Trabalho é da pesquisadora Cibele Oliveira Lima, doutora em Geografia, sob orientação do professor Jarbas Bonetti
Cheias, secas, desastres ambientais. As consequências das mudanças climáticas são tão visíveis quanto é o seu impacto em populações vulneráveis. Uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) recentemente premiada como a melhor tese de Geografia do país propõe um método para definir a vulnerabilidade das populações aos chamados eventos extremos em áreas costeiras, que levam a desastres ambientais e podem destruir bairros, cidades e causar prejuízos sociais e ambientais.
O trabalho da pesquisadora Cibele Oliveira Lima, doutora em Geografia, foi orientado pelo professor Jarbas Bonetti e reconhecido como o melhor estudo de doutorado do país na área das geotecnologias pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege). O estudo Metodologia para avaliação da vulnerabilidade social a eventos extremos costeiros no Brasil levou o prêmio Ailton Luchiari, entregue na primeira semana de outubro.
No estudo, a pesquisadora propõe formas de calcular a vulnerabilidade social de diferentes regiões e utiliza como amostra 281 municípios costeiros, cobrindo todo o litoral brasileiro. O detalhamento é intramunicipal, mas também permite que se trabalhe com diferentes escalas, como estaduais e regionais. “O objetivo é contribuir para minimizar essa lacuna do conhecimento ao propor uma metodologia para obtenção de um Índice de Vulnerabilidade Social a eventos extremos costeiros”, explica.
A pesquisa constatou que as regiões Norte e Nordeste apresentam a maior vulnerabilidade social do litoral brasileiro. Maranhão, Pará e Bahia sofrem o maior risco. Apesar de terem, em geral, os menores índices do Brasil, os estados da Região Sul também possuem áreas com determinantes que indicam riscos, como na fronteira entre Paraná e São Paulo, foco de desastres recentes. Em Florianópolis, moradores de regiões de bairros do Norte e Sul da Ilha estariam mais suscetíveis a danos e exposição a desastres.
Para chegar aos resultados, Cibele analisou criticamente como a vulnerabilidade social costeira era estudada por cientistas no mundo todo. Além disso, avaliou e selecionou, entre as variáveis do Censo 2010, aquelas que poderiam ser consideradas indicadores da vulnerabilidade social a eventos extremos costeiros. Com isso, conseguiu desenvolver e representar em mapa o Índice de Vulnerabilidade Social aos eventos extremos costeiros, o IVS-Coast.
“Antes de entrar no doutorado eu trabalhei no IBGE, em uma bolsa de pesquisa com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais. Fizemos uma metodologia para aliar os dados do IBGE com os formatos das áreas de risco ao longo do Brasil. Foi aí que despertou meu interesse”, conta. A ideia era unir os principais campos de atuação – meio ambiente e sociedade.
A pesquisadora também pretendia trabalhar com um tema que pudesse beneficiar pessoas. “Para mim importava mais saber como aquela pessoa atingida ia conseguir se recuperar depois de um desastre e se ela tinha os meios para isso, daí a escolha desse tema”, conta. Para isso, Cibele também estudou o fenômeno denominado “evento extremo costeiro” que expõe a zona costeira a riscos de danos, através de ondas de tempestade, marés meteorológicas e ventos contínuos de alta intensidade, por exemplo.
A inundação e a erosão costeira seriam, segundo a pesquisadora, os efeitos desse fenômeno. No caso da inundação, o aumento temporário do nível do mar em direção à costa pode afetar os locais mais baixos, deteriorando as residências e a infraestrutura urbana e salinizando os lençóis freáticos. Já a erosão é resultado da remoção de material sedimentar da linha de costa ao ser atingida por agentes da dinâmica costeira. Seus principais impactos são a destruição de residências e infraestrutura urbana, o comprometimento de defesas marinhas naturais e artificiais contra inundações e a perda de terras com valor econômico.
A escolha pelo recorte da costa foi pensando justamente em como essas regiões costumam ser alvo constante de catástrofes, já que as possibilidades de inundação são potencializadas pela proximidade com o mar. “Mas a metodologia e os dados podem ser replicados também para outras regiões, inclusive do interior do Brasil, e em outras escalas”, explica. A metodologia também pode ser atualizada com os dados censitários de 2022, já que na época da pesquisa Cibele trabalhou com os de 2010, os mais recentes disponíveis até então.
Dez variáveis para entender a vulnerabilidade em regiões costeiras
Após uma rigorosa investigação em mais de 910 documentos de janeiro de 1991 a março de 2019, Cibele mapeou o que os pesquisadores chamam de “estado da arte” na vulnerabilidade social costeira ao redor do mundo. O estado de arte tem o objetivo de investigar outras pesquisas que tratam do assunto e consolidar informações já referendadas para buscar o avanço na produção do conhecimento.
Segundo Cibele, essa etapa da pesquisa trouxe as principais lacunas do conhecimento sobre o assunto, apontou os principais questionamentos levantados pelos demais pesquisadores do tema e possibilitou o contato com as metodologias mundialmente mais utilizadas para acessar a vulnerabilidade social.
No Índice de Vulnerabilidade Social a eventos extremos do Brasil sintetizado na pesquisa, são dez os indicadores, agrupados em três eixos – um relacionado ao domicílio, um ao morador e um terceiro com as características de infraestrutura local. Variáveis como densidade demográfica, raça, alfabetização, pavimentação e coleta de lixo, por exemplo, compõem o índice.
