Entre Narciso e Frankstein: razão, jurismo e política do atraso

*Por Edmundo Lima de Arruda Jr.

E foste um difícil começo, afasto o que não conheço.
E quem vem de outro sonho feliz de cidade,
Aprende depressa a chamar-te de realidade,
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso.
(Caetano Veloso, Sampa)

Jamais o ilusionismo foi tão real no Brasil. Forjados em autoimagens, agrupamentos de políticos e de juristas reproduzem autoenganos obliteradores do progresso individual e social.

Num país com as características de capitalismo tardio, liberalismo político e representantes do mercado não se levam a sério na mesma proporção que socialistas tradicionais desdenham as instituições da democracia liberal, por crença revelada e velada, “em última instância”, num marxismo contaminado pelo mantra da ditadura do proletariado. Isso coloca as condições de possibilidade para a resistência cultural básica da política menor, tendente a produzir obstáculos ao desenvolvimento institucional. Em outras palavras, os protagonistas da velha política não estão à altura dos desafios do século XXI, de alguma forma seu modus operandi são conservadores, mesmo reacionários.

As forças sociais contrárias uniram-se no trabalho desconstrutivo da democracia. Uma Democracia cheia de problemas, desidratada, estressada, fatigada. Uma democracia quase impossível no seu estertor, talvez.

A Democracia e a Têmis desnuda podem ser percebidas nas situações reveladoras do quão distantes estamos de uma clara definição de códigos modernos para a política e para o direito. Aqui não importa se a promessa moderna era uma falácia ou uma potência já minada na origem do Norte e uma ideologia em segundo grau entre nós, tupiniquins.

Neste texto, indicamos algumas ideias preliminares como contribuição para a reconstrução das narrativas recorrentes nos sensos comuns da Política e do Direito no sentido de fortalecimento do Comum, ou espaço imaginário de convivência partilhada e solidária.

Essas narrativas ganham roupagens “conceituais” oblíquas quando capturadas nos olhares e disputas “acadêmicas” obtusas. O “teórico” passa então a ser, por regra, mais um reforço às falsas polarizações escamoteadoras de reais conflitos da luta social, na medida em que a crítica é substituída por retórica estratégica simplificadora da complexidade social e o trabalho abstrato trocado por um militantismo do vale-tudo por causas últimas.

O clima de briga de torcida que marca a polarização ganha espaços no exterior. Nunca se viu uma batalha tão disputada por apoio de ganhadores do Prêmio Nobel, grandes intelectuais, tribunais internacionais, para a sustentação deste ou daquele time. Tem sido assim desde o episódio da impugnação de Dilma Roussef e dos processos da Lava-jato até esta parte.

Mas volto ao ponto das disputas questionáveis sobre quem tem ou não tem razão. O que é racional abarca sempre o irracional que permeia toda disputa apaixonada.

A política não é racional, nem o Direito, e ambos não são ciência. Em momentos críticos eles se revelam enquanto “irracionalidades”, se considerados um em relação ao outro, sempre em busca de um lugar histórico onde a “verdade histórica” possa ser entronizada.

Por isso, surpreendem, nos tempos hostis de hoje, certas posturas exageradamente juridicistas de número crescente de juristas, principalmente entre aqueles que se consideram críticos. Aqueles mesmos que acreditavam fazer justiça julgando contra certas leis, tomadas como iníquas, a exemplo de alguns juízes heroicos mais extremados do Rio Grande do Sul nas duas últimas décadas do século XX. Falava-se em Justiça substantiva entre muitos operadores do direito alternativo mais radicais, com muita reserva e desconfiança em relação às formalidades jurídicas do Direito oficial. Era a revolta possível diante de um sistema judicial ultraconservador, politicamente, e defasado em termos hermenêuticos, centrado na linguagem técnica sem grande preocupação com o leque de metalinguagem reconstrutora da doxa.

Por certo, o culto da forma jurídica camufla muitas coisas quando descontextualizado historicamente, merecendo estudos de suas funções, usos e abusos. A tradição dos profissionais da crítica tradicional do Direito desde Pachukanis a Miaille, passando por Lyra Filho e Roberto Aguiar é a da denúncia do caráter ideológico da dogmática jurídica reproduzida por uma “casta de juristas” (Juan Ramon Capella), dominantemente conservadora.

