Por Armando Lisboa*
“O teste de nosso progresso não é acrescentarmos mais à abundância daqueles que têm muito. É fornecermos o suficiente para aqueles que têm pouco” (F. Roosevelt, 2º discurso de posse).
O prefeito de Chapecó, João Rodrigues, divulgou, por um vídeo no TikTok, a última etapa da “Operação asfixia”, realizada na última sexta-feira, dia 16. Mobilizando 15 viaturas e um helicóptero da PM, cerca de 60 pessoas foram recolhidas naquela madrugada.
A pretexto de combater o tráfico de drogas e a criminalidade, arma-se uma autêntica operação de guerra cujo alvo é a população de rua: “Chapecó não terá mais ninguém na rua da cidade”, anuncia Rodrigues.
A peça publicitária não mostra que oportunidades são oferecidas à população de rua em Chapecó:
nada diz sobre um instituto municipal de reabilitação para dependentes químicos, pois inexiste;
tão pouco informa se existem políticas públicas voltadas para os que vivem com sofrimentos psíquicos (doenças mentais);
nem mesmo traz um único caso de reinserção laboral (é a oitava edição daquela Operação) …
O que o vídeo do TikTok deixa claro é a posição política do prefeito. Ela transparece no nome “asfixia”, o qual remete a práticas contrárias de uma “ação humanitária”, que é como ele autodescreve a operação.
Também dista do humanitarismo a ameaça que, como um típico coronel de fazenda de um país latifundiário e bestial, faz a um dos recolhidos:
“rapaz, se tu falar mais uma vez, eu mando te carregar. Cê vai ficar na tua quieto, sentado. Cê não vem pra cá que aqui não é Venezuela”.
Estará Rodrigues incomodado com a grande população venezuelana que Chapecó recebeu nos últimos anos? Sendo uma cidade próspera e pujante, ela é um forte polo de atração migratória! E não é só agronegócio … Tem, por exemplo, o segundo maior aeroporto de todo o oeste do RS/SC/PR (superado apenas por Foz do Iguaçu – e por fatores não econômicos), mas sua centralidade geográfica o faz atender toda aquela grande região (ao contrário de Foz).
Assim, naturalmente ela atrai todo tipo de gente, empreendedores e trabalhadores, que lá vão arriscar seus recursos e tentar a sorte. Jogo do contingente e inesperado, a loteria da vida não contempla a todos bondosamente. Diante dos fracassos (não apenas os econômicos, também o moral/social …), alguns desistem.Agnes Heller (num seminário organizado pelo Instituto de Economia/UFRJ no final dos anos 1990) vislumbrou que, quando se conclui que “não valha a pena viver”, grupos de baixa renda recorrem ao crack [e álcool], e os de alta renda ao Prozac¹.
Como é sabido, escapar pelo suicídio é um recurso praticamente restrito aos “ricos e privilegiados”. Já os mais humildes, quando se frustram e entregam, vão para a rua. Aqui há um viés de gênero: é raríssima a presença de mulheres em situação de rua…
Tratar de modo policialesco a população de rua, varrendo-a da paisagem urbana, apenas empurra o problema com a barriga para lugares “invisíveis” nas periferias, ou para outras cidades.
Mas, feito com espetáculo (helicópteros, TikTok …), é uma resposta rápida para cidadãos assustados com o crescimento da insegurança. Suficiente para eleger/reeleger prefeitos, ao custo de afundá-las no brutalismo e desprezo à vida … João Rodrigues quer ser o político catarina mais fiel à Bolsonaro. A disputa é dura, e não é só com o Governador. Também o prefeito de Criciúma, outra cidade-polo de Santa Catarina (esta da Região Sul), vem divulgando suas operações de retirada das ruas dos que nela vivem.
O fato é que o Brasil carece de uma efetiva abordagem nacional para a população em situação de rua. O escândalo da Cracolândia em Sampa é apenas a ponta visível do iceberg. As respostas do Estado são claramente insuficientes, pois esta não lhe é uma questão prioritária. Foi deixada aos cuidados dos santos Lancellottis da vida. Afinal, não é por acaso que somos campeões em exclusão social.
Nossa sociedade não cessa de produzir pobres em escala crescente. Estes, teimosamente, vagam pelas cidades. A situação é tão absurda que o STF (Alexandre de Moraes, em agosto/2023) ordenou ao governo federal elaborar, em 120 dias, um “Plano de Ação e Monitoramento para a Efetiva Implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua” …
Sem apresentar urgentes alternativas aos que vivem em extrema vulnerabilidade, a forma truculenta de limpar as ruas da cidade (escondendo-os ou reenviando aos municípios de origem) é tanto uma “solução” ilusória, falsa; quanto uma variante ideológica autoritária e regressiva da social condição humana.
Os segregando e asfixiando, temos cidades hostis à presença visível dos pobres, insensíveis aos seus dramas. Elas exalam um sentimento de rejeição do desamparado, denominado de “aporofobia”², uma patologia social, um tipo de fobia discriminatória que viola a dignidade de pessoas. Permanecer nesta via é, lentamente, perder nossa humanidade.
¹Heller: “Uma crise global da civilização: os desafios futuros”. In: “A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI”. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p. 28.
²Adela Cortina: “Aporofobia. A aversão ao pobre. Um desafio para a democracia. São Paulo: Contracorrente, 2020.
*Armando de Melo Lisboa é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais do Centro Socioeconômico (CNM/CSE) da UFSC e ex-diretor da Apufsc-Sindical (2006-2010)