A esquerda na correlação de forças políticas em Santa Catarina

Por José Roberto Paludo* [1]

Obviamente que a trajetória da esquerda em Santa Catarina não se resume à história do Partido dos Trabalhadores, porém, ela não pode ser contada sem considerar o papel do PT, especialmente nas últimas três décadas. É sobre esse período que se concentra esta análise, por isso, traz-se esse partido como fio condutor da narrativa.

A ampla literatura sobre o PT no Brasil contrasta com poucos estudos específicos voltados para as experiências regionais, especialmente em Santa Catarina. Ainda que se trate de um estado considerado de perfil político conservador, com raros momentos de exceção (dentre os quais as eleições de 2002), Santa Catarina foi um das nove federações definidas pela coordenação pró-PT em 1979 para alcançar o número mínimo de filiações necessárias para a viabilização do registro nacional do novo partido.

Na história política de Santa Catarina se pode verificar, na prática, o conceito teórico de oligarquia. Segundo a cientista política Aurea Petersen (1998)[2], oligarquia é uma situação na qual poucos governam mal tendo como objetivo principal a realização dos seus próprios interesses. Num estudo sobre os partidos brasileiros a partir da era Vargas, Maria Vitória Benevides (1981)[3] demonstra que em Santa Catarina havia um equilíbrio de forças entre o PSD e UDN, cabendo ao PTB a função de “fiel da balança”. A luta política travava-se entre os Konder e o clã dos Ramos dissidentes do PSD nacional. A aliança familiar dos Konder com Irineu Bornhausen (eleito governador em 1950) passou a dominar a política udenista no estado, inclusive após 1964.

Ainda durante a ditadura militar, as oligarquias se uniram na Arena, depois no PDS; em seguida, passaram a atuar em partidos diferentes, PPB e PFL, revezando-se no poder desde a proclamação da República, exceto pela eleição do Governador Pedro Ivo Campos (PDMB), em 1986, dos Senadores Evilásio Vieira (MDB – 1974), Jaison Tupy Barreto (MDB – 1978), e Dirceu Carneiro e Nelson Wedekin (PMDB – 1986).

Nas eleições de 2002, que ficou fora da curva, foi eleito Luiz Henrique da Silveira (PMDB), com apoio do PT no segundo turno, mas que logo em seguida se aliou com Bornhausen (PFL) para compor o governo e formaram um bloco que permaneceu no poder praticamente até 2018. Portanto, essas exceções não resultaram em mudanças no modelo político e econômico catarinense. Mudaram os nomes, mas a lógica oligárquica permaneceu.

A primeira eleição que o PT disputou no Brasil e em Santa Catarina foi em 1982 tendo Eurides Mescolotto como candidato a governador obtendo 6.803 votos e Valmir Martins, candidato ao Senado com 6.719 votos. Na eleição seguinte, o PT manteve-se no mesmo perfil de disputa, concorrendo taticamente com o objetivo de ampliar a base partidária. Assim, em 1986, o candidato a governador foi Raul Guenther (50.139 votos) e para o Senado Isolde Espíndola (74.477 votos) e Reinaldo Machado (57.452 votos). Naquele pleito, o PT elegeu a primeira parlamentar estadual: Luci Choinacki.

Nas duas eleições seguintes, o PT não teve candidatura ao governo do estado, pois em 1990 apoiou Nelson Wedekin (PDT), indicando Eurides Mescolotto para vice (205.931 votos) e José Fritsch ao Senado (158.993 votos). Nesse pleito, Luci foi eleita deputada federal pela primeira vez e na Assembleia Legislativa o PT elegeu quatro deputados: Vilson Santin, Itelvino Furlanetto, Afonso Spanhol e Milton Mendes.

Em 1994, o PT apoiou novamente Wedekin para governador e indicou Luci Choinacki para o Senado que obteve 621.366 votos. Foram eleitos Fritsch e Milton Mendes para deputados federais e outros quatro deputados estaduais: Itelvino Furlanetto, Carlito Merss, Ideli Salvatti e Neodi Saretta.

O ano de 1998 é chave para compreender o contexto atual: o PT retomou a dianteira na disputa ao governo do estado e lançou Milton Mendes como candidato a governador, que obteve 386.332 votos, um percentual significativo de quase 15,92%.

Na eleição seguinte (2002), esse movimento de ascendência da esquerda avançou, quando o PT obteve 834.385 votos, um percentual de 27,33%, chegando muito próximo de ir para o segundo turno com José Fritsch candidato ao governo, tendo Milton Mendes ao senado (884.024 votos) e Ideli Salvatti eleita senadora com 1.054.304 votos.

Naquele ano, o Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, obteve em Santa Catarina um dos maiores percentuais no primeiro turno (56,6%), que não se repetiu em nenhuma das eleições seguintes. Antes, pelo contrário, o estado de Santa Catarina passou a ser um dos colégios eleitorais mais favoráveis aos candidatos conservadores.

Em 2006, Fritsch concorreu novamente ao governo do estado obtendo 14,3%; Ideli Salvatti, em 2010, obteve 21,9%;  Vignatti, em 2014, obteve 15,56%; Décio Lima, em 2018, 12,78% e, novamente em 2022, foi para o segundo turno pela primeira vez, porém, com apenas 17,4% e chegou a 29,23% no segundo turno.

O histórico do resultado das eleições para Presidente da República no estado de Santa Catarina neste período acompanha a mesma tendência das eleições estaduais, com percentuais um pouco acima (exceto com Fernando Haddad em 2018). Ou seja, de 56,59% no primeiro turno em 2002, o próprio Lula candidato à reeleição caiu para 33,22% em 2006; depois 38,71% com Dilma candidata em 2010; e 30,76% na reeleição em 2014; caindo vertiginosamente para 15,13% com Fernando Haddad no primeiro turno e apenas 24% no segundo turno; e, finalmente, em 2022, Lula obteve 29,54% no primeiro turno e apenas 30,73% no segundo turno.

Portanto, o ano de 1998 é o que melhor reflete o acúmulo de forças da esquerda em Santa Catarina, pois houve uma construção política que foi sendo desenhada com antecedência, tanto em relação à candidatura de Milton Mendes para governador para colocar o PT na dianteira da correlação política entre direita e esquerda no estado de Santa Catarina, quanto nas candidaturas locais. Dessa forma, pode-se dividir essa trajetória em três momentos:

  • a construção dos anos 1990 até a eleição de Lula em 2002, quando o PT foi se consolidando como terceira força política no estado, pois, antes disso a polarização acontecia intraoligarquias, desde os anos 1940 entre UDN e PSD. Depois, na ditadura militar, entre Arena e MDB, que se manteve até 1998, quando o PT disputou pela primeira vez o governo do estado como um partido viável. Em 2002, o PT chegou embalado por uma onda favorável nacional e uma presença importante nos municípios (2000) quando administrava quase 40% do PIB e da população do estado, através dos governos de algumas das maiores cidades, Blumenau, Chapecó, Criciúma, Concórdia, Gaspar, Indaial, Rio do Sul, e outras seis pequenas cidades;
  • a chegada do PT ao governo federal (2002) continuou se refletindo em Santa Catarina nas eleições municipais seguintes quando o PT, por um lado, ganhou Joinville, Itajaí, Brusque, e reelegeu Criciúma e Concórdia, mas, por outro lado, perdeu Blumenau, Chapecó, Indaial, Gaspar e Rio do Sul. O governo federal fez importantes ações de infraestrutura e Santa Catarina “nunca antes na história” esteve tão bem representada com um Ministro da Pesca, uma Senadora, a Presidência da Eletrosul, do Besc e da Assembleia Legislativa. Mesmo com ações efetivas no campo das políticas públicas e investimentos no estado, esse também foi um momento de rearticulação das oligarquias para estancar o crescimento da esquerda. Depois das eleições de 2004, o processo da AP 470[4] teve forte impacto na opinião pública catarinense aliado com a unificação do PMDB com a oligarquia tradicional que recolocou o estado no contexto habitual da polarização entre as antigas forças políticas unificada contra um “inimigo” em comum (o PT), enquadrado como uma ameaça a ser eliminada do cenário futuro. Portanto, o PT passou a perder força nos municípios e recuou para o patamar de 1998, alcançando uma média de 33% de votos no primeiro turno para presidente nas eleições seguintes (2006, 2010, 2014 – 2018 foi a exceção porque baixou para 15%). No pleito de 2018, o PT também teve o pior desempenho para governador com 13%. No mesmo período, houve uma oscilação um pouco maior da votação do PT para governador do Estado, porém, a média foi de 16% nas cinco eleições seguintes (2002 até 2018), mantendo o patamar de 1998; enquanto isso, os candidatos à presidencia da República de direita, que polarizaram com o PT, alcançaram em média aproximadamente 50% dos votos em Santa Catarina;
  • o terceiro momento, que pode ser chamado de reposicionamento eleitoral em Santa Catarina, tem características espelhadas na eleição de 2002, pois a onda favorável ao PT naquele momento encontrou uma antítese para alavancar o antipetismo em 2018 e em 2022, como uma oportunidade de se vingar da frustração depois de quatro eleições, transformando a reação ainda mais forte do que a ação anterior, considerando que Bolsonaro obteve 62,2% no primeiro turno de 2018 e 69,27% em 2022.

Assim, no intuito de interpretar esse fenômeno político, arrisca-se apontar três hipóteses que podem servir de insights para futuras pesquisas:

  • a estrutura socioeconômica da população catarinense, como um dos estados de etnia majoritariamente branca, de classe média e escolarizados, segundo as pesquisas nacionais em 2022 (FPA, 2022)[5], foi o perfil mais alinhado com o bolsonarismo, tornando-se um terreno fértil para as ideias de supremacia racial, que atribui sua condição de vida à meritocracia e a à síndrome do indivíduo injustiçado pelo Estado opressor, que paga seus impostos e não recebe em troca na mesma proporção, ou seja, “estamos trabalhando para sustentar os pobres do nordeste”;
  • essa caricatura de estrutura social é mais fictícia, pois na vida real não se sustenta quando analisadas racionalmente as suas contradições, no entanto, simplifica uma narrativa que constrói as condições favoráveis para um discurso de polarização de valores ideológicos pré hobbesianos, do Leviatã, como uma grande ameaça, tendo o PT como a encarnação do mal que usa o Estado contra os valores da família (educação), da propriedade (iniciativa privada) e da religião, alimentando assim o ódio ao “opressor” e alcançando o nível emocional, difíceis de serem contrapostos. Neste aspecto ideológico, há que se considerar o papel das mídias, não apenas os grandes veículos de comunicação que têm a frente os canais de televisão, redes de rádios,  jornais e sites de notícias, mas a rede organizada da cadeia de rádios e jornais do interior, que cumpriu um papel protagonista diuturnamente na disseminação dessa narrativa e propagação do ódio ao PT, especialmente em 2022;
  • em terceiro lugar, soma-se a esses fatores a configuração geopolítica do estado de Santa Catarina, descentralizada em centros regionais que concentram o poder econômico, político e o controle dos meios educacionais e culturais, que quando articulados em rede permitem um controle mais próximo do indivíduo, geram maior identidade (pois o mesmo discurso é traduzido nas questões locais) e constrangimento de quem se opõe. Essa engenharia geopolítica e econômica foi sendo gestada com o poder do Estado catarinense, desde a ocupação militar e a colonização na fundação das cidades no final do século XIX e início do século XX; depois, com a estruturação das cadeias produtivas regionais centralizadas em famílias que exerciam o poder econômico, político e cultural e, a partir da década de 1960, com os planos de metas governamentais quando o Estado catarinense financiou a infraestrutura rodoviária, financeira, educacional e de telecomunicações, mantendo cuidadosamente o controle nas mesmas mãos (Goulart, 2016)[6]. Quando o PT catarinense se refere em combater as oligarquias, na fase de auge em 2002, era disso que se tratava, porém, não houve continuidade dessa disputa e, na medida que o partido estava no governo (federal e em alguns municípios-chave), buscou-se alianças pontuais com oligarquias locais, também com interesses de acesso fácil às oportunidades de financiamentos, como por exemplo, as que foram oferecidas pelo BNDES, no mandato da Presidenta Dilma Rousseff, para fazer frente aos reflexos tardios da crise mundial de 2008, cujo resultado se transformou numa espécie de “cavalo de tróia” para desmontar as fortalezas do PT por dentro.

Do ponto de vista histórico, percebe-se que a direita brasileira tem pouca originalidade e quando se sente ameaçada busca orientações nos fóruns internacionais, mas também investe na produção de ideias, na formação de quadros e principalmente em comunicação. No auge do ciclo do petismo, criou-se uma sensação de que somente o PT colocava em prática tais fundamentos, mas há que se resgatar o papel do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), especialmente no período entre 1959 e 1966, focado na formulação do projeto político do regime militar no Brasil. Na na fase atual, Casimiro (2018)[7] descreve como isso se repete: “A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo”, apresentando uma radiografia do trabalho de pesquisa, formação e comunicação do projeto neoliberal no país, do qual, o chamado “gabinete do ódio” é apenas a ponta do iceberg que se utiliza desse potencial para destruição em massa, fazendo uso de fake news, a imagem e semelhança das ações capitaneadas pelo império das empresas de Donald Trump nos EUA.

Em Santa Catarina, ao longo da história, foi se estruturando uma rede de organizações da sociedade civil. Segundo o Censo do IBGE (2010), o número de Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos em Santa Catarina era de 30.108 (Paludo e Cruz, 2020)[8], dentre as quais algumas se destacam na liderança do projeto de poder da direita no campo empresarial, financiando estudos, elaboração, formação e comunicação deste projeto, como por exemplo, a rede de associações comerciais e industriais, a federação do comércio, da agricultura, de cooperativas, rádios e jornais do interior, e as próprias associações de municípios e do sistema de educação comunitária.

Assim, a combinação da descentralização das estruturas de poder em redes de oligarquias locais que atuam de forma articulada nas diferentes esferas de poder podem significar uma leitura importante para se entender o sucesso da reação antipetista em Santa Catarina contida entre os anos de 2006 e 2018 e exacerbada com o alinhamento do discurso de valores conservadores e do discurso do ódio encontradas no perfil bolsonarista.

O papel das lideranças políticas de perfil populista que se alimentam de figuras que simbolizam o “salvador da pátria” contra o inimigo que representa a ameaça, baseia-se na técnica de narrativa da “jornada do herói”, ou seja, quanto mais forte o inimigo, mais eu ganho força.

Se em âmbito nacional o PT ainda consegue equacionar essa condição de amalgamar toda a energia num único personagem que simboliza sua força política, não ocorre o mesmo em qualquer estado da federação, projetando unidade interna que supera as diferenças intrapartido que favoreçam o êxito das disputas eleitorais.

Por fim, pode-se reformular a indagação inicial: diante das condições atuais, acredita-se na possibilidade de uma nova reversão de ciclo político de polarização favorável à esquerda em Santa Catarina ou o PT permanecerá condicionado a ocupar um papel periférico na disputa estadual, cumprindo apenas o papel de coadjuvante nos pleitos nacionais?

*Este texto foi escrito pelo professor José Roberto Paludo, com base no ciclo de debates promovido pela Apufsc-Sindical “Por que Santa Catarina votou à direita?”


[1] Graduado em História (Unijuí) Mestre e Doutor em Sociologia Política (UFSC), Master em Ciência Política Aplicada (FIIAPP – Madri, Espanha), é professor de pós-graduação e no mestrado em práticas transculturais da Unifacvest (Lages) e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.

[2] PETERSEN, Áurea. et al. Ciência Política: textos introdutórios. 4. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

[3] BENEVIDES, M. V. M. A (1981) UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981;

[4] Ação Penal 470 movida pelo STF (Supremo Tribunal Federal), conhecido como Mensalão, julgou acusações de corrupção contra o PT, utilizando-se como método a tese de “domínio do fato” quando não houvesse provas materiais e de forma articulada com a mídia resultou no maior ataque contra a imagem do Partido dos Trabalhadores, com diferente intensidade em cada região do país.

[5] Fundação Perseu Abramo. Cultura Política: percepções e valores da população brasileira não polarizada. Núcleo de Opinião Pública, Pesquisas e Estudos. São Paulo: 2022. Disponível em https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2022/02/Estudo_Cultura-Poli%CC%81tica_11-de-fev.pdf. Acessado em 05 dezembro de 2022.

[6] GOULARTI FILHO, Alcides . Formação econômica de Santa Catarina. 3. ed. Florianópolis: UFSC, 2016.

[7] CASIMIRO, Flávio Henrique Calheiros. A nova Direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular. 2018.

[8] PALUDO, José Roberto; CRUZ, Marcio Lair Vieira . Indicadores de Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina no Século XXI. Edição Digital. Porto Alegre (RS): Usideias Editora, 2020