O fato de os alternativos terem em grande medida “conquistado o Estado” com a vitória de Lula em 2002, participando direta ou indiretamente do governo, explica em parte essa mudança de postura em relação às leis antes consideradas sob explícitas reservas, adjetivadas como “legalidade burguesa” para uma condição (mais ou menos tímida ou envergonhada) de defesa dos governos populares. Afinal, diante da truculência da direita (liberal e ultraliberal) as conquistas de direitos humanos deveriam servir para resistir ao obscurantismo.

Nesse sentido é que a Lei e suas instituições ultrapassam a ideia de ideologia dominante para se enquadrarem como lugar de poder em disputa. Sem dúvida um avanço no mundo jurídico das práticas judiciais e acadêmicas, embora maculado por fatores estruturais.

Levamos tempo para deixar Kelsen em paz, reconhecendo o caráter importantíssimo do Direito moderno enquanto parte da dominação racional-legal, à qual corresponde o Direito racional-formal. Demos um outro passo, incorporando a pauta do pluralismo jurídico, dentro e fora das formas jurídicas estatais. Fomos além, passamos a apostar num garantismo jurídico peculiar, tardio, fora dos marcos liberais de seus territórios europeus. Avançamos, reconhecendo um novo constitucionalismo. Admitimos, enfim, ser o Direito parte de uma “condensação de relações de forças, mesmo assimetricamente”, aproveitando Nicos Poulantzas (Poder, estado e socialismo). Ufa!

Daí a porca torceu o rabo pelos percalços da esquerda de governabilidade, já denunciada por socialistas do quilate de Ricardo Antunes (Uma esquerda fora do Lugar: o governo Lula e os descaminhos do PT) e de Francisco Oliveira (O ornitorrinco). De alguma forma, desde há décadas, com clarividência conceitual e histórica, autores clássicos exigiam a revisão teórica e prática radical dos marxistas. Esse foi o caso, por exemplo, de Leandro Konder (A derrota da dialética) e de Carlos Nelson Coutinho (A democracia como valor universal), entre outros.

“Conquistamos o governo!”. Assim gritava a esquerda eufórica de 2002, quando chegava ao poder um metalúrgico. Afinal, depois de Vargas e JK, com Lula o Brasil retomava o caminho de outro desenvolvimento, buscando superar a ordem anterior em direção à construção de políticas de maior coesão social e afirmativas da igualdade. Os mais exaltados clamavam pela tomada do Estado, pela sua extinção em tempo azado que, ansiosos, eles esperavam. Mas o favor das oligarquias teria alto preço.

A fatura maior é aquela apresentada pela heteronomia da globalização neoliberal, aceita pelo pragmatismo dos governos de “esquerda”, bem estudada na tese de Eurelino Coelho (Uma esquerda para o capital). Ela conduz parcelas de intelectuais leninistas ou pragmáticos a embarcar no bonde histórico conhecido pela anuência com as reais políticas da “revolução processual”: o avanço gradativo de reformas sociais sob as regras da lex mercatoria, dirigido o veículo pelas elites nacionais retrógradas.

Tal mudança de postura dessa forma de reformismo sempre foi oportunista, pois condicionada às estruturas e superestruturas classistas do Capital, as quais aqueles mais ortodoxos tinham a pretensão de abolir. Gramsci, por sua vez, valorizava o lema das Luzes (igualdade, liberdade e fraternidade), e tudo fica mais confuso na história. Afinal, conquista ou cooptação? Ou as duas coisas juntas?

Então, juízes, procuradores, delegados, professores preocupados com a atualização da racionalidade jurídica, passaram a compreender que o Direito é linguagem a ser reconstruída por outros saberes (metalinguagem). Abre-se assim o espaço complementar à teoria da validade para a reconstrução da racionalidade no Direito em outros patamares. A verdade jurídica é substituída pela busca de sentidos. A hermenêutica ganha terreno. Hermes Lima cede terreno a Heidegger. O saber jurídico se socorre de outros conhecimentos, enriquecendo-se, e contribui, por isso mesmo, para valorizar e redefinir outras áreas da ciência, como a economia, a política, entre outras. Mas persiste a questão dos limites do Estado de Direito sob as leis de bronze do capitalismo, o que Immanuel Wallerstein denominava de geocultura, ou ideologia dominante a capturar e despotencializar os Direitos Humanos (Após o liberalismo: em busca da reconstrução do mundo).

