*Por Antonio C. Mariani
O texto “O sofrimento dos (as) calouros (as) beneficiários de Ações Afirmativas perante a “acolhida” da Mãe UFSC” do professor William Barbosa Vianna, publicado na página da Apufsc, explora uma faceta da “contradição da UFSC Acolhedora”, a qual, infelizmente, mostra-se um pouco mais profunda e diversificada.
Considere a tabela abaixo que divide em grupos os cursos ofertados no Vestibular 2024 da UFSC, estratificados pela quantidade de candidatos aprovados por vaga ofertada.
Grupo | Candidatos Aprovados/vaga | Nº de Cursos | % |
---|---|---|---|
1 | Mais de 2 | 38 | 37,3 |
2 | Entre 1 e 2 | 21 | 20,6 |
3 | Entre 0,75 e 1 | 9 | 8,8 |
4 | Entre 0,5 e 0,75 | 12 | 11,8 |
5 | Entre 0,5 e 0,25 | 9 | 8,8 |
6 | Menos de 0,25 | 13 | 12,7 |
Para os grupos de 3 a 6 é esperada alguma dificuldade na ocupação de vagas, possivelmente demandando formas alternativas de ingresso (reopção, por histórico escolar, etc). Mas para os cursos dos grupos 1 e 2 seria esperado que pelo menos as vagas para o 1º semestre (2024-1) fossem integralmente ocupadas, fato que não se confirmou visto que no dia 11/março, primeiro dia letivo, havia algumas centenas de vagas nesses cursos ainda não ocupadas, grande parte delas originalmente destinadas à Política de Ações Afirmativas (PAA).
Para exemplificar parte significativa dessas ocorrências, tomemos o caso do curso de Engenharia Civil. Dentre as 39 vagas ofertadas para 2024-1, 12 dos candidatos inicialmente aprovados e chamados em 15/jan (1ª chamada) acabaram por não ingressar por não atenderem aos requisitos do edital. Dentre essas 12 vagas havia 6 vagas da classificação geral que foram ocupadas em 09/fev em função do 1º remanejamento de candidatos do 2º para o 1º semestre. As outras 6 vagas eram de categorias de PAA e permaneceram ociosas pois não havia candidatos das categorias específicas em condições de serem remanejados. Poderiam todas ter sido ocupadas naquele instante se fossem remanejados candidatos de outras categorias de PAA, segundo critérios bem conhecidos, mas por algum motivo na UFSC tal remanejamento não é feito, mesmo em situação na qual não há mais candidatos de categoria específica em lista de espera, como era o caso. Era de se esperar que elas fossem então ocupadas nas chamadas subsequentes (2ª de 23/jan, 3ª de 15/fev e 4ª de 22/fev), mas para cursos com dupla entrada, nessas chamadas posteriores por algum motivo na UFSC só são convocados candidatos para o 2º semestre, de forma que elas permaneceram em aberto durante fevereiro e parte de março. Tais vagas poderiam ainda ter sido ocupadas no 2º remanejamento que ocorreu em 08/março, às vésperas de iniciar o semestre letivo (seria desejável que este remanejamento ocorresse antes), mas novamente não o foram pelos mesmos motivos anteriormente explicitados. Como consequência, somente na 5ª chamada realizada em 11/março, data de início do semestre letivo, finalmente foram chamados candidatos para ocupar as 6 vagas de PAAs para 2024-1, todos da classificação geral visto que naquele instante não havia mais candidatos de PAAs em lista de espera. Desses candidatos, apenas 2 efetivamente ingressaram, restando hoje (terceira semana de aula) 4 vagas ociosas. No curso de Odontologia há hoje 6 em 35 (17,1 %) vagas ociosas para 2024-1. Em maior ou menor grau tal situação vem se repetindo ao longo dos anos e em diferentes cursos dos grupos 1 e 2, a exemplo do registrado na solicitação digital 010673/2023.
No caso das chamadas do SISU a situação é ainda pior visto que o remanejamento de candidatos do 2º para o 1º semestre é explicitamente impedido pelo Art. 20 da Portaria Nº 08/PROGRAD/PROAFE/UFSC, de 02 de fevereiro de 2024, resultante de um aparente equívoco de interpretação do Art. 6º da Portaria Normativa Nº 21/MEC/2012 que diz: “II- o estudante não poderá optar pelo ingresso no primeiro ou no segundo semestre”. É fato que o candidato não pode optar pelo semestre de ingresso. Contudo, tal portaria do MEC não parece impedir que o candidato seja convocado a antecipar o ingresso, a exemplo do que é feito em outras instituições como a UFMG (Edital Nº 50/2024/DRCA-DIR-UFMG). É certo que fatores como o atraso do MEC na divulgação das listas de candidatos do SISU e o percentual de cerca de 60% de não comparecimento dos candidatos chamados podem influenciar na não ocupação de vagas do SISU, mas são fatores secundários frente a falhas como as mencionadas acima, inclusive relatadas na solicitação digital 005656/2023. Novamente tomando o curso de Engenharia Civil como exemplo, temos hoje 7 de 16 vagas (43,8%) ainda não ocupadas em 2024-1. Em Odontologia este número é de 9 em 15, ou seja, 60% de vagas ociosas.
