o único funcionando em uma instituição pública de ensino superior na Região Sul do Brasil, é uma oportunidade rara e mais uma contribuição generosa onde podemos aprender com os povos originários. Seremos pioneiros na formação de intelectuais e na pesquisa das línguas e culturas de três povos indígenas que compõem o mosaico brasileiro. Desta forma, reforçamos os pedidos por obras estruturais no alojamento destinado aos discentes da LII e a contratação de dois
professores efetivos para atuar na Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica.
*Alex Degan é professor do Departamento de História e diretor do CFH/UFSC
Michele Monguilhott é professora do Departamento de Geografia e vice-diretora do CFH/UFSC