*Por Fábio Lopes da Silva
Na tarde da última quinta-feira, choveu forte em Florianópolis. O evento foi acompanhado por uma breve precipitação de granizo em certos pontos da cidade. Foi o que bastou para que muita gente escrevesse às direções de centro e coordenações de curso para saber se as aulas estavam mantidas no período noturno e mesmo no dia seguinte ao temporal.
Para mim – que já trabalho na UFSC há três décadas –, esse tipo de consulta soa muito estranha. Algo assim era simplesmente impensável há, digamos, dez anos. Pode ser que isso seja sinal de que as pessoas estejam mais conscientes dos cuidados que devam tomar consigo mesmas. Mas temo que se trate de coisa bem diferente: um sintoma de que a instituição se enfraqueceu a ponto de não mais oferecer aquele sentido elementar de segurança e autoconfiança a seus membros.
A UFSC nunca foi um exemplo de disciplina e compromisso. Ela sempre dependeu muito mais de iniciativas individuais do que de um esforço coletivo e concertado. Mas jamais experimentamos uma condição minimamente comparável ao clima de desordem, confusão ideológica, dispersão, desmobilização e laissez-faire que hoje toma conta de nossos espíritos.
Um dos aspectos mais evidentes desse processo de desarticulação institucional é o colapso da ideia de que a função docente é o centro em torno do qual a UFSC deveria se organizar. Tome-se a esse respeito a nota que a Reitoria produziu acerca da manutenção do expediente depois das referidas chuvas da semana passada. O texto era em si mesmo insípido, incolor e inodoro: um protocolar aviso de que a Administração Central estava monitorando as condições climáticas e os boletins da Defesa Civil.
O que chamou a minha atenção foi o fato de que, em vez de se endereçar a professores e TAEs, o documento recorria ao termo genérico “servidores”. Não era a primeira vez que isso acontecia, longe disso. Estamos diante de um procedimento sistemático, que, aos poucos, insidiosamente, modifica nossos esquemas mentais e esvazia a autoridade de professoras e professoras.
Em tempo, e para evitar mal-entendidos: tenho muito orgulho de ser servidor público – mas também sou essencial e irrevogavelmente um professor. Em todo caso, para além das palavras – que importam, sim, e muito –, uma série de decisões administrativas vai na direção desse esvaziamento da função docente. A mais notável delas, creio, são as portarias que instituiram o teletrabalho e a jornada de 6h entre TAEs da UFSC. Tão grave deliberação – que transforma dramaticamente as rotinas da instituição – jamais foi submetida ao Conselho Universitário. Em lugar disso, preferiu-se o recurso a audiências públicas.
O recado é claro: desprestigia-se um colegiado majoritariamente formado por docentes em nome de uma instância supostamente paritária e horizontalizada. Pouco importa aos proponentes de tão heterodoxa medida que o CUn pertença à estrutura legalmente consolidada da instituição e tenha seu funcionamento rigidamente regulado por um regimento, ao passo que audiências públicas são recursos informais e não disciplinados por regramentos escritos, o que obviamente as torna muito mais vulneráveis ao arbítrio e a manobras de vanguardas e autonomeados representantes de categorias e grupos.
Não por acaso, é cada vez mais comum que membros não docentes de órgãos colegiados da UFSC questionem abertamente a legitimidade desses mesmos órgãos. Exemplo disso se deu na última reunião do CUn, no momento em que se apreciava a proposta de resolução que regulamenta as atividades remotas nos cursos de pós-graduação, um processo que, mercê de chicanas protelatórias de representantes discentes e técnico-administrativas, se arrasta na Universidade há mais de um ano, com direito a ameças públicas de conselheiros estudantes ao reitor caso ele insistisse na tramitação do documento.
Na ocasião a que me refiro, uma conselheira TAE questionou a autonomia da Câmara de Pós-Graduação – explicitamente garantida pelo Regimento da UFSC – para exarar a resolução. Seu argumento: a CPG não conta com TAEs em sua estrutura; logo, não seria democrática.
Que a Reitoria fomente esse tipo de mentalidade, entende-se. O esquerdismo, como doença infantil já diagnosticada, é pródigo em colocar os pés pelas mãos quando o assunto é a democracia. De resto, o reitor e seu círculo se movem por motivações bem pragmáticas: eleitos principalmente por TAEs e estudantes, eles agora precisam pagar as contas pelos votos recebidos, condição sine qua non para garantir a reeleição. O que merece análise mais detida é por que os professores e professoras estão aceitando essa clara perda de prestígio.
Consigo pensar em três causas principais que gostaria de submeter ao escrutínio dos leitores.
A primeira é o declínio da vida pública e institucional, um processo que começou quando, no primeiro ciclo do PT no poder, a pax lulista garantiu um lugar relativamente confortável à Universidade no orçamento federal. Compreensivelmente, os docentes, que vinham de um período muito duro de mobilizações e greves em reação aos ataques de FHC à instituição, se sentiram à vontade para se retirar da cena política e sindical a fim de, enfim, poder se dedicar com desenvoltura a seus projetos e negócios
particulares.
O problema é que a prosperidade oferecida pelo petismo consistia em uma primavera precária, politicamente assentada sobre o PMDB e economicamente ancorada na passageira alta no preço internacional da commodities. Quando ainda no governo Dilma a crise econômica e política assaltou o país, já havíamos nos habituado a nos desresponsabilizarmos pela instituição e seus destinos, assim como tínhamos estiolado os instrumentos de luta a que outrora recorríamos em horas em que a porca torce o rabo.
À sucessão de abalos que, depois disso, acometeram a UFSC – a paixão e morte do Prof. Cancellier, a pandemia, o bolsonarismo, etc. –, nossa resposta limitou-se ao pânico e à perplexidade, uma atitude geral a que seguimos agarrados e nos leva a permanecer passivos diante desse cenário de esvaziamento da docência.
Outra causa de nossa inação diante do evidente desprestígio da função docente na UFSC me parece estar no fato de que, sobretudo nas Humanidades, introduzimos no debate público um relativismo e um culturalismo (desconstrução de –ismos como o eurocentrismo, o racismo, o sexismo, etc.) que agora retornam sobre a instituição sob a forma grotesca e caricatural de um moralismo agressivo que reserva adjetivos desairosos, cancelamentos e intimidação para cada mínimo ato que escape ou simplesmente pareça escapar aos novos cânones comportamentais: apresentar, por exemplo, uma bibliografia sobre períodos literários em que negros e mulheres não estavam representados é considerado uma violência (isso aconteceu a um colega de departamento); dizer que professores e TAES devem ser chamados de professores e TAEs, em vez de servidores, é elitismo (isso aconteceu comigo na lista de Whatsapp dos diretores de centro); citar Shakespeare e outros clássicos ocidentais é incorrer em crime de eurocentrismo (isso também aconteceu a mim na lista de diretores do Whatsapp); submeter um aluno negro ao que a lei exige para todos é racismo (isso aconteceu a uma professora e uma coordenadora de curso no CCE); chamar a atenção para a crise de manutenção predial na UFSC é negligenciar a crise das mulheres negras estupradas (isso foi o que ouvi publicamente da vice-reitora quando usei o termo crise para designar a incapacidade atual da instituição de responder ao estado de penúria em que nossas instalações se encontram).
A terceira causa diz respeito à psicologia de nossos tempos: em um período marcado por uma esfera pública em frangalhos e um questionamento radical e indiscriminado de tudo que recenda remotamente à tradição ocidental, as pessoas, ao contrário do que preconizam nossas ilusões libertárias, não se sentem livres. Sentem-se perdidas. E quando se está perdido, tudo que resta para nos sustentar subjetivamente é aprovação do outro, o amor do outro – de qualquer outro, bem entendido.
O que parece empatia, simpatia e compreensão é, na verdade, angústia de se indispor com o próximo, complacência, incapacidade de lidar com tensões e contradições próprias da vida social. Não se quer perder o amor do outro, não porque se o ame verdadeiramente, mas porque não se suporta viver sem ser amado até por quem não deu qualquer prova de mereça a nossa consideração. Narcissisme oblige.
*Fábio Lopes da Silva é diretor do CCE/UFSC