Karolyna Marin Herrera, do departamento de Zootecnia e Desenvolvimento Rural, acompanhou a vida das mulheres do campo para seu mestrado e doutorado
A professora Karolyna Marin Herrera, do departamento de Zootecnia e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal de Santa Catarina (DZDR/UFSC), acompanhou de perto a vida das mulheres no campo durante seu mestrado e doutorado, ambos realizados no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Ciência Política (PPGSP/UFSC). Constatou que elas cuidam da família, das plantas, dos animais e do meio ambiente. Costumam acordar mais cedo que os maridos e sequer conseguem descansar após o almoço, ao contrário dos homens. Ainda assim, esse trabalho de cuidado não é reconhecido e valorizado por seus familiares e pela sociedade como um todo. As próprias mulheres, inclusive, frequentemente não percebem a importância das tantas atividades que realizam dia após dia. Certa vez, Karolyna perguntou a uma agricultora qual era o seu trabalho: “Ela me disse que não fazia nada, porque entende trabalho como trabalho produtivo, voltado a gerar renda.”
O trabalho de cuidado realizado pelas mulheres ganhou visibilidade midiática recentemente, por ter sido o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Na academia, o assunto já vem sendo pesquisado há alguns anos, mas ainda é uma área de estudos nova e mais voltada ao contexto das cidades: “A reflexão feminista está muito concentrada na realidade de mulheres urbanas e o debate sobre o trabalho de cuidados não é diferente. Em minha pesquisa, concluí que o trabalho de cuidados é inerente à experiência feminina, mas a experiência das mulheres rurais difere das urbanas pelo seu modo de vida”, avalia a pesquisadora.
Karolyna defendeu a tese “A jornada interminável: a experiência no trabalho reprodutivo no cotidiano das mulheres rurais“, em 2019. Antes disso, concluiu a dissertação “Invisibilidade do trabalho feminino na agricultura familiar: Uma análise a partir da perspectiva da multifuncionalidade agrícola“, em 2015. Atualmente continua se dedicando ao tema no projeto de pesquisa “Análise da participação e protagonismo das mulheres na gestão e trabalho em unidades de produção familiares de Santa Catarina”, financiado pela Fapesc (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina). Suas pesquisas são motivadas, segundo ela, sobretudo por acreditar no potencial da universidade em contribuir para a transformação da sociedade: “Há alguns anos, soube que uma juíza tinha dado ganho de causa para uma agricultora que atuava como caseira de um sítio, e não era remunerada, usando trechos de meu trabalho para embasar a decisão. Fiquei muito feliz em saber que minha pesquisa estava extrapolando os muros da universidade.”
A inspiração
Nascida e criada na cidade de São Paulo, onde viveu quase a vida toda, Karolyna não tinha qualquer proximidade com o ambiente rural antes de iniciar sua trajetória acadêmica na área. Interessada nos estudos feministas, a pesquisadora começou a entrar em contato com a situação das mulheres do campo através do trabalho da professora Maria Ignez Silveira Paulilo, que veio a ser sua orientadora no mestrado e doutorado. “Refletir sobre as mulheres rurais partiu mais de uma admiração pelo trabalho dela do que de uma familiaridade que eu tinha com o ambiente rural. Eu estava com vontade de conhecer algo novo e fiquei muito admirada por sua qualidade de escrita, por todas as questões que ela trazia relacionadas à problemática do trabalho das mulheres rurais”, relata.
Maria Ignez estuda o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e, em sua primeira reunião com Karolyna, sugeriu que ela fosse a campo conhecer pessoalmente a realidade dessas agricultoras. Karolyna seguiu o conselho e participou do Encontro Nacional de Mulheres Camponesas realizado em 2013, em Brasília: “Fiquei muito impressionada. Vendo milhares de mulheres e ouvindo diferentes histórias, eu pensei: ‘É isso o que eu quero estudar.’ Gostei muito do que presenciei lá e comecei a ficar muito curiosa para conhecer essa realidade rural.” Para sua pesquisa de mestrado, Karolyna entrou em contato com o MMC e pediu que lhe indicassem algumas mulheres com quem poderia conversar. Sua ideia era dar visibilidade ao trabalho delas, olhando para o rural com outra lente, voltada para outras funções do rural, além da função de produção.
Karolyna entrevistou 16 camponesas do município de Quilombo, no oeste de Santa Catarina, para entender quais funções essas mulheres exerciam no campo. Elas foram questionadas sobre suas atividades cotidianas, por meio da metodologia do uso do tempo. “Eu perguntava: ‘O que você fez ontem?’. Essa era uma forma de entender qual é o trabalho delas, uma vez que muitas consideram que apenas auxiliam no trabalho do marido, portanto, ‘não trabalham’, ‘só ajudam’. Meu objetivo era classificar o trabalho das mulheres para mostrar como a ação delas era imprescindível para a manutenção e reprodução social e econômica das famílias e das comunidades, principalmente do ponto de vista da segurança alimentar.”