Pois bem, a maior crise já vivenciada no Brasil nos últimos anos divide pessoas (entre bolsonaristas e lulistas), expondo a fragilidade das ideologias forâneas. A “judicialização da política” funcionou como recurso extremo para a recomposição da racionalidade política mambembe. Da mesma forma, a “politização do direito”, verificada com a espetacular emergência de profissionais insurgentes na arena política, indica a ponta de um aicebergue de uma racionalidade jurídica infantil, engatinhando, escorregando em acertos e excessos. Em ambas as racionalidades os dilemas de uma modernidade em busca de definição situam-se dentro das contradições de nossa formação social tardia. Uma redefinição improvável em tempos do mercado mundial canibalizado pela financeirização.

Imbuídos do romantismo de um liberalismo “(des)referencializado”, políticos e juristas vão ruminando e vomitando o transplante de ideias a cada esquina, nos espelhos do nosso quadro social. Mas a ideologia ainda opera essa retórica narcísica em face de práticas franksteinianas. O sistema judicial e o sistema político encontram-se em baixa legitimidade, embora a desmoralização de ambos abra espaço para a politização daquelas instituições. Essa é guinada histórica do Direito “traído” para um outro Direito, cara-metade de nova forma de sociabilidade de novo modo de desenvolvimento. As reações dos juristas costumam ser contra instituições e pessoas, romantizadas no retorno a um casamento que jamais existiu.

As reiteradas “surpresas” com o STF por excessiva regulação social, desde o processo de impugnação de Dilma e a prisão de Lula pela Lava Jato até o “perdão” de multas bilionárias por parte do Ministro Toffoli às empresas implicadas, isso tudo compõe o espetáculo da desinstitucionalização em curso. O embuste e os crimes do grupo de Curitiba, o acórdão e acordão do fatiamento do afastamento de Dilma são exemplos dessas tensões que marcam o Direito e a política. A jogada de Waldir Maranhão anulando e suspendendo o decidido sobre o impedimento na Câmara foi mais um capítulo da novela ornitorríntica, culminando na jogada de Renan Calheiros para manter a ex-presidente elegível. Por ser avaliada a expulsão de Cunha e seus dividendos. No mercado de uma política pequena, não há mercadoria tão podre que não possa estar em ponta de gôndola.

O juridicismo é o fetiche das formas jurídicas. Weber denúncia esse extremismo como autoilusão, o considerar a norma em si mesma fora das tensões do processo de racionalização geral que marca o mundo Capitalista em todos os seus formatos. Mesmo se constitucional, in concreto, ritos jurídicos são perpassados pela conflituosidade, pela pressāo das ruas, cuja voz clama, por exemplo, pelo fim da corrupção.

O ajuste jurídico de sentido libertário-emancipatório, com potencial de produzir novas formas de sociabilidade para um novo modo de vida, fraterno, é excepcional. Pelo contrário, fomentam-se na contingência histórica os arranjos oportunistas e os remendos venais que atendem a interesses políticos de grupos corporativos e estamentais. Tudo faz parte da racionalização do direito na íngreme topografia da semiperiferia. Qualquer crença liberal em um direito tomado como variável independente soa como delírio kantiano, tardio. Como se o barão de Münchhausen pudesse refundar uma neutralidade de valores em tempos de explicitação dramática ― terreno pantanoso ― das (i)racionalidades na política e no direito.

Dessa perspectiva, pode ser entendido o coro majoritário dos juristas e políticos do campo progressista “pela democracia”. Os coristas, porém, achando-se nobres paladinos da liberdade, acabam por justificar e ampliar equívocos. Políticos seguem a mesma linha em defesa dos meios sem questionamento de todas as possibilidades dos fins.

Alguns exemplos de legitimação do reformismo transformista podem ser encontrados na política reboquista desde a opção única e pessoal de Lula de chegar ao poder a qualquer custo em 2002 até o frissom daresponsabilização dos envolvidos na tentativa golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023.

No plano externo, outro dos nossos profundos problemas está na reiterada condenação do abominável morticínio produzido pelo governo de Israel em Gaza, com insistência na retórica do holocausto palestino. Na mesma retórica das equivalências superficiais, insistem os lulopetistas em nivelar como igualmente fascistas Mussolini e Bolsonaro. Tudo de maneira involuntária, talvez, mas isso contribui para a desreferencialização das instituições.

Liberais garantistas e neoconstitucionalistas e a esquerda (oficial e mesmo a mais autônoma em face do status quo) unem-se para defender o governo ou a Lei e seus ritos processuais, alternadamente. Irmanados e em desespero, repetem a mesma cantilena da democracia liberal deflorada, embora sem situar em bem o utir do crime fora do teatro manietado por falsos extremos.

O que se esquece nessa árdua e concreta disputa semântica? Nossa formação social é desarticulada em vários níveis, dos espaços públicos aos privados, da esquerda tradicional com suas “deduções lógicas” sobre o caráter instrumental da democracia, até uma direita reinante, truculenta, avessa a um capitalismo não dependente do Estado, sem contar as suas posturas elitistas, reacionárias, a que falta “paciência” com a “insistência” dos pobres em reivindicar direitos. Temos uma burguesia avessa ao liberalismo político primário, num curioso, embora compreensível, casamento com a esquerda useira e vezeira das velhas práticas corporativas, afeita às ideologias autoritárias, incapaz de autocrítica. Na verdade, a ultradireita ocupa os espaços deixados pelo esvaziamento e recuo da direita liberal e da esquerda tradicional, ambas incapazes de renovar ideários na consciência de cada cidadão.

Daí as “inautenticidades” da racionalidade política, derivadas de duas amputações culturais já enunciadas, relacionadas aos dois mais fortes protagonistas do processo social. De um lado, os representantes do Capital, alérgicos ao liberalismo político. De outro lado, a classe trabalhadora movida por um material ideológico de baixa densidade: o senso comum da vulgata stalinista, aparentemente morto, mas vivíssimo.

Quanto à racionalidade jurídica, ela padece dessa mesma doença crônica que é a indefinição continuada de seu campo de legalidade. O garantismo jurídico tardio resulta do liberalismo eticamente justificado em termos morais, por aposta última num mínimo ético ― que já defendemos com Marcus Fabiano Gonçalves (Fundamentação ética e hermenêutica: alternativas para o Direito) ― fundado tanto na preservação de garantias individuais e dos direitos humanos quanto nas lutas de concretização, com uma constante incapacidade de negação além das iniquidades criadas pela estrutura social. É dizer, incapaz de reconhecer e negar a própria natureza iníqua do capitalismo. Daí surge uma questão recorrente.

Mas quem garante o garantismo? A discussão de princípios ou regras é parte da discussão ou confusão na indefinição do direito moderno. Marcelo Neves colocou uma primeira pá de cal nos herdeiros de Kantno direito constitucional(Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais), e Lênio Streck aprofundou as implicações práticas dos princípios (Um guia elementar dos princípios). Quando situado (o garantismo) na sua historicidade, surgem três questões: o que o sucedia? O que o mantinha? O que o destruía?

Compreendemos as aventuras do garantismo fora de lugar, seus desafios enquanto aposta liberal e todas as suas imitações estruturais. O Capital sob o neoliberalismo atropela direitos fundamentais e desmoraliza as constituições, condenando-as a meros reconhecimentos formais a serem expurgados do ordenamento jurídico. A partir daí até o decreto de morte das instituições modernas fica faltando só um passo. Há, porém, aqueles que, ao contrário, festejam com banda de música e fogos a vitória do mercado e o fim da história, após a derrocada do socialismo real.

Hegel e seu discípulo maior, Marx, morreram, em termos absolutos? O progresso civilizatório é pleno de passos à frente e passos atrás. O atraso se atualiza para se perpetuar, conforme o conhecido princípio de Lampedusa. A má tradição do arcaísmo, da corrupção generalizada no aparato estatal sobrevive protegida pelo escudo das filigranas jurídicas. Assim os amigos do alheio escapam ao império da Lei, valendo-se, pois, do próprio sistema judicial, até mesmo do STF. Aos não privilegiados, àqueles abaixo do cume da pirâmide social, resta a condição de párias de direitos humanos.

O magistrado federal Sérgio Moro, ao ousar divulgar informações da operação Lava-jato, apoiando-se no princípio constitucional da publicidade e do interesse público, atropelou/atualizou as formas jurídicas num sentido negativo. A Vaza-jato desmascarou os arranjos ilegais da republiqueta bananeira de Curitiba, mas descortinou os negócios escusos nas entranhas do PT e nos partidos de sua base. Um registro da permanência do legado arcaico minando as esperanças do moderno, o qual se reconfigura. Mais um vetor de despotencialização da política e do direito.

Na correlação entre a racionalidade política e a racionalidade jurídica está a insegurança das tensões sociais. A fragilidade continuada dessa interação ― devida às interferências e excessos, pode ser considerada “normal” numa sociedade como a nossa, desarticulada, tardia em termos de mercado, cultura, tecnologia, política e leis.

Então, a questão maior se impõe: como importar um produto de baixa demanda no “Norte”, onde decai o Estado do bem-estar, para o nosso “Sul”, onde faltam as condições de eficácia política e jurídica efetivas?

Temos duas respostas provisórias. Primeira: superando a falta da cultura liberal política atualizadora e da cultura socialista não naturalista entre os protagonistas que representam o Capital e o Trabalho. Segunda: preenchendo a lacuna de referências históricas de revisão crítica para ambos os campos antagônicos, sopesando o que eticamente é indefensável no acumulado das experiências sociais de organização e luta.

Decerto, a política e o direito fazem parte contingencial do possível. Daí o espanto, a surpresa, a vertigem dos juristas liberais com os “desvios” de uma pressuposta razão a priori (sintética?) kantiana em face de uma direção autônoma na história. Eles dizem que a história foi “prostituída pela política e pelos políticos”, “traída pelo Direito e seus profissionais”, mas isso não faz o menor sentido, a não ser por insistência e reincidência dos conhecidos subjetivismos de quem, coerentemente, não leva em conta a crítica dialética. Por certo, há nesse contexto de crise moral e de ideias a retomada do hedonismo, do niilismo absoluto, compatíveis com o mal-estar geral e com a filosofia da renúncia. Esses contextos seduzem também certa classe média, donde vêm posturas díspares: do conformismo ao “radicalismo obreirista”. Estamos diante de autismo político ante o mundo mutante, fragmentado e não de todo compreendido.

A judicialização do Direito por parte dos legisladores e de gente do Executivo e a politização dos técnicos em leis no sistema judicial em geral obedecem à instabilidade primária típica das sociedades menos estruturadas (condições materiais de existência) no mercado capitalista. Direito e política são as instituições superestruturais do modo de produção capitalista e da condição geopolítica de cada formação histórica. Podem servir ao questionamento desse modo de desenvolvimento mas se situam, historicamente, nessas condições fundantes. Porém, tanto a busca dos tribunais por parte da política quanto a politização dos juristas seguem-se à outra instabilidade particular, “secundária”: a da baixa internalização de cultura política crítica revisionista tanto do(s) liberalismo(s) quanto do(s) socialismo(s), como referido suso. Insistimos nessa hipótese para avançar no raciocínio conclusivo. Weber compreendia o processo de racionalização que caracteriza a época moderna como tensão insuprimível entre interesses e compatibilização possível de conflitos/demandas, no caso do Direito, por novas formas jurídicas ou por guinadas (re)significativas de normas existentes operadas por líderes carismáticos. Essa tensão também atravessa e configura o campo da racionalidade política, sempre por pertinência às formas de dominação, entre estas a mais destacada, a moderna dominação racional-legal, que corresponde um dos tipos ideais de Direito, o Direito racional-formal. No caso de sociedades periféricas como a nossa, os arcaísmos pré-modernos permanecem e mudam conforme o direito moderno.

Os liberais acreditam que o jurismo tenha substituído a religião como campo simbólico mais importante na modernidade, finda a influência religiosa forte do feudalismo, que na Idade Média impunha-se sobre outros aspectos do ser social: estético, afetivo-sexual, jurídico, filosófico, político, econômico… Essa pressuposição muda na crise em momentos de transformação. Habermas passa agora a pensar no que restou da moralidade legada da esfera religiosa para a reconstrução do Comum, em virtude da falência da política e dos políticos tradicionais. O que constatamos no nosso Brasil em crise profunda é a impossibilidade de reconhecermos a autonomia das racionalidades política e jurídica, coisa que elas nunca tiveram nem podem ter no quadro hegemônico global. Não há autopoiese possível nem no centro ― onde um dia houve, nem na periferia do Capital. No nosso caso aqui neste infausto Sul do mundo, essa é consequência das transformações múltiplas e seus impactos numa sociedade com baixa densidade da cultura democrática (liberal e socialista). Nossa alopoiese é ornitorríntica. Dirigentes de esquerda ou direita atualizam a modernidade jurídica à sua imagem.

Com efeito, a Constituição de 1988 aponta o itinerário de construção não somente de República fundada no Estado de direito, senão que também de Estado social constante de plenos direitos humanos e direitos dos povos. Quão turbulento é esse dramático percurso e suas mediações patrimonialistas sob os curtos-circuitos recorrentes das disputas entre estamentos de má tradição cultural e política e sob os ditames estruturais impostos pelas leis de bronze do Capital (heteronomias)!

No centro das disputas entre governo e oposição estão interesses de toda cor ideológica. A clássica distinção entre esquerda e direita pode atender às demandas de crenças de cada partícipe entre os maiores protagonistas do quadro de crise, mas elide sua profundidade (paroxismo) e o desgaste das energias utópicas tradicionais. A confusão e a indefinição das racionalidades política e jurídica decorrem de muitos fatores, externos e internos. Daí não haver como elucidar com clareza onde começam e terminam os interesses de um e de outro dos campos cindidos e explicitados, a nosso ver de maneira falseada, no abismo da crise geral.

Dessa maneira de ver a instabilidade do Político e do Direito, a julgar pelo nível dos parlamentares aloprados e pela ousadia da “república de Curitiba”, somente para citar dois exemplos midiáticos de grande repercussão, talvez eles indiquem o estado de uma modernidade gasosa, no limite de seu processo social por afirmação e superação dos arcaísmos. A crise é deprimente, mas também abre espaços para outras lutas emancipatórias, vale dizer, ela traz a pauta socialista da igualdade para o seu lugar… Todavia, essas possibilidades dependem de podermos encontrar dirigentes capazes de propagar novos projetos e aglutinar militâncias com poder de alargar e vulgarizar as grandes questões locais e nacionais entre o maior número possível de nossos conacionais. O Junho de 2013 continua sua busca de caminhos institucionais para dar satisfação a desejos e necessidades ainda não satisfeitas quanto a políticas de reparação de danos.

As lideranças carismáticas podem produzir factoides na ordem política (o que Gramsci denominava de meros “movimentos superestruturais”), quando se socorrem do Poder Judiciário e da sua mais alta Corte, o STF, por exemplo, para redefinir narrativas. Mas podem deixar o recado de que a representação política está com suas forças do passado se exaurindo, não podendo abrir espaço para a criatividade das novas energias para um novo Brasil. De outro lado, os chefes populistas podem arguir, através da ordem jurídica (e das escolhas éticas e hermenêuticas devidamente fundamentadas), uma nova agenda política para o Direito. É o que tentam desesperadamente (seguramente, com erros) um conjunto inestimável de jovens profissionais em defesa da República em seus princípios éticos modernos. Talvez esses profissionais portem sementes no direito e fora dele, para um novo Estado, um Estado ético, como queria Gramsci.

No ciberespaço e nas ruas, até os mais pessimistas começam a perscrutar caminhos para fora do caos. A desordem faz imperiosa nova ordem. A questão já não é a certeza do esgotamento do passado, senão que as incertezas de como construir o futuro agora.

Enquanto prevalecer, entre os defensores das racionalidades política e jurídica de ambos os lados, o clima paroquial típico dos grupelhos, panelinhas e igrejinhas ― natural em todos os corporativismos (sindical, político, ideológico, intelectual/acadêmico, classista, nacionalista) ― nosso país continuará postergando a saída do passado e o encontro com o seu futuro.

A melhor e a pior das formas jurídicas não se cristalizam em termos absolutos, podendo sempre causar deformações na busca de novas formas. Sendo o Direito fruto da política, tendo como máxima expressão a Constituição, resultante de uma Assembleia Constituinte, ele guarda relativa autonomia e considerável margem de abertura para (re)formas. Espera-se delas, mais que meras formas, sementes para novos conteúdos. A política não deve se frustrar com o Direito, nem a este deve repugnar a política. Às vezes se eclipsam, mas o certo é que, em situações de corrupção sistêmica na política, a esfera jurídica pode ser o guia no caminho republicano. Esta possibilidade procede da autonomia relativa da esfera jurídica e da longa luta cultural pela efetividade dos direitos fundamentais. Os operadores do Direito devem estar atentos e ter sempre em conta os limites desta sociedade submetida a um sistema iníquo, dirigido pelos atores a serviço dos interesses do poder e da riqueza. Há que pensar outra sociabilidade para o Direito.

*Edmundo Lima de Arruda Jr. é professor titular aposentado da UFSC, doutor pela Universidade Católica de Lovaina. Autor de mais de 30 livros. Ex-coordenador Nacional do Movimento Direito Alternativo (MDA). Ex-presidente da Apufsc-Sindical 1988/1990. Fundador e Sócio do Centro Universitário CESUSC.

Bibliografia

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