Para a pesquisadora, no entanto, existe uma variável que se destaca em todos os cenários: a da renda. Essa variável foi importante especialmente porque, diante da possibilidade de algum fenômeno costeiro, são as populações de renda mais baixas que estão mais expostas a perda de bens e as que terão mais dificuldades de reconstruírem imóveis ou se reabilitarem diante dessas perdas. “Quanto menor a renda, mais difícil e mais demorado é para uma pessoa absorver e se recuperar das perdas pós-evento”, registra o estudo.
A questão da infraestrutura também é um componente importante do índice, já que aspectos como a pavimentação, por exemplo, podem afetar a mobilidade e a possibilidade de fuga e evacuação em caso de necessidade, além da chegada de socorro e ajuda pós-desastre. Cruzando estes dez indicadores em linguagem de programação, chegou-se, então, a um valor – o Índice de Vulnerabilidade Social a eventos extremos costeiros do Brasil.
Norte e Nordeste são mais vulneráveis
Os indicadores gerados no estudo indicam que as regiões costeiras do Norte e do Nordeste do país são as mais vulneráveis socialmente a desastres. Pará (PA), Amapá (AP), Maranhão (MA) e Piauí (PI) foram os estados cuja região litorânea apresentou o maior índice. Em contrapartida, os estados do Sudeste e do Sul do Brasil tiveram os indicadores mais baixos – o que não indica, entretanto, homogeneidade entre todas as cidades e localidades da região.
Em uma escala mais detalhada percebe-se que as capitais de todos os estados apresentam menores índices de vulnerabilidade social quando comparadas aos demais municípios do mesmo estado. As capitais com maior vulnerabilidade São Macapá (AP), Maceió (AL) e São Luís (MA), e as de menor vulnerabilidade são Florianópolis (SC), Vitória (ES) e Rio de Janeiro (RJ). Apesar disso, mesmo nestas cidades existem áreas que exigem maior atenção do poder público quanto aos riscos para moradores, principalmente quando analisadas na escala intramunicipal.
O Estado do Maranhão registrou o maior número de municípios com vulnerabilidade social alta ou muito alta – um total de 30, enquanto o Pará teve treze cidades nestas condições e a Bahia dez. Ainda, dos 281 municípios analisados, 129 tiveram o índice mais baixo – o equivalente a 45,9%, percentual maior dos que entre aqueles que possuem média e alta vulnerabilidade – respectivamente 21,3% e 32,8%.
De acordo com a pesquisadora, a variável que mais influenciou o aumento da vulnerabilidade nas regiões sul e sudeste foi a idade vulnerável, que projeta residências com moradores menores de 10 e maiores de 60 anos. Já as regiões Norte e Nordeste foram influenciadas de forma mais homogênea pelas variáveis relacionadas às características socioeconômicas e de acesso à infraestrutura básica.
Em Santa Catarina, indicadores intermediários
O estudo também constatou que Santa Catarina tem índices de vulnerabilidade social mais intermediários. Em escala nacional, todo o Estado teria vulnerabilidade social baixa. As cidades de Araquari, no Norte, e Paulo Lopes e Passos de Torres, no Sul, detém os maiores índices, enquanto Balneário Camboriú tem o menor. Cidades como Itapema, Florianópolis e São José também têm indicadores mais baixos.
Isso não significa, entretanto, que as pessoas que habitam nestas cidades não estejam vulneráveis aos eventos extremos . Quando analisados em escalas municipais, por exemplo, os índices permitem que se perceba quais áreas dentro das cidades demandam mais atenção de políticas públicas. “O interessante do trabalho é que ele possibilita essa análise multiescalar. Se mudarmos essa escala de análise, vamos ver quais regiões estão sofrendo mais, por exemplo, nessa época de chuvas. Vamos ver que elas estão localizadas em áreas com maior vulnerabilidade”, explica.
Em Florianópolis, por exemplo, áreas do Norte da Ilha, como Ingleses e Canasvieiras, Leste, como a Barra da Lagoa, e Sul da Ilha, como Morro das Pedras, Ribeirão da Ilha e a região próxima ao aeroporto, seriam as mais ameaçadas.”Mesmo o município de Florianópolis, que apresenta vulnerabilidade social baixa dentro do estado de Santa Catarina, possui diferentes padrões ao longo de seu território”, conta ela, que fez uma análise específica da cidade com o objetivo de confrontar os dados obtidos com a realidade observada.
Os resultados da tese também apontam que as menores vulnerabilidades sociais de Florianópolis estão nos centros urbanos municipal, nos centros secundários e em bairros estruturados e voltados ao turismo de maior poder aquisitivo. Já as vulnerabilidades sociais medianas estariam nas praias do setor leste do município, regularmente afetadas por problemas de erosão costeira. Em contrapartida, as populações mais vulneráveis socialmente estão nos bairros das baías que separam a ilha do continente, nos bairros com populações de menor renda e nas proximidades de áreas de manguezal.
A pesquisadora destaca que o estudo avança em direção a uma lacuna científica, já que não havia, até então, uma metodologia com esse detalhamento específico para a análise da vulnerabilidade social. Com a ferramenta desenvolvida por ela, é possível que gestores públicos consigam identificar diversos problemas nas suas regiões e planejem desde estratégias de prevenção a desastres até políticas públicas de enfrentamento à desigualdade.
“Os gestores podem, através de suas equipes, identificar onde é necessário investir mais, não só em infraestrutura, mas também em programas para melhorar a renda, por exemplo. Percebemos no Brasil inteiro que existem diferenças na costa – pessoas com a sua casa de veraneio e pessoas que podem ter seu único imóvel, de onde muitas vezes provem o sustento da família, destruído por um evento extremo, como as casas de pescadores, por exemplo”, analisa.
Fonte: Notícias UFSC