Grupo de pesquisadores foi liderado por Carolina Levis, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia
Uma virada de chave no olhar para as políticas de conservação da natureza fez um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) mapear, no Brasil, cinco exemplos de florestas protegidas por conta de um valoroso trabalho dos povos originários e comunidades locais. O estudo, liderado por Carolina Levis, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia, foi publicado na última terça-feira, dia 19, na Nature Ecology & Evolution, do grupo Nature, e tem a co-autoria de lideranças indígenas do Território Indígena do Alto-Xingu, além de colaboradores de outras regiões do país e de universidades norte-americanas.
O que o estudo chama de hope spots, ou pontos de esperança, em tradução, seriam os locais onde comunidades locais e cientistas agem de forma colaborativa, garantindo o sucesso na conservação, tanto na biodiversidade, quanto na cultura. A definição é sintetizada por Carolina, que também faz um paralelo deste termo com o conhecido hotspots, os pontos de atenção que vivem ameaças em diferentes níveis. “Ao invés de focar nos hotsposts, apostamos nos hope spots, são os pontos de esperança com resultados positivos. Eles têm se espalhado e há uma tendência de ampliação”, resume.
A pesquisadora traz como referência o conceito de pedagogia da esperança, cunhado por Paulo Freire, e lembra que embora os estudos científicos estejam muito focados na destruição, tendo em vista os resultados de devastação e prejuízos à biodiversidade e à cultura, é necessário olhar para os casos onde há sucesso. “Existem lugares onde o engajamento da comunidade leva à mais qualidade de vida, saúde dos ecossistemas e conservação das espécies”, pondera.
Cinco destes lugares foram mapeados em estudos de caso que sintetizam como as comunidades e os povos originários agem de forma a conservar as florestas e o entorno sem que sua cultura seja prejudicada. O Xingu, na Amazônia; a gestão do Pirarucu gigante, também na Amazônia; o turismo arqueológico-ecológico na Caatinga; o manejo do fogo por indígenas no Cerrado e o manejo colaborativo da Araucária na Mata Atlântica. Todos esses casos, segundo a pesquisadora, sintetizam o que seria uma “mudança de paradigma na conservação da natureza”.
De acordo com Carolina, o paradigma convencional de conservação cria áreas protegidas, mas muitas vezes ignora a presença das comunidades locais. “Ecossistemas e biodiversidades são moldados pelas culturas humanas”, explica. Isso significa que as comunidades e suas culturas trazem o conhecimento do manejo da terra, criam alimentos e promovem o uso sustentável da terra, entre outras coisas. “A conservação conjunta da natureza e da cultura deve ser o foco”, resume. Ela explica, ainda, que as pesquisas com essas características se intensificaram à medida que o direito aos territórios por parte dos povos originários e comunidades locais passou a ser ameaçado.
Um dos exemplos mapeado na pesquisa é o Território Indígena do Xingu, na região amazônica. Lá, as comunidades indígenas conseguiram documentar muitos sítios arqueológicos da região, identificando, inclusive, sua ocupação desde 1250, em trabalho conjunto com o pesquisador norte-americano Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, outro co-autor da pesquisa liderada pela UFSC.
Este território, segundo Carolina, foi ocupado e modificado pelos indígenas de forma a criar um solo muito mais rico, com sistemas de manejo das florestas, dae água e dae pesca que valorizam e estimulam sua biodiversidade. Esse manejo aliado àa proteção do ambiente nativo por parte da própria comunidade que dele depende desenvolveu uma novas variedades de pequi, de mandioca e de milho, por exemplo. “Esta dinâmica desenvolveu um sistema que permitiu que a sociedade florescesse”, comenta.
Segundo Carolina, Xingu é uma das regiões que está no arco do desmatamento na Amazônia. As imagens mostram que só há floresta no território indígena, estando a área cercada por regiões desmatadas. O projeto de monitoramento desenvolvido nessa parceria permite que as comunidades locais mapeiem sistematicamente o que existe no território: animais, plantas, rios e sítios arqueológicos. A comunidade também pode registrar em tempo real regiões onde há fogo e invasão.”É uma construção colaborativa entre pesquisadores e indígenas”, explica.
Araucária
Na região Sul, que abrange grande parcela de Mata Atlântica, o ponto de esperança identificado pela equipe está na Floresta de Araucária. O professor da UFSC Nivaldo Peroni tem se dedicado ao assunto e também é um dos co-autores do estudo. Segundo Carolina, a árvore – que compõe tantas paisagens regionais – é uma estruturadora do ecossistema, já que, quando ela cresce, possibilita que várias espécies coexistam, gerando alimento para os animais e também para as comunidades.
A pesquisadora lembra, no entanto, que o impacto da destruição também é grande, já que ela foi reduzida a 12% da sua distribuição original, daí a necessidade de conservação. “São florestas culturais, já que os Povos Jê, do Sul, dispersaram a araucária por onde ela não existia”. Esses povos são os antepassados de populações indígenas que vivem na região.