Após estar mais familiarizada com os modos de vida dessas camponesas, a pesquisadora sentiu que poderia ir além no doutorado: “No mestrado, entrei na casa dessas mulheres, comecei a ver seu cotidiano e a me despertar para conhecer o que é o trabalho de cuidado para elas. Comecei a perceber a importância desse trabalho.” Karolyna logo se deparou, entretanto, com a lacuna de literatura específica sobre as mulheres do campo: “Os estudos sobre o trabalho de cuidado são recentes no Brasil. Comecei a ler muitas coisas interessantes, mas sempre sobre o meio urbano, principalmente pautada nas trabalhadoras domésticas e enfermeiras. Ainda não havia nada sobre o ambiente rural.” A pesquisadora decidiu então documentar e refletir teoricamente sobre as particularidades desse contexto.
O trabalho de cuidado no campo
No doutorado, Karolyna acompanhou o cotidiano de 10 agricultoras, de diferentes municípios do oeste catarinense. Ela se hospedava em suas casas, observava e anotava tudo o que faziam, além de lhes perguntar sobre o trabalho de cuidado. Seu tempo de permanência nessas residências durava de dois a cinco dias: “Eu me propus a ficar quanto tempo fosse, mas elas me davam um limite. A carga de trabalho é muito intensa e ter alguém para receber é muito trabalhoso. Eu sabia que minha presença iria alterar a dinâmica.” Essa estadia na casa das agricultoras, mesmo que breve, foi suficiente para os objetivos de sua pesquisa: “Ficar na casa delas foi essencial, pois consegui observar coisas que uma entrevista não mostra. Eu queria observar o cuidado e queria que me contassem sobre esse trabalho ao longo de suas vidas. Então acordava junto com elas e ficava o dia todo acompanhando elas. Conversava somente nos intervalos, na hora do chimarrão, enquanto lavavam roupa ou cozinhavam, porque elas passavam o dia todo entrando e saindo da casa, o dia todo se movimentando.”
A principal contribuição de sua pesquisa foi mostrar as especificidades dos cuidados do meio rural: “Já tinha lido bastante sobre a cidade. Mas vi que, no rural, o cuidado extrapola muito as pessoas e vai além do círculo familiar mais próximo. Tem muito filho que mora longe, parentes sem meios de subsistência. O cuidado se estende para a comunidade ou para a família estendida.” Para Karolyna, ficou evidente que as mulheres do campo são encarregadas de ainda mais afazeres do que as da cidade: “O trabalho de cuidado no campo engloba também os animais, as plantas e a natureza como um todo. Além disso, as mulheres não saem de suas casas para trabalhar, o que faz com que as atividades cotidianas se confundam. Não há uma separação entre o trabalho realizado para gerar renda, o ‘produtivo’, e o trabalho doméstico e de cuidados, que seria o ‘reprodutivo’. As mulheres dedicam seu tempo quase exclusivamente ao trabalho no estabelecimento rural, independentemente da natureza ou da finalidade desse trabalho.”
O ambiente rural também demanda uma atenção constante e quem faz isso geralmente é a mulher, que permanece em estado de alerta, inclusive à noite. A pesquisadora observou que as mulheres tinham um sono leve e permaneciam atentas a tudo. Se um boi mugia ou uma criança chorava, era a mulher quem se levantava para verificar se estava tudo bem. Pela manhã, acordavam mais cedo que os maridos. “A mulher acorda antes para adiantar coisas, colocar a lenha no fogão, esquentar a água do chimarrão. Os homens sempre dormiam depois do almoço, mas as mulheres nunca dormiam ou, quando o faziam, era por menos tempo. À noite, os homens descansavam. Já as mulheres faziam o jantar, lavavam a louça e organizavam coisas para o dia seguinte.”
A maior sobrecarga sobre as agricultoras também está relacionada, segundo a pesquisadora, à falta de oferta de serviços públicos e privados de cuidados, como creches, hospitais, casas de idosos etc. “Isso intensifica a responsabilidade das mulheres no trabalho de cuidados. Além disso, a contribuição de outra pessoa (geralmente mulheres) para delegar o trabalho, seja remunerado ou não, é mais escassa no rural. Seja pela falta de recursos financeiros, pela distância entre os estabelecimentos rurais ou mesmo pela indisponibilidade de tempo das mulheres que fariam esses serviços.” Também chamou a atenção da pesquisadora a falta de liberdade dessas mulheres. “Estar lá me fez perceber como a vida delas é tão vigiada e sem liberdade. Em geral, não dirigem, é bem comum as mulheres não saberem dirigir no campo. Elas não têm acesso a transporte público e, para ir a qualquer lugar, o marido precisa levar. Se saem na estrada sozinhas, não são bem vistas.”
