Por Fábio Lopes da Silva*
Só recentemente, assisti à série Chernobyl, lançada com enorme sucesso em 2021. A obra me fez pensar muito na UFSC. Guardadas as devidas proporções, as analogias entre o que lá aconteceu e o que hoje estamos experimentando em nossa instituição não são poucas.
Como se sabe, a antiga URSS conheceu uma estagnação econômica brutal a partir da gestão de Leonid Brezhnev. Mas a Guerra Fria continuou exigindo dispêndios enormes do Estado. Ora, como conciliar essas exigências com uma capacidade cada vez menor de investimento? Fácil: com gambiarras e negligência diante daquilo que se supunha que pudesse ser empurrado com a pança. Procrastinação ou soluções baratas e perfeitamente inseguras passaram a ser o pão de cada dia no país. A aposta era a de que desastres são coisa rara. O único problema com essa maneira de pensar e agir é que a lei das probabilidades é implacável: quando as fragilidades se disseminam aos montes e por muito tempo em um sistema, as chances de um incidente grave – que, para cada caso isolado, de fato são pequenas – aumentam consideravelmente. Mais dia, menos dia, bum!
Como os responsáveis por uma governança inepta e imprevidente como essa conseguem se equilibrar no fio da navalha por anos a fio? Por um lado, propagando mentiras e omitindo informações; por outro, contando com a passividade dos cidadãos ou súditos (construída à base de repressão, carreirismo, corrupção ou outro estratagema qualquer).
A UFSC não é a URSS, e os centros de ensino não são Chernobyl: ça va sans dire. Não somos um Estado estagnado, e nada como a KGB circula entre nós. Mas somos uma universidade fustigada até os ossos por desfinanciamento e gravíssimos problemas internos de gestão, assim como somos uma comunidade anestesiada pelas estranhas circunstâncias políticas, culturais e sociais sob as quais vivemos. De resto, estamos obviamente sitiados por um mar de desinformação alimentado pela Reitoria e o governo federal. Leiam, por exemplo, o que se publica nos órgãos oficiais de notícias da UFSC. Tudo lá é cor de rosa, como se não atravessássemos uma tormenta de proporções bíblicas. Nenhuma palavra é dita sobre os índices crescentes de evasão, a baixa procura em dezenas de cursos de graduação, a incompatibilidade entre nossas estratégias pedagógicas e os novos processos de aprendizagem, os problemas crescentes de manutenção predial e infraestrutura, etc. Pior: casos claros de desmazelo continuado da Reitoria – resolvidos às pressas e improvisadamente só quando a situação chega ao limite do limite do limite do insustentável – surgem na imprensa oficial como exemplos de atuação destemida e diligente da Administração Central. Que o digam os diretores do CTC e do CCS, que há cerca de quinze dias viram o único cabo que ligava seus centros ao sistema de abastecimento de energia se romper mesmo depois de terem dado mil avisos prévios de que isso estava para ocorrer e até haverem se prontificado a pagar por um novo cabeamento. Quem lê o Notícias da UFSC, no entanto, não fica sabendo de nada disso, só da parte em que, depois de o cabo estourar, a Reitoria finalmente entrou em cena e (em um golpe de pura sorte) obteve a pronta entrega de cabos que não costumam estar imediatamente disponíveis no mercado. No texto da reportagem, os vícios viram virtude, e os culpados se transformam em vítimas e heróis. É o Pravda fazendo escola, e isso em uma universidade que forma jornalistas e deveria ser devotada à verdade.
Em artigo publicado neste mesmo espaço na semana passada, os Prof. Fabrício Neves e Rodrigo Moretti mencionam uma série de lacunas na manutenção de edifícios e equipamentos. A lista que eles produziram está longe de ser completa, mas é suficiente para mostrar às pessoas que, como os soviéticos na época de Chernobyl, estamos sob o signo de uma combinação perversa de falta de recursos e falta de competência, coragem e ética na gestão do que estaria a nosso alcance fazer. Estudantes, docentes, TAEs e trabalhadores terceirizados têm vindo à UFSC sem estar minimamente informados a respeito da extensão dos problemas escondidos em fiações danificadas, aparelhos de ar condicionado sem higienização, bebedouros com filtros inativos, banheiros em frangalhos e toda sorte de riscos gerados por péssimos ou inexistentes serviços de manutenção. Não é só uma questão de desconforto e violação de condições elementares de trabalho mas um conjunto de problemas que, sem exagero, coloca a saúde e, no limite, a vida das pessoas em jogo.
Há a crise das democracias, a crise mundial, a crise das universidades pelo mundo, a crise brasileira, a crise das instituições de ensino superior no país. Mas há também a crise da UFSC, isto é, um conjunto de entraves que não se explicam só pelo desfinanciamento. Há, enfim, uma crise que cabe a nós enfrentar e resolver. Somos em grande medida vítimas de um mundo complicado. Mas não somos só vítimas. Somos – uns mais, outros menos – responsáveis pelo que nos sucede. Temos instrumentos para corrigir rotas. O preço é suportar tensões internas, dizer certas verdades, fazer sacrifícios, exigir sacrifícios de terceiros, organizar o que está disperso, denunciar mentiras e omissões, cumprir a lei onde ela não está sendo cumprida, exigir o cumprimento da lei onde se tenta driblá-la. Tudo o que, até onde consigo ver, a Reitoria não se mostra minimamente disposta a fazer. Pelo contrário. Ela parece movida pela convicção de que a escola soviética de gestão dá conta do recado.
Cada geração tem seu desafio, e o nosso é atravessar a crise atual da UFSC. Tivemos a má sorte de viver em um tempo em que a Universidade está caindo aos pedaços fisica, moral e politicamente. Quiséramos ter nascido em uma época de paz e sossego, mas não é esse de modo algum o caso. A lenta deterioração da universidade pode dar a impressão de que nada está acontecendo ou de que se pode normalizar a crise, como o proverbial sapo que vai se adaptando ao aquecimento da panela. Mas não é assim: o apodrecimento contínuo do sistema é um convite crescente – crescente do ponto de vista probabilístico – a um acontecimento catastrófico. Se as pessoas não haviam se dado conta disso, é hora de saber o que está acontecendo – e principalmente de procurar saber o que está acontecendo, coisa que, por ora, só os diretores de centro vem fazendo regularmente. Já não há como escapar: estamos avisados. Resta repetir Hamlet: O cursed spite, that ever I was born to set it right.
*Fábio Lopes da Silva é diretor do CCE/UFSC