No caso das araucárias, os pequenos agricultores, também comunidades locais, continuam atuando no manejo do pinheiro e auxiliando na sua preservação. “Vários dependem da araucária e do pinhão para alimentação e como fonte de renda. Eles também conservam e manejam outras espécies, como a erva mate. Os estudos mostram que esse manejo tem mantido a diversidade genética das espécies e a diferenciação de variedades conhecidas localmente”, complementa.
Os cinco pontos de esperança
Xingu na Amazônia
O Ponto de Esperança do Xingu está localizado na ecorregião mais ameaçada do Brasil, a Amazônia, também conhecida como o ‘arco do desmatamento’, que já foi reduzida a menos de 20% de sua extensão original. Devido ao desmatamento, as extensões remanescentes de floresta estão predominantemente restritas às Terras Indígenas. Por milênios, os Povos Indígenas desenvolveram sistemas urbanos nesta região, com terraços, florestas culturais e a domesticação de diversas espécies, demonstrando uma influência indígena significativa na biodiversidade.
Manejo Colaborativo do Pirarucu Gigante na Amazônia
O pirarucu gigante (Arapaima gigas) é o maior peixe de água doce da Terra e representa um dos recursos mais emblemáticos da bacia amazônica devido ao seu alto valor cultural. Uma longa história de sobrepesca levou ao colapso das populações em muitas partes da bacia durante as últimas décadas. Para restaurar as populações de pirarucu, as comunidades ribeirinhas, em parceria com cientistas, ONGs e governo, estabeleceram um modelo inovador de co-manejo dos lagos, onde vivem o pirarucu no Rio Solimões e seus afluentes.
Este modelo foi estabelecido de acordo com o conhecimento científico e local das abundâncias de pirarucu estimadas anualmente nas áreas manejadas, o que permite um estoque preciso, e tem proporcionado o aumento em 425% das populações de pirarucu em lagos protegidos após 11 anos do início do co-manejo. O co-manejo do pirarucu também melhorou fortemente o bem-estar e a igualdade de género das comunidades através de uma melhoria anual geração de renda, investimentos em infraestrutura, como escolas e postos de saúde, segurança social e inclusão das mulheres na tomada de decisões através da geração de renda.
Turismo Arqueológico-Ecológico na Caatinga
O Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC) está localizado dentro das florestas sazonalmente secas da Caatinga, uma região com alta biodiversidade e pouco protegida. Patrimônio Mundial da UNESCO, possui mais de 900 sítios arqueológicos com uma variedade diversificada de pinturas rupestres, algumas das quais datam de mais de 20.000 anos atrás. A região só pode ser visitada com a ajuda dos habitantes locais, o que minimiza atividades ilegais, como desmatamento e vandalismo de patrimônios arqueológicos, enquanto proporciona benefícios socioeconômicos para as comunidades locais, permitindo a redução da pobreza no bioma florestal mais ameaçado e pobre do país.
Manejo Indígena do Fogo no Cerrado
O Cerrado é um bioma com alta biodiversidade de savana propensa a incêndios, sofrendo com altas taxas de perda de vegetação nativa para acomodar a pecuária e a produção de cultivos como a soja, o que, combinado com as mudanças climáticas, aumentou o risco de grandes incêndios. Povos Indígenas que habitam o Cerrado frequentemente queimam a paisagem para diversos fins relacionados aos seus modos de vida. Os Xavante, por exemplo, possuem conhecimentos ancestrais associados ao manejo do fogo enraizados em suas atividades culturais. Onde eles executam o manejo, a vegetação nativa de savana é melhor preservada e restaurada após o abandono pela agricultura em larga escala.
Manejo Colaborativo do Pinheiro Araucária na Mata Atlântica
A araucária (Araucaria angustifólia) é uma espécie culturalmente importante e foi dispersada e gerenciada por povos indígenas por milênios. Hoje, as florestas estão restritas a apenas 12% de sua distribuição original e são importantes para pequenos proprietários locais que gerenciam seus recursos em sistemas de produção multi-espécies. Esse sistema de manejo gera fortes incentivos socioeconômicos para os agricultores envolvidos, que relataram que pelo menos 50% de sua renda bruta anual vem dos mercados de sementes de araucária, os pinhões. Além da proteção de espécies vegetais e animais nativas dentro das florestas de Araucária, o manejo tradicional por pequenos proprietários permite a conservação de outras espécies-alvo, garantindo a manutenção da diversidade genética de araucária, erva-mate (Ilex paraguariensis) e outras espécies culturalmente importantes.
Princípios necessários para a construção de novos pontos de esperança sócioecológicos
- Respeitar os Conhecimentos Indígenas e Tradicionais
- Endossar o Mapeamento Participativo e Monitoramento Local
- Manejar Espécies Culturalmente Importantes e Espécies-Chave
- Manter a Diversidade Biocultural e Agroecossistemas Diversificados
- Garantir Direitos Territoriais e Autonomia para Povos Indígenas e Comunidades Locais
- Assegurar Apoio Financeiro para Povos Indígenas e Comunidades Locais
- Promover Múltiplas Parcerias entre grupos de cientistas, ONGs, instituições governamentais e Indígenas e Comunidades Locais
- Promover Governança Policêntrica
Fonte: Notícias UFSC