Karolyna ressalta que comparar a realidade das mulheres rurais com as urbanas não implica em uma hierarquização das experiências. “São modos de vida distintos e por isso algumas experiências se assemelham e outras não. Nós que estudamos as relações de gênero no meio rural costumamos ouvir ‘ah, mas na cidade também é assim’, como se falar sobre um modo de vida distinto não tivesse tanta importância, pois não traz novidades.” A preocupação com o meio ambiente é mais um aspecto que a pesquisadora destaca como especificidade do campo: “Há uma tendência de produzir alimentos de forma agroecológica, principalmente nas hortas, já que aqueles cultivos serão utilizados primordialmente para alimentação familiar e o uso de agroquímicos causam danos ao meio ambiente. Os animais, principalmente os de pequeno porte, são tratados com alimentação mais saudável, os cuidados com a saúde e o bem estar também são levados em conta, seja pela preocupação com a qualidade da alimentação da família, seja pela qualidade de vida dos animais.”
A questão da invisibilidade
Para Karolyna, está claro que as mulheres consideram o ato de cuidar como inerente à sua condição: “Entende-se que cuidar é de sua responsabilidade. Independentemente da maternidade, elas consideram que cuidar é constitutivo de sua posição na família e na sociedade. Quando eu perguntava ‘por que você cuida?’, as respostas eram: ‘porque é minha obrigação’, ‘porque sou mulher’, ‘porque amo’.” Ao mesmo tempo, a pesquisadora constata que, na maioria das vezes, elas mesmas não percebem a dimensão de seus esforços. E isso está relacionado ao fato de a própria sociedade não reconhecê-los, por ser uma trabalho que não gera renda. “A sociedade capitalista considera trabalho aquilo que gera renda, o próprio conceito de trabalho da economia neoclássica não incorpora as atividades realizadas fora da esfera da produção. As economistas feministas advogam pela reconsideração do conceito de trabalho, considerando ‘trabalho’ as atividades realizadas na esfera da produção e da reprodução.”
O trabalho de cuidado, explica a pesquisadora, seria invisível e não reconhecido justamente por ser realizado na esfera da reprodução, no universo privado, e por serem as mulheres as responsabilizadas. “Em diferentes sociedades, historicamente, o trabalho de cuidado recai sobre as mulheres. É como se fosse inerente à posição e à disposição feminina. A possibilidade biológica das mulheres serem mães está por trás desta determinação social.” Uma forma de tornar visível esse trabalho é fazer o que Karolyna procurou fazer em sua pesquisa: nomear, explicitar, descrever, quantificar. “Diversas feministas procuraram quantificar o trabalho doméstico e de cuidados de modo a demonstrar o valor que teria se fosse remunerado, inclusive calculando qual seria sua representação no Produto Interno Bruto (PIB). Também é utilizada a estratégia de mensurar o tempo despendido nas atividades, a fim de demonstrar a carga de trabalho e compará-la à dos homens.”
Como resultado desses esforços coletivos que vêm sendo empreendidos na academia e fora dela, esse debate tem ganhado mais visibilidade nos últimos anos: “A condição das mulheres não mudou, pelo contrário. Com a pandemia, diversos estudos mostraram que o trabalho doméstico e de cuidados foram intensificados, seja pelo confinamento, pelo trabalho remoto, pela precarização financeira das famílias, por condições de saúde adversas. Mas o tema tem tomado a esfera acadêmica e a esfera pública, fruto da mobilização das feministas acadêmicas e de organizações e movimentos sociais.”
Nesse sentido, a escolha deste tema para a prova de redação do Enem, para Karolyna, foi muito positiva. “Eu diria que a maior relevância foi ter trazido o tema para o debate nacional. Mas também considero muito interessante fazer os/as jovens refletirem. Tenho um sobrinho que fez o Enem e nunca tinha pensado no papel das mulheres na sociedade. Ele me disse que ‘não tinha repertório’ para escrever sobre o tema. Como muita gente, ele nunca parou para reparar que o cotidiano dele está repleto de ações de outras pessoas, sempre mulheres, para manutenção de sua vida. De um modo geral não somos levados/as a pensar sobre um trabalho que é essencial para manutenção da vida.”
Fonte: Notícias UFSC