Interessante também analisar o impacto dos problemas com os ingressos via processos seletivos na renovação semestral de matrícula em disciplinas visto que esses processos são hoje parcialmente acoplados um ao outro. Diferente do que vinha acontecendo nos anos anteriores, para a renovação de matrículas em disciplinas do semestre 2023-1 todas as turmas de 1ª fase de todos os cursos da UFSC foram bloqueadas com a justificativa que elas destinavam-se a calouros. Foram desconsiderados, assim, os alunos regulares que por razões quaisquer (repetentes, transferidos, retornos, intercâmbios, etc) deixaram de cumprir anteriormente disciplinas de 1ª fase. Em 2023-1 tais matrículas só foram apropriadamente tratadas manualmente pelas coordenações de curso na etapa de ajustes excepcionais (o termo excepcional é por si só questionável), ou seja, já na primeira semana do semestre letivo, exceto no curso de Ciências da Computação no qual a renovação ocorreu normalmente em função de ação da coordenação de curso. Tal situação encontra-se relatada na solicitação digital 002722/2023 de fev/2023, inclusive com a proposição de “reserva de vagas para calouros” em turmas em vez de “bloqueio” de turmas como forma factível e computacionalmente simples de tratar o problema. Para 2024-1 a ação de bloqueio de turmas não foi repetida, fato que permitiu a operação normal de pedidos de matrícula na 1ª etapa. Contudo, todos os mais de 7000 pedidos em turmas de 1ª fase foram negados com se não houvesse vaga disponível, mesmo em turmas planejadas pelas coordenações de curso para atender a alunos regulares, as quais permaneceram vazias. Assim, os alunos regulares tiveram que refazer os pedidos nas demais etapas, mas já com todo o comprometimento em termos de seus planejamentos.
Questões como essas relatadas acima vêm sendo sistematicamente expostas ao longo dos últimos anos em reuniões presenciais e virtuais, em grupos de coordenadores de curso e via solicitações digitais registradas no SPA, inclusive com a proposição de ideias factíveis para mitigar alguns dos problemas mais críticos. Durante 2023-1 foram também conduzidas no CTC reuniões presenciais com mesmo foco que contaram, em algumas delas, com a presença das Pró-Reitoras da PROGRAD e da PROAFE e do Superintendente da SETIC. Talvez em função disso houve a criação de uma comissão (portaria Nº 1798/2023/GR, de 15 de agosto de 2023) para tratar dos ingressos, mas que mesmo após meses de trabalho não trouxe resultado prático quanto aos ingressos para 2024.
Em função de falhas como as exemplificadas acima, mas não restritas a elas, no processo de chamadas de candidatos de processos seletivos, vemos ocorrer em maior ou menor grau em vários cursos situações como:
- Atraso no ingresso de candidatos, complicando o planejamento das famílias uma vez que retira-lhes tempo para organizar-se, em particular quanto a moradia;
- Ingressos tardios (após o início do semestre), que:
- Prejudica a execução dos planos de ensino por parte dos docentes, com dúvidas recorrentes sobre como tratar questões como frequência, recuperação de conteúdo, etc (detalhes pode ser vistos na solicitação digital 008214/2023);
- Complica a vida de discentes (em particular aqueles ingressantes via PAAs em função de um maior grau de vulnerabilidade) pois além de ter que passar a acompanhar os demais colegas eles precisam em paralelo recuperar o tempo perdido;
- Aumenta o risco de reprovação e de evasão;
- Vagas ociosas, cujas ocorrências do primeiro semestre deveriam ser automaticamente remanejadas para o segundo (Art. 36 da Resolução 017/CUn/97), mas que nem sempre o são, fato que, dentre outras coisas, prejudica o cumprimento da meta 12 do Plano Nacional de Educação.
Muitos dos problemas não são adequadamente tratados no âmbito administrativo e acabam sendo transferidos para o âmbito didático-pedagógico, com todas as suas consequências para alunos, professores, cursos e departamentos de ensino. Exemplo típico é a histórica manutenção nos calendários acadêmicos de data para “Último dia para matrícula dos candidatos classificados na última chamada para ingresso” que em geral vai até o final do 1º mês do semestre letivo (25% do período letivo), provavelmente refletindo uma visão estritamente administrativa do expresso no §2º do Art. 69 da Resolução 017/Cun/97 que prevê a obrigatoriedade de 75% de frequência, mas ignorando que a verificação de rendimento deve ser obtida de forma conjunta com a verificação de aproveitamento.
Na lógica, de uma contradição é possível inferir qualquer “verdade”. Analogamente, para uma caixa preta é possível propor qualquer afirmação visto serem igualmente difíceis de verificar. No caso presente a frase que mais se ouve é que “é complicado”. Sim, de fato por vezes parece complicado ocupar a totalidade das vagas, em particular em cursos dos grupos de 3 a 6, em graus distintos, possivelmente demandando um repensar de políticas, estratégias e intenções. Mas independente disso, quando se escrutina a “caixa preta” de nossos processos, vê-se o quão frágeis são algumas afirmações correlatas.
Estamos num momento no tempo onde discutem-se e aplicam-se técnicas de alta tecnologia como a IA Generativa e computação quântica para resolução de problemas complexos, enquanto que na UFSC temos dificuldades para tratar problemas bem determinísticos e clássicos como os de chamar candidatos de processos seletivos e renovar matrícula de alunos em disciplinas. Traduz-se, portanto, na falta de capacidade para executar plenamente políticas básicas de educação às quais a UFSC é aderente, inclusive as de inclusão social. Em última instância, tais fragilidades refletem um grau de significativa inoperância de Governança Digital na UFSC, conforme prevista na legislação e cobrada por órgãos como TCU.
*Antonio C. Mariani é professor do INE/CTC