*Por Fábio Lopes da Silva
Ainda outro dia, em um canal governista do Youtube chamado ICL Notícias, publicou-se um corte em que se comentava a agressividade da juíza Gabriela Hardt – agora na berlinda por obra do CNJ – no trato de Lula durante o julgamento do presidente em Curitiba. “Que arrogância dessa gente naquela época”, comentou o âncora. Ao que um convidado – o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay – respondeu na bucha: “Esse é o padrão do Poder Judiciário brasileiro, e é ainda muito pior com os mais pobres.
Na mosca. Em sua sanha de vingança, o âncora do ICL, no fundo, estava querendo dizer: “Como se pode fazer isso ao Lula?”. Já o advogado, com sutil elegância, o corrigiu: “Isso não pode acontecer a ninguém”.
O episódio revela como é difícil a compreensão do conceito de democracia e a construção efetiva dela, mesmo entre aqueles que se declaram progressistas. Isso vale até para ambientes que deveriam ser radicalmente reflexivos, como a Universidade.
Tome-se, por exemplo, o modo como a paixão e morte do Prof. Cancellier são normalmente contadas por nós aqui na UFSC. Exatamente como no caso do debate entre Kakay e o âncora do ICL, o subtexto de nossa narrativa é: “Isso não poderia jamais suceder ao reitor”, quando o óbvio seria reconhecer que o que houve com ele acontecia, acontece e continuará acontecendo com a imensa massa de presos, só que com níveis de violência e arbítrio muito piores do que os desferidos contra o Prof. Cancellier. O certo, enfim, seria dizer que aquilo que ocorreu com ele não pode suceder a ninguém. Mas o fato é que essa conclusão nunca se apresenta. A prova maior disso, não faltassem tantas outras, é que mesmo os sobreviventes daquele episódio – os demais professores e TAEs presos e submetidos às mesmas humilhações e descalabros que atingiram o Prof. Cancellier – nunca são lembrados. Não há jardins em homenagem a eles, não há uma única palavra dita em honra a seu padecimento nos constantes eventos em memória do reitor falecido. Quem disso duvida que se pergunte quantos entre os leitores deste artigo sabem coisas tão básicas sobre essas pessoas quanto, digamos, os nomes delas.
Outra provável violação ao princípio da democracia – isso no corpo de um procedimento que os proponentes e seus defensores certamente pensam ter sido feito justo para promover a equidade e a afirmação de direitos – acaba de se dar na UFSC. Refiro-me ao episódio da agora célebre beca branca permitida a uma formanda em função de injunções impostas por suas escolhas religiosas. Não vou aqui discutir o fato de que a medida atropela uma debate presente em todas as religiões, inclusive as afrodescendentes: o que gira em torno de decidir se a fé deve ser alardadeada ou vivida em recolhimento e circunspecção. Tampouco vou aqui discutir se, por parte da pessoa que solicitou a excepcionalidade, não caberia refletir se adiar a própria formatura para um semestre vindouro – quando a injunção religiosa sobre ela já não mais vigorasse – não é o tipo de (pequeno) sacrifício que, longe de significar o enfraquecimento de sua posição, estreitaria seu compromisso com os orixás.
Não vou aqui discutir o quanto a beca branca desafia a natureza laica das formaturas como evento de Estado, o simbolismo do branco nas vestes do reitor ou o preceito republicano da igualdade expresso no traje escuro para todos os formandos. Tudo isso são questões graves e importantes, mas neste texto o único ponto que quero realmente trazer à tona é uma pergunta bem mais elementar: se o requerente fosse alguém que praticasse uma profissão de fé menos afeita às políticas para minorias da Universidade – uma Testemunha de Jeová, por exemplo – haveria essa abertura de espírito e disponibilidade que as instâncias acadêmicas manifestaram em face de uma imposição do candomblé? Duvideodó. Ocorre que esse tratamento isonômico é o que o princípio democrático exige delas – e, como não é difícil antecipar, virá a, na prática, exigir em breve, quando um fiel de outra matriz religiosa pedir para ser contemplado em suas especificidades (não se diga, como se tem repetido por aí, que o caso da beca branca é idêntico ao da proibição, por motivos religiosos, do vestibular aos sábados, uma vez que, para começar, na realização do vestibular, ao Estado restam alternativas, como organizar, sem nenhum custo adicional, a prova nos seis dias restantes da semana, ao passo que o veto à beca branca continuaria a dar à proponente a chance de se formar – de beca preta – em cerimônia pública no futuro).
Querem mais um exemplo recente? Há cerca de vinte dias, recebi um Ofício Circular da Administração Central sobre consequências de obras de impermeabilização da cobertura do prédio principal da Reitoria. O documento confirma o que todos conseguíamos constatar a olho nu: enquanto as goteiras e infiltrações permaneciam sem nenhum tipo de intervenção em boa parte dos ambientes da UFSC, operários estão há meses trabalhando na recuperação do Reitoria I. Mas o pior é o que se diz em seguida no referido Ofício, a saber: “Cabe ressaltar que os servidores da Secretaria Geral dos Órgãos Deliberativos Centrais (SGODC/GR) foram realocados temporariamente, de modo a liberar o espaço para execução da reforma, informação disponível em https://conselhouniversitario.ufsc.br/.”
Em outras palavras, enquanto a uns é dado trabalhar (em atividades-meio, diga-se de passagem) em ambiente protegido, a outros – os que se dedicam a atividades-fim – cumpre esperar e, neste meio tempo, desviar-se da água que escorre ou respirar o ar infectado por mofo e outros bichos (em tempo: talvez haja uma explicação burocrática qualquer para essa precedência dada à Reitoria na reparo do – thanks, Virginia Woolf – “teto todo seu”, mas, se essa justificativa existe mesmo, nunca foi tornada pública, como seria o óbvio em uma situação que, do jeito que se apresenta atualmente, soa como um tapa na cara de quem sofre diariamente nas salas de aula em decorrência de coberturas prediais em frangalhos).
Não é a primeira vez que um privilégio como esse é concedido ao Povo Escolhido. TAEs da PRODEGESP foram autorizados a trabalhar em casa quando se viram em salas ameaçadas pelos problemas de cobertura do mesmo Reitoria I. TAEs da PROAD foram autorizados a não comparecer a seus locais de trabalho quando elevadores do Reitoria II estavam sem operar (ao passo que o mesmo jamais se deu quando elevadores no CFM e em outros lugares ficaram meses sem funcionar).
A lista não para por aí. Em artigos anteriores, já citei os casos escabrosos de dispendiosas viagens feitas por altos membros da Administração Central (de resultados bem pouco práticos, salvo melhor juízo), com direito a postagens cool nas redes sociais, enquanto o reitor repete por aí que não há dinheiro para a Universidade funcionar depois de outubro.
Assim vamos. O bolsonarismo é, para nós, uma Graça e nos fará falta se um dia desaparecer. Explico. Os aloprados que defendem as bandeiras de extrema-direita são tão grotescos em suas posições que nos fazem crer que, só por não sermos ogros completos, nos transformamos automaticamente em bravos defensores da causa democrática. Ledo engano, com implicações dramáticas para a vida social do país e da Universidade. Como costumo dizer a meu filho – estudante de Filosofia na UFSC –, ser bom dá trabalho. Ao que eu acrescentaria: compreender e praticar o Estado Democrático de Direito também.
*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC