Por Fábio Lopes da Silva*
Outro dia, uma passeata cruzou as áreas externas do CCE. Eram cerca de trinta estudantes. Nenhum cartaz, nenhuma palavra de ordem. Só uma batucada marcial desagradável. Vi que alguns deles tinham panfletos na mão. Curioso para saber a que causa o evento servia, pedi que me entregassem um daqueles papeizinhos (por alguma razão que me escapa, eles não os estavam distribuindo espontaneamente). O texto do panfleto era longo e enfadonho, mas basicamente tratava da deterioração da universidade. O que mais me chamou a atenção foi o fato de que, na hora do “vamuvê”, os signatários falavam em exigir providências do que, em magnífica perífrase, chamavam “instâncias competentes”.
Esse episódio me parece uma metáfora perfeita do estado da arte nos movimentos universitários. As pessoas não podem deixar de se dar conta do tamanho da crise por que passa a instituição, mas não sabem o que fazer com isso. E não sabem o que fazer com isso porque, em primeiro lugar, há muito tempo se demitiram da vida política e pública, internando-se em seus mundos privados e no que incorretamente temos chamado de redes sociais (que de redes ou de sociais não têm nada, sendo, antes, um gigantesco e crescente arquipélago de narcisismos).
Quando se deu essa demissão? Ora, creio que a década de 1990 seja um bom começo para essa história. Naqueles dias, o governo FHC desferia um ataque violentíssimo contra a universidade. Um projeto claro de transformação, para muito pior, da vida acadêmica (formulado e posto em funcionamento por uma burocracia extremamente capaz) se abateu sobre nós. Mas soubemos responder à altura: sobretudo via sindicato, conseguimos conter os aspectos mais deletérios desse projeto. Não foi um 7 a 1, mas o que se viu foi uma vitória de nossa parte.
Ocorre que o preço desse triunfo foi bem elevado. Greves longuíssimas e extenuantes – inclusive, com corte de salário e greve de fome – tiveram lugar. Quando em seguida veio o governo Lula e acenou com uma recuperação espontânea de parte de nossa renda e das condições de trabalho, nós – exauridos – recebemos esses benefícios como se fosse maná a cair dos céus.
Sentindo-nos minimamente protegidos e contemplados, fomos cuidar de outros assuntos: nossa formação, nossos projetos, nossa vida particular, nossos interesses, nosso boi na sombra.
Só que se tratava de uma primavera precária, assentada economicamente sobre a alta momentânea do preço internacional das commodities e politicamente sobre o volúvel e fisiológico PMDB. Como não poderia deixar de ser, os gambitos que sustentavam Lula e Dilma acabaram se fraturando e indo ao chão. Ato contínuo, desfez-se o sonho – absurdo mas por nós acalentado por cerca de dez anos – de que a universidade viveria feliz para sempre. Desarticulados e perplexos, mergulhamos em um pessimismo atroz e uma paralisia da qual não saímos até hoje.
Eis-nos agora diante de outro ciclo petista. E já está claro que Lula e seu governo estão completamente desinteressados da universidade. Há quem ainda sonhe com a ideia de que o ajuste fiscal haverá de no futuro garantir as condições para que o Estado volte a investir na instituição, mas isso é, por óbvio, uma aposta completamente destrambelhada e temerária. O problema é que as lideranças do movimento sindical e as pessoas mais afeitas a se mobilizar são todas histórica e afetivamente envolvidas com o petismo. Elas simplesmente não conseguem se indispor contra Lula, responsabilizá-lo por suas opções e acordos políticos, pressioná-lo a desviar-se da mediocridade e da falta de ambição, ousadia e imaginação de sua gestão. Chega a ser engraçado ver esses colegas discursando: quando criticam o governo, dizem coisas como “o ministro da Educação é uma decepção” ou “o problema é o ajuste fiscal de Haddad”, como se Camilo e o ministro da Fazenda não tivessem chefe.
A greve na UFSC não saiu porque o sindicalismo entre nós é atualmente uma barafunda grotescamente compartilhada por andesianos e defensores do Proifes, mas também, e sobretudo, porque não se faz greve sem um alvo bem definido. O supracitado panfleto dos estudantes – com sua interpelação às “instâncias competentes”, seja lá o que isso signifique – é o caso-limite dessa incapacidade de o movimento universitário se confrontar com a realidade elementar de que Lula é a bola da vez. Vai chegar o dia em que, na situação paroxística em que vivemos, alguém proporá greve contra o governo anterior.
A atual reitoria surfa nos interditos religiosos que hoje cerceiam a vida política e sindical na universidade. Logo que Lula assumiu o governo, o Prof. Irineu orgulhosamente postou nas suas redes sociais uma selfie ao lado do presidente. Creio ter sido a única pessoa na UFSC a dizer publicamente que aquele era uma foto completamente inadequada. Um reitor é um agente de Estado, não do governo de plantão. Mas a verdade é que a sua estratégia de colar-se a Lula funcionou, tanto mais tendo uma vice filiada ao PT e que de resto circula nas altas rodas do partido a ponto de, mal empossada na reitoria, ter se apresentado para formar chapa à prefeitura de Florianópolis. Tudo isso – somado ao discurso muito mais cosmético do que prático (e cada vez mais excludente, diga-se de passagem) da inclusão – criou uma blindagem poderosa em torno da reitoria, que segue sem ser devidamente cobrada por sua imensa inação diante de problemas que poderia – e, na verdade, deveria – resolver. Ou alguém quer continuar fingindo que pode culpar o fascismo pela falta de válvulas de descargas em nossos banheiros, pela falta de impermeabilização das coberturas do prédios onde aulas acontecem (que expõe as pessoas a culturas de bactérias e mofo, sem falar nos perigos representados pela água infiltrada nas paredes e dutos elétricos), pela já proverbial falta de contrato de limpeza e manutenção de aparelhos de ar-condicionado e bebedouros (que submete milhares de pessoas a riscos à saúde incalculáveis) ou pelas centenas de outros pequenos problemas que envolvem serviços técnicos simples, quase nenhum aporte de recurso e procedimentos administrativos básicos?
Quando eu era criança, via com meu avô uma série cômica chamada Os três patetas. Em quase todos os episódios, eles repetiam uma piada: o chefe dos três dava um tapa na cara de seu imediato, que, por sua vez, dava um tapa na cara do mais parvo da trinca. Este último então se virava para estapear alguém, mas descobria que não havia quem atingir. Ora, esse cara somos nós. Lula esbofeiteia o reitor, que nos esbofeteia. E nós… bem, nós, apanhamos calados, porque não temos coragem de pronunciar o Santo Nome de Luís Inácio em vão e porque caímos na conversa do reitor de que “não há dinheiro”.
Há dinheiro em Brasília. Dá trabalho conseguir, mas há. E há dinheiro na UFSC, ao menos para que alguma coisa em nosso favor seja feita. Basta ver a lista de viagens internacionais feitas pela vice-reitora desde que assumiu o cargo: África, Colômbia, México e até Itália, onde foi beijar a mão do Papa. O tamanho da conta? Uns 150 mil – verba mais do que suficiente, por exemplo, para colocar em perfeita ordem os banheiros da UFSC que servem aos estudantes. Mas, claro, prioridades são prioridades…
Ainda nesta semana, o pró-reitor da PROAD publicou uma foto sua na Univeridade Federal do Ceará. Estava lá com a Secretária da SEPLAN em um evento ligado à administração pública. Não é a primeira vez que cruza o Brasil em ocasiões como essa. É o caso de perguntar: é mesmo crucial essa viagem em um momento de penúria como o que vivemos? As atividades remotas – tão apaixonadamente brandidas pela atual reitoria – não poderiam ser acionadas em nome da austeridade e da compostura nessas viagens? Algum professor neste ano recebeu dos cofres da universidade dinheiro para diárias e passagens equivalentes aos gastos pelos membros da gestão nesse traslado ao Nordeste, que dirá para as viagens da vice-reitora aos quatro cantos do planeta? Qual o resultado prático do evento no Ceará e do beija-mão ao Papa, quando sabemos que coisas tão elementares como o contrato de ar-condicionado seguem sem ser celebrado?
Comentando comigo a foto do pró-reitor, alguém observou o que eu ainda não tinha reparado: o tamanho e a sofisticação do bannner do tal evento em Fortaleza (que fulgurava em cores vivas atrás do pró-reitor e da secretária), uma peça cuidadosamente afixada por dezenas de cordéis a uma moldura de aço. Aquilo deve ter dado um trabalhão e, com certeza, custado um dinheirão. No Ceará como cá, a festa com dinheiro público está empobrecida, mas segue acontecendo, ao menos para uns poucos ungidos.